Insolvência em foco

A cessão fiduciária de recebíveis e a proteção aos bens essenciais durante o “stay period”

A cessão fiduciária de recebíveis e a proteção aos bens essenciais durante o "stay period".

29/1/2019


Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho

O art. 49, parágrafo 3º, da lei 11.101/2005 dispõe o seguinte:

"Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

(...) §3o Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis , de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.

Parte da doutrina confere a tal dispositivo legal interpretação restritiva, sustentando que o texto refere-se apenas a coisas móveis ou imóveis. Essa tese faz sentido e decorre da própria proteção outorgada pela parte final do texto legal. Créditos são bens imateriais; não são passíveis de qualificação como bens de capital suscetíveis de alienação fiduciária. Somente bens desta natureza, que são materiais, e não os direitos de créditos, imateriais, é que não podem ser retirados da posse do devedor, quando essenciais à sua atividade. Nesse sentido a lição de Manoel Justino Bezerra Filho: "o termo "proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis do início do §3o do art. 49 completa-se com a parte final do parágrafo, que não permite a venda ou retirada de bens de capital. Esta proibição final não pode ser aplicada à cessão; na cessão de recebíveis não há possibilidade de venda ou retirada de bens, há apenas apossamento puro e simples do dinheiro recebido" (Lei de Recuperação de Empresas e falência: comentada artigo por artigo 12ª. ed São Paulo: RT, 2017, p. 175).

É verdade que o Superior Tribunal de Justiça adotou interpretação extensiva do parágrafo 3º, do art. 49, no sentido de que a alienação fiduciária de coisa móvel (máquinas e equipamentos) e a cessão fiduciária de créditos (recebíveis) se equivalem, justamente por possuírem a mesma natureza jurídica. Porém, é preciso ir além e realizar-se uma interpretação extensiva de todo o dispositivo legal. Em outras palavras, se o credor fiduciário de recebíveis assim como o proprietário fiduciário de bens materiais não estão sujeito à recuperação, os recebíveis essenciais merecem proteção semelhante aos bens de capital essenciais. Ambos não podem ser retirados da disponibilidade do devedor, a fim de que se preserve a finalidade do processo de recuperação, sem prejuízo da proteção ao credor garantido, como, aliás, constou do parecer 534/2004, do Senador Ramez Tebet, relativo ao projeto que deu origem à lei 11.101/2001: "(...) no caso da alienação fiduciária e de outras formas de negócio jurídico em que a propriedade não é do devedor, mas do credor, é preciso sopesar a proteção ao direito de propriedade e a exigência social de proporcionar meios efetivos de recuperação às empresas em dificuldades. Por isso, propomos uma solução de equilíbrio: não se suspendem as ações relativas aos direitos dos credores proprietários, mas elimina-se a possibilidade de venda ou retirada dos bens durante os 180 dias de suspensão, para que haja tempo hábil para a formulação e a aprovação do plano de recuperação judicial."

A solução equilibrada, no caso da cessão fiduciária de créditos, não foi prevista no parágrafo 3º, mas esta lacuna pode ser suprida pela norma do parágrafo 5º., do art. 49, segundo o qual, "tratando-se de crédito garantido por penhor sobre títulos de crédito, direitos creditórios, aplicações financeiras, ou valores mobiliários, poderão ser substituídas ou renovadas as garantias liquidadas ou vencidas durante a recuperação judicial e, enquanto não renovadas ou substituídas, o valor eventualmente recebido em pagamento das garantias permanecerá em conta vinculada durante o período de suspensão de que trata o § 4o do art. 6o desta lei". A norma do § 5º do art. 49 se refere a direitos creditórios e títulos de crédito, ou seja, neste dispositivo legal está clara a intenção de tratar de garantias reais sobre créditos (ou recebíveis). Aqui cuida-se de direito real de garantia que recai sobre outro direito, incorpóreo, diferentemente da norma prevista no parágrafo 3º, que se refere a coisas corpóreas, suscetíveis de posse. Tratando-se de garantia que tem por objeto uma prestação pecuniária de terceiro, o devedor não pode simplesmente apropriar-se dos valores pagos, referentes aos créditos que deu em garantia. Isso seria anular pura e simplesmente o direito do credor. A solução, portanto, é exigir do devedor que substituía os créditos dados em garantia e já satisfeitos por outros créditos. Nesse sentido, aliás, é a compreensão do professor da USP, Eduardo Munhoz, em artigo indispensável sobre o tema: "A semelhança das figuras (cessão fiduciária e penhor) pode justificar tratamento também similar pela LRF. Ou seja, o crédito cedido fiduciariamente, desde que essencial à atividade empresarial (parte final do § 3º do art. 49), tanto quanto o objeto do penhor, deve ficar depositado, em conta vinculada à recuperação judicial, durante o stay period, assegurando-se, por outro lado, a renovação das também à hipótese de cessão fiduciária, em virtude da natureza fungível do crédito. De fato, a propriedade do credor é sobre créditos, bens fungíveis, de modo que não ofenderia o seu direito de proprietário a eventual renovação da garantia pelo devedor por outros créditos de mesmo valor e natureza, portanto, hábeis a substituir os primeiros." ("Cessão fiduciária de direitos de crédito e recuperação judicial de empresa". In: Revista do Advogado, n. 105, ano XXIX,. São Paulo: AASP, setembro de 2009, pp. 44/45). A solução doutrinária acima mencionada também tem amparo na jurisprudência do TJSP: “RECUPERAÇÃO JUDICIAL - CREDOR TITULAR DE CRÉDITO GARANTIDO POR CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS CONTRA TERCEIRO - PAGAMENTOS RELATIVOS À GARANTIA QUE DEVEM SER FEITOS MEDIANTE DEPÓSITO EM CONTA VINCULADA À RECUPERAÇÃO - ART 49, § 5° DA LEI 11 101/2005 - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.” (AGRAVO DE INSTRUMENTO n° 628.519-4/2 - CÂMARA ESPECIAL DE FALÊNCIAS E RECUPERAÇÕES JUDICIAIS). Do voto do relator. Des. Elliot Akkel, consta que “as regras do § 3o e do § 5o do art. 49 da Lei 11.101/2005 não se excluem. Ao contrário, podem ser complementares, como na espécie, uma vez que, configurada eventualmente a alienação fiduciária de direitos creditórios, induvidosamente e da mesma forma tratar-se-ia de "crédito garantido" por "direitos creditórios", na dicção do § 5o. Portanto, durante o "stay period", a proteção para credores garantidos por máquinas e equipamentos essenciais é a manutenção do bem na posse do devedor, que tem interesse na conservação do bem. Já a proteção para os credores garantidos por direitos de crédito (recebíveis) é o depósito do valor dos créditos objeto da garantia até que seja realizada a substituição ou renovação das garantias liquidadas ou vencidas. Com isso o devedor mantém a sua operação e continua a faturar, gerando novos créditos que serão oferecidos em garantia para o credor. Trata-se de solução que assegura efetividade à lei 11.101/2005, tendo amparo na doutrina e na jurisprudência, além de ser encontrada em outras leis de insolvência, como observa Leonardo Adriano Ribeiro Dias: "(...) À semelhança do que ocorre nos Estados Unidos, a utilização das garantias em dinheiro, presente ou futuro, deveria ser permitida caso o credor consinta ou o juiz autorize, quando assegurada a a proteção adequada ao titular do crédito garantido. Essa proteção poderia se dar, e.g., pela liberação parcial dos valores gravados até o limite da dívida garantida, com compromisso de pagamento dos juros incidentes; pela substituição da garantia por outros recebíveis com vencimento posterior; pela assunção do compromisso de reposição das garantias liberadas, sob pena de vencimento total da dívida; e assim por diante." (Financiamento na Recuperação Judicial e na Falência. São Paulo. Quartier Latin: 2014; pp.305/306). Por fim, importante destacar que o devedor tem direito à liberação, tão-somente, dos recursos necessários à manutenção da atividade empresarial, e não à totalidade dos recebíveis cedidos fiduciariamente. O controle da essencialidade cabe ao juízo da recuperação judicial, com o auxílio do administrador judicial. É conveniente que seja instaurado um incidente processual, para a demonstração dos valores essenciais pela recuperanda, evitando-se, com isso, tumulto nos autos da recuperação. Por meio da análise das demonstrações financeiras, extratos bancários e outros documentos, o administrador judicial extrairá as informações relativas ao valor das despesas da recuperanda que são essenciais ao seu funcionamento, como impostos, locação, aquisição de matéria-prima, folha de pagamento, serviços de terceiros. O Juiz decidirá qual o montante a ser liberado à devedora, presente o requisito da essencialidade, enquanto o excedente poderá ser disponibilizado aos credores garantidos. Com essa solução, o processo de recuperação judicial poderá cumprir seu propósito de forma mais eficiente. Assegura-se a manutenção das atividades da recuperanda e, ao mesmo tempo, é oferecida proteção adequada aos interesses dos credores garantidos.

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Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

Marcelo Sacramone é doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Juiz de Direito em exercício na 2ª vara de Falência e Recuperação Judicial de SP.

Márcio Souza Guimarães é professor doutor Visitante da Université Paris-Panthéon-Assas. Doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen. Foi membro do MP/RJ por 19 anos. Sócio de Márcio Guimarães/TWK Advogados, Árbitro e parecerista.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.