Migalhas Consensuais

Mediação na recuperação judicial: Entre o consenso e o conflito, o papel estratégico do administrador judicial

Até que ponto o Administrador Judicial pode incentivar a mediação sem comprometer sua imparcialidade? Jorge Jerônimo Gonso trata a mediação na recuperação judicial como uma forma de ajudar credores e devedores a encontrarem soluções rápidas e eficazes.

27/3/2025

A recuperação judicial é, por sua própria natureza, um processo permeado por tensões e interesses divergentes. De um lado, credores que buscam recuperar seus créditos da forma mais eficiente possível; de outro, o devedor que luta pela continuidade de sua atividade empresarial.

Nesse cenário, a mediação emerge como um instrumento fundamental para o equacionamento dessas relações, promovendo a construção de soluções que transcendam a rigidez do processo judicial tradicional.

O advento da lei 14.112/20, ao reformar a lei 11.101/05, reafirmou a importância da mediação como um mecanismo eficaz na resolução de conflitos em processos de recuperação judicial e extrajudicial, ampliando as possibilidades de composição entre credores e devedores.

Essa inovação legislativa não apenas fortalece a aplicação de métodos consensuais na gestão da crise empresarial, como também impõe uma abordagem mais dinâmica e estratégica por parte dos agentes envolvidos no procedimento recuperacional.

Entre esses agentes, o AJ - Administrador Judicial ocupa uma posição de especial relevo. Tradicionalmente percebido como um fiscal do procedimento e garantidor da legalidade dos atos praticados pelo devedor, seu papel evolui para abarcar também a função de facilitador do diálogo e promotor de consensos entre as partes interessadas. 

A recomendação 58/19 do CNJ reforça a importância da mediação nos processos de insolvência e sinaliza que o AJ pode desempenhar um papel ativo na condução de tratativas que visem à pacificação dos conflitos.

No entanto, há um limite sensível e intransponível: o administrador judicial não pode se confundir com o mediador. A mediação, tal como delineada na lei 13.140/15 (lei de mediação), pressupõe a atuação de um terceiro imparcial e sem poder decisório, cuja função se restringe a facilitar o diálogo entre as partes, sem influenciar diretamente nas negociações.

Já o AJ, por força do art. 22 da lei 11.101/05, tem atribuições que vão além dessa neutralidade, incluindo a fiscalização do cumprimento do plano de recuperação e a prestação de informações ao juízo. Assim, sua atuação deve respeitar a fronteira entre o incentivo ao consenso e a manutenção de sua imparcialidade, sob pena de comprometer sua credibilidade e a própria higidez do processo.

Além disso, ao longo do processo, o AJ pode atuar na identificação de pontos comuns entre credores e devedores, minimizando resistências e criando um ambiente mais propício à convergência de interesses.

Nesse sentido, algumas estratégias podem ser empregadas pelo administrador judicial para fortalecer a mediação sem comprometer sua posição de imparcialidade:

Ao adotar essas práticas, o administrador judicial fortalece sua função de articulador entre os interesses jurídicos, econômicos e estratégicos do processo recuperacional, garantindo que a mediação seja utilizada de maneira eficaz, sem que sua imparcialidade seja comprometida.

O Manual Prático de Mediação Empresarial, aprovado pelo FONAREF - Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências do Poder Judiciário, reforça essa perspectiva ao reconhecer que a mediação, quando bem aplicada, pode tornar o processo de recuperação judicial mais eficiente e menos litigioso.

Dessa forma, a mediação na recuperação judicial não deve ser vista apenas como um mecanismo acessório, mas como um instrumento essencial à preservação da empresa e à celeridade processual. O administrador judicial, ao atuar como incentivador do diálogo e da negociação, contribui para a construção de um ambiente mais colaborativo, em que credores e devedores possam encontrar soluções que atendam aos seus interesses sem a necessidade de prolongados e desgastantes embates judiciais.

Contudo, a questão que se coloca à comunidade jurídica é: até que ponto o Administrador Judicial pode impulsionar a mediação sem comprometer sua imparcialidade? Esse é um debate fundamental para a consolidação da mediação como ferramenta legítima e eficaz no sistema de insolvência empresarial. 

Afinal, em um contexto de recuperação judicial, o equilíbrio entre a fiscalização e o incentivo ao consenso pode ser a chave para a construção de soluções verdadeiramente sustentáveis.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Mariana Freitas de Souza é advogada e mediadora. Presidente do ICFML Brasil. Diretora do CBMA. Membro da Comissão de Mediação do Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ. Membro da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem do IAB. Membro do Global Mediation Panel da ONU. JAMS Weinstein International Fellow. Sócia do PVS Advogados.

Samantha Longo é advogada, mediadora e professora. Membro do FONAREF - Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências e membro do Comitê Gestor de Conciliação, ambos do CNJ. Presidente da Comissão de Mediação da OAB/RJ. Diretora de Mediação do CBMA. Doutoranda e Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pela UniCuritiba. Capacitada em Negociação e Liderança pela Universidade de Harvard. LLM. em Direito Empresarial pelo IBMEC/RJ. Autora de diversos artigos, coordenadora de obras coletivas, coautora da obra "A Recuperação Empresarial e os Métodos Adequados de Solução de Conflitos" e autora do livro "Direito Empresarial e Cidadania: a responsabilidade da empresa na pacificação dos conflitos". Sócia do Longo Abelha Advogados.