Migalha Trabalhista

O fim da ultratividade das normas coletivas e o princípio do não retrocesso social

Trabalhadores precisarão contar com a força sindical para exercer a pressão necessária sobre o patronato, na garantia de manutenção dos benefícios e direitos sociais conquistados pela categoria por suas normas coletivas e, assim, evitar o retrocesso social que poderá ocorrer pela perda da eficácia das normas negociadas “do dia para a noite”.

1/7/2022

As normas coletivas são instrumentos pactuados entre empregador e sindicato profissional e/ou sindicatos representativos de categorias econômica e igualmente profissional estipulando condições de trabalhos aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais de trabalho1.

Em melhor definição, a OIT - Organização Internacional do Trabalho ensina que:

“[...] nos últimos anos, a tendência tem sido de aumentar os itens suscetíveis de negociação. Hoje, incluem a segurança no emprego, a introdução de novas tecnologias e seus impactos sociais, treinamento e reciclagem, planos suplementares de seguridade social e bem-estar dos trabalhadores. Há várias maneiras de determinar que questões são negociáveis. Em alguns casos, as partes diretamente envolvidas podem chegar a um acordo depois da negociação. Em outros, a lei pode estabelecer o que deve, necessariamente, ser ou não incluído na negociação. Pode, ainda, estabelecer tópicos sobre os quais um empregador não pode negar-se a discutir, ou fazer uma lista de itens que só podem ser considerados negociáveis com a concordância de ambas as partes”2.

A CF/88, confirmando o reconhecimento das normas coletivas, garantiu que o direito de negociar vise também à melhoria da condição social do trabalhador, por disposição do art. 7º, XXVI, a saber: “reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho”.

Com isso, a norma coletiva ganhou força, a ponto da reforma trabalhista (lei 13.467/17), no art. 611-A, da CLT, prever a sua prevalência sobre a lei infraconstitucional em temas comuns ao trabalhador, tais como “jornada de trabalho”, “banco de horas”, “intervalo intrajornada”, “participação nos lucros ou resultados da empresa”, “prorrogação de jornada” etc.

Nesse sentido, aliás, recentemente o STF “decidiu que acordos ou convenções coletivas de trabalho que limitam ou suprimem direitos trabalhistas são válidas, desde que seja assegurado um patamar civilizatório mínimo ao trabalhador”3. Com isso, doravante há sobreposição do negociado sobre o legislado, desde que as normas coletivas não infirmem preceitos estabelecidos pela CF/88, em normas de tratados e convenções internacionais incorporados ao nosso ordenamento jurídico, e, de igual sorte, em normas infraconstitucionais que assegurem garantias mínimas de cidadania aos trabalhadores. A conclusão é resultado do julgamento do ARE - Recurso Extraordinário com Agravo 1.121.633, encerrado em 2/6/22.

Com efeito, é sabido que os acordos e convenções coletivas negociam cláusulas econômicas e sociais, versando sobre interesses comuns da categoria profissional que muitas vezes acabam se estendendo em proveito da família ou dependentes do trabalhador, como é o caso de “plano de saúde”, “seguro de vida”, “auxílio-creche”, “garantia de emprego pré-aposentadoria”, contribuindo, ainda que em patamares mínimo, com o desenvolvimento social de determinada coletividade.

Justamente pela garantia dos direitos fundamentais contra o retrocesso social é que tais cláusulas coletivas negociadas e conquistadas por meio de autêntica negociação – muitas vezes decorrentes das lutas sociais manifestadas por greves de determinada categoria profissional, que são movimentos ativos para conferir benefícios aos trabalhadores e que podem, pelo simples vencimento de uma data, deixarem de ter eficácia repentina – é que pelo princípio da ultratividade das normas coletivas pactuadas justificava as suas incorporações aos contratos individuais de trabalho vigentes ou novos, mesmo quando encerrado o prazo de validade dos instrumentos, sem que fossem reafirmadas por novo acordo coletivo ou por uma norma que viesse a decidir sobre os direitos da categoria profissional. Eis o entendimento até então consolidado pelo TST no verbete sumular 277, em consonância com o art. 114, §2º, da CF/88, o qual dispunha o seguinte: “as cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho”.

A súmula 277 do TST teve nova redação dada em 2012, quando a lei 10.192/01, que dispõe sobre a política nacional de salários, já tinha revogado o art. 1º, §1º, da lei 8.542/92, para afastar a teoria da aderência limitada por prazo às normas coletivas, o que gerou questionamentos acerca da interpretação conferida pela justiça especializada, em contrária à intenção do legislador. O tema passou a ser discutido na ADPF 323/DF, de relatoria do ministro do STF, Gilmar Mendes.

O legislador teve intenção de pôr fim a ultratividade das normas coletivas, tanto que pela reforma trabalhista (lei 13.467/17) editou o §3º do art. 614 da CLT, que expressamente veda a ultratividade da duração da convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho superior a dois anos.

Foi assim que, por maioria, o plenário do STF julgou inconstitucional o entendimento do TST que mantém a validade de direitos estabelecidos em cláusulas? coletivas com prazo ?já expirado (princípio da ultratividade) até que seja firmado novo acordo ou nova convenção coletiva, por sessão encerrada em 27/5/22, no julgamento da já mencionada ADPF 3234.

Aqui surge a seguinte problemática: se antes as disposições legislativas se sobrepunham às normas coletivas, estabelecendo preceitos mínimos de direitos, após decisão do STF as normas coletivas ganharam novo status hierárquico, inclusive permitindo a supressão de determinados direitos; lado outro, alavancando a hierarquia das negociações coletivas por meio de suas normas, a própria Corte Suprema limitou a sua vigência, quando, em tese, são previstos inúmeros direitos aos trabalhadores, garantindo-lhes especiais melhorias das condições sociais – situação essa que, s.m.j, traz uma verdadeira contradição!

Nesse ponto, evoca-se o princípio da vedação ao retrocesso social que tem por objetivo impedir, por meio de inovação legislativa ou interpretação de normas já existentes, a redução e a supressão dos direitos sociais, resultando na interiorização do patamar civilizatório alcançados, aqui também pela negociação coletiva enraizada no ordenamento jurídico brasileiro.

Em outras palavras, o princípio objetiva a proibição de supressão de direitos e garantias conquistados pelos obreiros – como dito, materializados corriqueiramente pelas lutas sindicais, provenientes do choque social existente na sociedade –, notadamente por meio de movimentos sindicais, sociais, políticos, ou por qualquer outra via.

Marcelo Casseb Continentino, entende que o princípio da vedação ao retrocesso social pode ser considerado “como um direito constitucional de resistência que se opõe à margem de conformação do legislador quanto à reversibilidade de leis concessivas de benefícios sociais”5.Esse princípio é amplamente defendido na doutrina e jurisprudência trabalhista, e está igualmente previsto no art. 7º da CF/88 que, em leitura conjunta com o inciso XXVI mencionado, reconhece constitucionalmente as normas coletivas e a intenção de melhoria da condição social do trabalhador através delas.

A revogação da ultratividade das normas coletivas indica infringência ao princípio da vedação ao retrocesso social, que certamente se agravará pela supressão de direitos civilizatórios conquistados pelos obreiros por meio das normas coletivas.

Bem por isso, a revogação da ultratividade relativiza ainda mais os direitos trabalhistas, o que poderá resultar em infrações que coloquem em risco não só a condição social dos próprios trabalhadores, como acabe elevando os riscos jurídicos e insegurança do próprio empregador.

Ainda que alguns doutrinadores sustentem que a resposta à revogação está no art. 8º da CLT, que reconhece o uso e costumes das empresas como fontes formais do direito do trabalho, assim criando uma nova norma tácita entre as partes quando da manutenção dos benefícios previstos nas normas coletivas, certo é que a validação do entendimento dependerá de discussão judicial, resultando nem sempre em entendimento favorável ao empregado. Pelo empregador, por sua vez, haverá sempre o risco de ação judicial e a possível elevação de seus custos.

O STF, a propósito, “estabelece a primazia do princípio da vedação ao retrocesso social, com base na garantia do mínimo existencial, priorizando a dignidade humana (art. 1º, III da CF/88) e os objetivos fundamentais do Estado (art. 3º da CF/88), mitigando as alegações relacionadas à insuficiência de recursos em situações onde os direitos sociais são violados no seu núcleo sensível, no mínimo existencial”.6

Ora, o Poder Judiciário, como instituição comprometida com a observância da obrigação constitucional dos avanços dos direitos sociais - no caso, daqueles contidos das negociações coletivas ainda que implicitamente - de certa forma não teria falhado em tal observância ao sepultar definitivamente a ultratividade das normas coletivas?

O papel da Corte Suprema, na atual conjuntura econômica, deveria se dispor a socorrer a sociedade da ausência ou omissão estatal, especialmente quando ocorre em observância exclusiva dos interesses empresariais, com a garantia dos direitos sociais conquistados pelos trabalhadores, independentemente de sua fonte e o tempo de sua vigência, como é caso das normas coletivas de trabalho.

Mesmo que sindicatos e trabalhadores se mobilizem para a renovação da norma coletiva junto ao empregador, o direito social conquistado poderá sucumbir repentinamente pela perda da eficácia do “papel”, inclusive pela recorrente morosidade da negociação coletiva ou, ainda, no desinteresse de negociação pelos próprios empregadores, que poderão não só forçar a sua vontade durante as negociações, pois cientes do vencimento do prazo das normas coletivas, como se valerem também da morosidade dos dissídios coletivos que igualmente não contam com a ultratividade, daí levantando importante questionamento: como ficará a aplicação do princípio da vedação ao retrocesso social?

Só o tempo dará a resposta, mas o sentimento é de que nos tempos atuais, mais do que nunca, os trabalhadores precisarão contar com a força sindical para exercer a pressão necessária sobre o patronato, na garantia de manutenção dos benefícios e direitos sociais conquistados pela categoria por suas normas coletivas e, assim, evitar o retrocesso social que poderá ocorrer pela perda da eficácia das normas negociadas “do dia para a noite”.

_____

1 Art. 611 da CLT.

2 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Negociações Coletivas (trad. VALLE, Sandra). São Paulo: LTr, 1994, p. 19.

3 Disponível aqui

4 Disponível aqui.

5 CONTENTINO, M.C. Proibição do retrocesso social está na pauta do STF. Disponível aqui. 

6 Disponível aqui

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Colunista

Ricardo Calcini é professor, advogado, parecerista e consultor trabalhista. Estratégica, atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs, TST e STF). Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/SP. Pós-Graduado em Direito Processual Civil (EPM TJ/SP) e em Direito Social (Mackenzie). Professor Convidado de Cursos Jurídicos e de Pós-Graduação (FADI, ESA, IEPREV, Católica de SC, PUC/PR, PUC/RS, Ibmec/RJ, FDV e USP/RP). Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Professor indicado pela Câmara dos Deputados para presidir o grupo de estudos técnicos para a elaboração do PL 5.581/2020 acerca do Teletrabalho. Coordenador Acadêmico do projeto "Migalha Trabalhista" (Migalhas). Palestrante e Instrutor de eventos corporativos pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe. Autor do livro "Prática Trabalhista nos Tribunais: TRT's e TST". Coautor dos livros "Execução Trabalhista na Prática" (2ª Edição) e "Manual de Direito Processual Trabalhista". Organizador das obras coletivas "CLT Comentada: Artigo por Artigo" – Mizuno (2ª Edição), "Estratégias da Advocacia no TST", "ESG – A Referência da Responsabilidade Social Empresarial", "Prática de Processo de Trabalho: Técnica Visual Law", "Reflexões Jurídicas Contemporâneas: Estudos em homenagem ao Ministro Douglas Alencar Rodrigues", "Relações Trabalhista e Sindicais – Teoria e Prática" (2ª Edição), "LGPD e Compliance Trabalhista" e "Reforma Trabalhista na Prática: Anotada e Comentada" (2ª Edição). Coordenador do livro digital "Nova Reforma Trabalhista" (Editora ESA OAB/SP, 2020). Coordenador dos livros "Perguntas e Respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista" (Editora LTr) e "Reforma Trabalhista: Primeiras Impressões" (Editora Eduepb). Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (GETRAB-USP), do GEDTRAB-FDRP/USP e da CIELO LABORAL. Contatos: Instagram ricardo_calcini | Website www.ricardocalcini.com.br