Meio de campo

Futebol e democracia

Futebol e democracia.

22/5/2019

No prefácio do livro Democracia Fútbol Club e Outras Histórias, de Roberto Jardim, o jornalista Juca Kfouri narra diálogo que manteve com Daniel Cohn-Bendit, líder das manifestações parisienses de 1968. Em síntese, o francês gostaria de entender o motivo da geração de grande quantidade de jogadores brasileiros preocupados com questões políticas e, em última análise, com a democracia.

O jornalista, surpreendido, o desafia a preencher os dedos de duas mãos com jogadores que se encaixassem naquela descrição. A contagem vai até o número 8, mas é seguida de um contra-desafio: na Europa, quantos são? Contabilizam-se apenas 2.

A conclusão é, portanto, contra-intuitiva: o Brasil geraria mais jogadores com preocupações humanistas do que os países europeus.

A premissa não será, aqui, contestada. Não é o propósito.

Abordam-se, por outro lado, três aspectos, próprios e internos, sem preocupação com a definição de um padrão mundial, mas que, de algum modo, apontam a insuficiência de representatividade do futebolista nos grandes temas sociais.

O primeiro deles envolve a formação. O modelo brasileiro – e talvez de todo país subdesenvolvido ou em desenvolvimento – é cruel, pois não tem como propósito formar cidadãos. O processo envolve a coisificação da criança e do adolescente, que são submetidos a um rigoroso cronograma de treinamento e isolamento social.

Poucos – realmente poucos – ultrapassam todos os obstáculos e, dentre os poucos, pouquíssimos atingem o estrelato. A maioria perambula entre clubes-zumbis, atrás de uma oportunidade eventual de trabalho.

Os que sucumbem são despejados no mundo e vivem, com maior intensidade, a dura realidade mundana, tendo que competir por empregos para os quais não foram formados – técnica e psicologicamente.

O segundo envolve a educação. A maioria dos principais times brasileiros obriga o jovem a frequentar a escola; aliás, mais do que isso: é comum que cuide do transporte e controle a frequência em classe.

Porém, esse ensino formal, padronizado, não atende às necessidades dos alunos, que devem cursar currículos específicos, dirigidos à realidade da profissão futebolística, em programas que abrangem escola-futebol (como são oferecidos em países como a França e a Alemanha).

O terceiro, e último aspecto, que se vincula aos anteriores, refere-se à negação do futebol como elemento da "alta cultura".

Esse fenômeno é histórico no país. A fertilidade do intercâmbio artístico e cultural não se estende aos artistas da bola. As intersecções decorrem, na maioria das vezes, na forma de "licenças poéticas", para reverenciar algum marco ou excentricidade de certo jogador. O futebol e os futebolistas vivem, assim, à margem da sociedade ou constroem as suas próprias, pelo que costumam ser repreendidos ou ridicularizados.

Esses são alguns dos motivos que justificam a pífia contagem de 8 democratas ativistas na história do futebol.

A solução, para reverter esse cenário de exclusão, é, obviamente, a inserção, que se viabilizará apenas quando surgirem recursos para investimento na formação e educação dos jogadores, pelos times de futebol. E os recursos virão apenas quando o modelo de propriedade do futebol, monopolizado pelos clubes associativos, for modificado.

Não há segredo e não há alternativa.

Revela-se, aí, o ponto fundamental do debate: qual é o verdadeiro motivo que impede o empreendimento do necessário e profícuo movimento de transformação?

Além daqueles que todos concordam – mas quase ninguém se mexe para mudar – como a apropriação do futebol pela cartolagem, a utilização do futebol para negócios pessoais, a corrupção privada, etc., há um que, consciente ou inconscientemente, talvez seja mais importante: o pavor do poder transformacional pela conscientização.

Não interessa aos grupos de interesses dominantes a formação de uma classe de jogadores, que poderá – ou tenderá – a despertar e reivindicar o protagonismo que lhe está reservado.

Daí o isolamento das poucas pessoas que tentam – ou tentaram - subverter esse modelo, como Paulo André, idealizador e líder do extinto Bom Senso, ou Sócrates, que foi, para utilizar uma expressão atual, um problema necessário.

 
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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.