Meio de campo

Pra não dizer que não falei da Liga

Na coluna de hoje, o advogado Savério Orlandi trata da proposta de criação de uma liga pelos clubes de futebol.

11/5/2022

Caminhando e seguindo rumo ao aniversário do primeiro ano, a Lei da SAF vai se acomodando e assim começa a produzir efeitos práticos através da modelagem por parte de alguns clubes e a incursão por tantos outros em medidas preparatórias, análise e assimilação.

Era de se esperar que associações esportivas que até ontem flertavam com verdadeiro estado "pré-falimentar" se antecipassem na assunção do modelo, e daí começamos a verificar a adesão de importantes clubes à SAF como Cruzeiro, Botafogo e Vasco, enquanto muitos outros pelo Brasil e suas Séries têm levado a efeito seus estudos, aprovações em Conselhos, sondagens de mercado e outras ações destinadas à transformação mediata.

Com o advento da possibilidade de captação direta e estruturação de passivos, a urgência ditou a opção da insolvência pela SAF, ao tempo que alguns vem formatando com menor açodamento e para poucos tem sido algo a conjugar sem a premência de quem está "da mão para a boca".

Agora a bola da vez é a Liga. Sempre idealizada, sempre recorrente, a panaceia inalcançável... No curso da pandemia, ao lado da aprovação da SAF e da Lei do Mandante (além do decreto que incluiu as apostas de quota fixa no PPI, que quase ninguém trata), sua formação voltou com força ao centro do debate como sendo a solução definitiva. Em verdade, para resultar exitosa a modelação do pretendido mercado futebolístico brasileiro, estes aspectos e/ou oportunidades haveriam de ser desenvolvidos todos em conjunto, com aplicação concomitante.

O primeiro movimento foi forjado "à fórceps" na última semana com a criação da LIBRA, que não contou de saída com a adesão total dos clubes das Séries A e B, algo que não é alvissareiro muito embora se reconheça o fato que teria que começar de alguma forma... Falta, lamentável e notadamente, coesão, capacidade de tentar “enxergar a montanha por detrás da floresta”. Ao que consta, porém, haverá uma nova rodada de tratativas, desta feita com a participação de um número maior de associações esportivas na sede da CBF para tentativas de alinhamento.

Somos todos iguais, braços dados ou não: a regra de ouro inicial da combinação haveria de ser a sujeição de todos a revisões periódicas: "olha, o que for combinado nessa mesa será revisto x, y, z anos". Ponto. E outra, não há como validar na Barra sem que se tenha força, e não se tem força se não estiverem todos no barco. E sem a CBF, não se tem nada, não existe.  Simples assim.

Evidente o abismo existente e a dificuldade de se encontrar meios e critérios para que se atinja o que é certo, justo, no fim das contas razoável a todos os clubes. Claro que com a garantia de revisão breve, a partir de conceitos pré-definidos, possa-se render atratividade e a certeza de participação em um bom negócio... além da coesão, é necessário que se tenha desprendimento e também muita tenacidade. Disponibilidade para o assunto, através de tempo e de argumento. Altruísmo para compreender como podem ser melhor renúncias pela divisão de um bolo maior.  

Pena tenha sido sempre assim. Em breve retrospectiva, o surgimento da união de clubes teve sua marca principal na formação do Clube dos 13, no início do processo de redemocratização do país na década de 1980 com o esvaziamento da política do "onde a Arena vai mal, mais um time no Nacional". Coisas boas foram urgidas, a negociação em bloco, atuação como garantidora dos clubes, temas interessantes aplicados por aquela cartolagem composta de muitos "Il Capo" que davam as cartas nos clubes à época... A passagem dos anos e a transição dos mandatários fez o cometimento esfriar até a sua implosão, consequência do enfrentamento de dois presidentes paulistas, em parte justificada. Até recentemente, via-se somente a figura efêmera do tal CNC.

Sob essa bandeira, os clubes patrocinaram algumas ações nos últimos tempos, carimbadas pelo caráter circunstancial das demandas de momento; assim se reuniram para glosar a proposição inicial do Deputado Pedro Paulo em 2019, depois para “chorar as pitangas” quando deflagrada a pandemia em 2020 e, ainda, para protesto e reinvindicação na carta conjunta de 2021 quando do episódio Carlos Caboclo. Muito pouco, invariavelmente com marcas da falta de compromisso e de firme propósito comum, frágil para suportar a primeira discussão ou embate de natureza casuísta, como não faltaram exemplos nesse período.

Vem, vamos embora, que esperar não é saber. Admitindo que num lampejo os clubes venham a se cotizar e escolham por trilhar o caminho virtuoso, muita coisa há se ser estruturada, a partir não só da adoção dos requisitos básicos de formatação jurídica adequada, governança, desenho da participação individual, regras de "compliance" e outras questões hoje tão caras à ordem do dia corporativo e que são de amplo acesso e fácil implantação (verdade que trabalhosa, porém não de alta indagação), mas sobretudo de estratégia através do estabelecimento de um plano.

Onde queremos estar em 5, 10, 20 anos? Como, quanto cabe a cada um? Mas não é só, claro...

A definição de um planejamento estratégico conjunto é imperiosa, como também é revisitar ou buscar bons exemplos. Negociação em bloco é pressuposto, mas aquela função garantidora do Clube dos 13 poderia avançar para a constituição pela Liga de um fundo, convencionando-se os critérios de sua formação, regras de acesso após alguns anos, etc... Lembremos que o "CNC" torceu o nariz para a proposição neste sentido do Deputado Pedro Paulo na ocasião, mas outra coisa é a "futura" Liga através de uma gestora assumir esse papel e controle.

No tocante às transmissões e as novas possibilidades derivadas da Lei do Mandante, o modelo da FPF que foi adotado para o Campeonato Paulista 2022 é uma boa referência, a ser aprimorada e amplificada para disputas nacionais, a propósito, o produto envelopado há de ser recriado com inovação, mesmo ainda tendo eficácia (o torcedor é teimoso) o modelo atual está esgotado.

A transição geracional também é algo a ser curado com muito carinho, de forma científica, afinal, são os consumidores do produto; além de fidelizar o adepto é necessária sua perenização, e aqui não tratamos somente dos filhos integrantes de toda uma nova geração seduzida por diversos outros interesses, militantes de outras plataformas, mas também dos pais e dos avós, aqueles que vem se deparando com a novidade do streaming, a dificuldade de se entender na cesta dos canais, um contingente que está sendo convidado a concluir que ficou tudo mais difícil e o tempo é outro. Também o desenvolvimento de vias alternativas de geração de atratividade e ampliação da sua base de consumo através da inserção no mundo dos E-Sports, da realização conjunta de ações sociais afirmativas. Sem falar na possibilidade de monetização de um mercado de apostas, eliminando a miopia da classe dirigente que hoje aceita dando "como bom" receber em média 40M ano para estampar um "BET" qualquer na camisa, renunciando a um mercado próprio que é estimado em cerca de 4 BI ano, operado na sua quase totalidade por empresas offshore.

Quem sabe faz a hora não espera acontecer... É mandatório um consenso mínimo agora! É preciso anuir e iniciar com a garantia de uma breve revisão e ajuste. Não se pode mais tangenciar o próprio negócio. Não precisa virar amigo e convidar para tomar chopp em casa. Mas sim, com a necessária civilidade, mínima razoabilidade e união pelo interesse comum, procurar evoluir.

Como inspiração, salta à memória um trecho extraído do prólogo de Joshua Robinson e Jonathan Clegg no festejado "A Liga", ao fim reproduzido, quando narram um encontro havido em Londres no final do ano de 2017 em uma "das reuniões que nunca foram ou são simples", onde se discute invariavelmente o "direito divino de se receber mais dinheiro", tomara tenhamos êxito parecido.

"Eles eram os proprietários, executivos e plutocratas dos vinte clubes de futebol que disputavam a Premier League. E estavam se reunindo para se certificar de que sua galinha dos ovos de ouro, que gera mais de U$ 5,6 bilhões por temporada, continuaria engordando no mesmo ritmo astronômico do último quarto de século. Desde 1992, as receitas combinadas da Premier League aumentaram em 2.500%. Nada mal para um grupo de caras que, na sua maioria, se detestam". (Obra citada, Editora Versal, 1ª Edição, página 1)

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.