Meio de campo

Acorda, Brasil!

Acorda, Brasil!

13/2/2019

Não há como deixar de se estarrecer com a tragédia que fulminou as vidas de 10 meninos brasileiros enquanto sonhavam, no Ninho do Urubu, com a carreira de jogador de futebol. O estarrecimento só não é maior porque este país é pródigo em produzir eventos trágicos e, pouco tempo depois, esquecê-los, pela superveniência de outro ou pela revelação de novo esquema de corrupção.

O incêndio, porém, é a ponta do iceberg, infelizmente; uma pequena (apesar de doloridíssima) expressão do abandono e dos atentados que se cometem repetida e cotidianamente.

A escola pública, com poucas exceções, é incapaz de atrair e de estimular a frequência das crianças cujos pais não podem pagar pelo ensino privado; o sistema público de saúde não atende, com mínima dignidade, esses mesmos pequenos; e o esporte nacional, que poderia ser uma alternativa de projeto de vida, é um fracasso.

Sim, com exceção do vôlei, que recebeu massivo investimento estatal, somos um fracasso. Nem mesmo eventos grandiosos, como os Jogos Pan-Americanos e as Olimpíadas, transformaram essa realidade. O país saiu deles tão pequeno (ou ainda menor) do que entrou. Essas tragédias esportivo-organizacionais – sim, tragédias, pois serviram para direcionar riquezas aos poucos agentes que controlavam o processo, por meio da construção de equipamentos desnecessários e do desvio de recursos que, se aplicados em saúde e educação, poderiam revolucionar a vida de milhões de pessoas – se perderam em contas bancárias no exterior ou no financiamento da corrupção local.

É verdade que temos Guga, Medina, Daiane dos Santos e outras poucas estrelas mundiais. São exceções. Frutos, na origem e em grande parte – ou exclusivamente –, do esforço pessoal e do sacrifício familiar. Não existe planificação, não existe investimento estruturado, não há preocupação, do ente privado ou do público, com a atividade esportiva.

O futebol parecia ser diferente: um gerador espontâneo de jogadores, para deleite das massas e aproveitamento dos políticos de plantão. A espontaneidade foi sendo suplantada pelo desenvolvimento econômico e tecnológico, que não soube, em contrapartida, aproveitar, incorporar ou transformar o futebol no Brasil.

Enquanto isso, na Europa, o futebol passou por processo de profissionalização, modernização e internacionalização, não raro com a participação do Estado, como regulador. Importante, muito importante: a atuação estatal se restringiu à sua função reguladora, e não como forma de intervenção ou de participação na empresa futebolística.

Aí se revelam as origens do problema do futebol brasileiro, que o estão transformando num fracasso, assim como as demais atividades esportivas praticadas no país: o entreguismo e a negligência.

O entreguismo está institucionalizado (e constitucionalizado) no art. 217 da Constituição Federal. A equivocada opção – talvez justificada, em momento de transição, pelo temor da intervenção estatal – resultou na entrega do mais precioso bem de nossa cultura aos clubes associativos: entidades herméticas, altamente politizadas e inaptas a (i) desenvolverem atividade econômica que se tornou complexa e a (ii) realizarem a finalidade social a que estão destinadas. O futebol, em sentido figurado, é prisioneiro dos clubes e, por consequência, do retrógrado sistema cartolarial.

A negligência se reflete na incapacidade ou na falta de vontade de atuação estatal para libertar o futebol, por meio de adequada regulação; como fizeram, aliás, países de diferentes matizes ideológicas, a exemplo de Inglaterra, Alemanha e Espanha.

Por essa situação desoladora são - e somos - todos responsáveis: o executivo porque não percebe a relevância social e econômica do futebol; o legislativo porque não legisla ou se curva aos interesses da CBF e de Federações (principais beneficiárias do modelo associativo atual); a imprensa porque mantém-se na zona de conforto da crítica vaga e superficial ou puramente esportiva; os intelectuais porque (com raras exceções) não reconhecem o valor social e cultural do futebol; e a sociedade civil porque identifica apenas as suas funções lúdicas ou supostamente alienantes.

Essas são as causas do maltrato. O Brasil maltrata, sim, o futebol: uma atividade que poderia contribuir, como talvez nenhuma outra, para o desenvolvimento social e, de modo relevante, para o desenvolvimento econômico.

O maltrato mata o sonho de milhares de crianças e impede que, por meio do futebol, o acesso, a frequência e o apego à escola sejam estimulados.

Está na hora de o Estado brasileiro (isto é, o seu Governo Federal) despertar e, por meio de uma arquitetura regulatória apropriada, oferecer as vias societárias e de financiamento adequadas para que se possa, enfim, correr atrás do prejuízo.

Acorda, Brasil!

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.