Migalhas Consensuais

Conciliação administrativa: A evolução normativa da AGU

Entenda a evolução das normas de conciliação da AGU com o juiz de Direito Ricardo Costa e Silva.

17/4/2025

O Brasil testemunha uma mudança significativa na forma como o Poder Público lida com litígios. Historicamente um dos maiores litigantes do país, o Poder Executivo, representado principalmente pela Advocacia-Geral da União (AGU), está progressivamente abandonando a cultura do litígio a qualquer custo em favor de abordagens mais racionais e consensuais. Essa transformação não é um fenômeno isolado, mas uma consequência direta do fortalecimento do sistema de precedentes qualificados no direito brasileiro, especialmente após o Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15)1. A necessidade de observar decisões vinculantes do Poder Judiciário tem levado a AGU a desenvolver mecanismos internos, como portarias que regulamentam a conciliação, a dispensa de contestações e a não interposição de recursos, redesenhando a interação entre Executivo e Judiciário na busca por eficiência, segurança jurídica e redução da sobrecarga processual. Este texto explora essa evolução, desde o impacto dos precedentes até as recentes normativas da AGU e a convergência institucional em curso.

I. O Catalisador da Mudança: O Sistema de Precedentes Vinculantes do CPC/2015

A tradicional cultura jurídica brasileira, baseada no sistema Civil Law, sempre priorizou a lei como fonte primária do direito. Contudo, a crise de eficiência do Judiciário, marcada pela morosidade e por decisões conflitantes sobre temas idênticos, impulsionou uma reforma crucial com o CPC/2015. Este código introduziu um sistema robusto de valorização da jurisprudência, buscando garantir isonomia e previsibilidade.

artigo 927 do CPC/15 é o pilar dessa mudança, ao determinar que juízes e tribunais observem, de forma vinculante, as decisões proferidas em mecanismos específicos, conhecidos como "precedentes qualificados". Entre os mais relevantes para a litigância de massa envolvendo o Poder Público estão:

  1. Recursos Especial e Extraordinário Repetitivos/Repercussão Geral (REsp/RE): Julgamentos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF) que fixam teses jurídicas sobre questões de direito que se repetem em inúmeros processos em todo o país.
  2. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR): Mecanismo que permite aos tribunais de segunda instância (TJs e TRFs) firmar uma tese jurídica única para demandas repetitivas em sua área de competência.
  3. Incidente de Assunção de Competência (IAC): Utilizado para pacificar divergências ou firmar entendimento sobre questões de direito relevantes com grande repercussão social.
  4. Súmulas Vinculantes do STF: Enunciados com força obrigatória para todo o Judiciário e a Administração Pública.

A força vinculante desses precedentes significa que eles não são meras recomendações. Seu descumprimento acarreta consequências processuais diretas, como o julgamento imediato de recursos (Art. 932 e 1.030 do CPC) e até mesmo a possibilidade de reclamação constitucional. Para o Poder Executivo, a maior parte em incontáveis processos, a mensagem tornou-se clara: insistir em teses já derrotadas em sede de precedente qualificado tornou-se não apenas ineficiente, mas juridicamente insustentável.

II. A Resposta do Executivo: A Evolução Normativa da AGU para Racionalizar a Atuação

Diante da obrigatoriedade de seguir os precedentes qualificados, a AGU iniciou um processo interno de adaptação e regulamentação para alinhar sua atuação à nova realidade processual. Essa evolução pode ser observada em suas normativas, que progressivamente ampliaram as hipóteses de não litigar e buscar soluções consensuais:

A portaria institui um procedimento estruturado, delineado no Art. 5º, que exige a observância de etapas claras antes de se firmar um acordo:

  1. Exame de probabilidade de êxito das teses defendidas pelas partes (União e parte contrária).
  2. Análise de viabilidade jurídica do acordo.
  3. Exame de economicidade do acordo para a União.
  4. Obtenção de autorização hierárquica, quando necessária.
  5. Homologação em juízo, se aplicável.

O ponto central, que conecta diretamente esta normativa ao sistema de precedentes, reside no exame da probabilidade de êxito, detalhado nos Artigos 6º e 7º. Este exame obriga a uma análise individualizada das teses no caso concreto. O Art. 7º estabelece que a probabilidade de êxito de cada tese deve ser classificada como "alta", "baixa", "indefinida" ou "oscilante", com base em parâmetros indicativos cruciais:

A classificação de probabilidade "baixa" para a União (Art. 7º, § 1º, II) ocorre quando esses parâmetros, especialmente os precedentes vinculantes ou análogos, se mostram desfavoráveis. Essa análise formal e baseada em precedentes torna-se, assim, um forte direcionador para a busca de um acordo, evitando a continuidade de litígios com pouca chance de sucesso.

A Portaria 21/2024 também estabelece limites de alçada financeira claros e hierarquizados para a autorização dos acordos (Art. 10):

Outra inovação relevante introduzida pela norma são os "Planos de Negociação" (Art. 18). Estes planos permitem padronizar propostas de acordo para matérias litigiosas específicas e recorrentes, podendo ter caráter nacional, regional ou local. Uma vez aprovado um Plano de Negociação, a negociação subsequente em casos individuais que se enquadrem nele dispensa a produção de novas manifestações escritas sobre probabilidade de êxito, viabilidade e economicidade, agilizando a resolução consensual (Art. 19). Importante notar que a expedição de orientações internas sobre reconhecimento de pedido ou não interposição de recursos baseada em jurisprudência consolidada deve ser precedida de análise sobre a elaboração de um Plano de Negociação (Art. 20), reforçando o vínculo entre precedentes e a padronização de acordos.

É fundamental registrar, conforme o Art. 1º, § 2º, que a formalização do acordo não implica o reconhecimento do direito discutido no litígio, nem acarreta a desistência da tese defendida pela União em casos semelhantes, resguardando a posição jurídica do ente público para outras situações.

Essa trajetória normativa, culminando na detalhada Portaria 21/2024, demonstra como a AGU internalizou a lógica dos precedentes. A decisão de não contestar, não recorrer ou propor um acordo deixou de ser uma exceção e passou a ser uma estratégia processual regulamentada, incentivada e, crucialmente, baseada na análise formal da jurisprudência vinculante, especialmente quando a posição do Judiciário já está firmada.

III. Convergência Institucional e Resultados Tangíveis: O Futuro Aponta para a Desjudicialização

A mudança de postura da AGU, formalizada em normativas como a Portaria PGU/AGU nº 21/2024, não é um esforço isolado, mas converge decisivamente com iniciativas e o endosso explícito do próprio Poder Judiciário, sinalizando um futuro onde a resolução administrativa de conflitos, guiada por precedentes, se tornará a regra, e não a exceção.

Grupo de Trabalho sobre Litigância Contra o Poder Público no STF, conforme noticiado em 26 de junho de 2024, sob a liderança do Ministro Luís Roberto Barroso, busca ativamente soluções para impedir que demandas cheguem desnecessariamente ao Judiciário5. A afirmação do Presidente do STF de que “Litigar tem custos, faz mal ao país” e que a formalização de acordos na esfera administrativa é uma saída mais econômica reforça essa visão. As propostas discutidas nesse grupo ecoam diretamente as práticas que a AGU vem implementando:

Essa movimentação no mais alto nível do Judiciário demonstra um reconhecimento institucional inequívoco de que a solução eficiente para a litigância massiva contra o Poder Público passa pela internalização dos precedentes na própria esfera administrativa, antes mesmo da judicialização.

Os resultados concretos já alcançados pelo acordo de cooperação técnica entre STJ e AGU, vigente desde junho de 2020, conforme noticiado pelo STJ em 01 de abril de 20256, validam empiricamente a eficácia dessa abordagem e apontam para seu potencial futuro:

Estes números não são apenas estatísticas passadas; são a demonstração do poder transformador da sinergia entre um sistema de precedentes robusto e uma administração pública disposta a segui-los proativamente. Eles pavimentam o caminho para um futuro onde a energia da Advocacia Pública e do Judiciário pode ser concentrada em questões juridicamente complexas e novas, em vez de ser consumida pela repetição de litígios cujo resultado já é previsível.

Conclusão

A evolução da resolução de conflitos envolvendo a Administração Pública no Brasil está indissociavelmente ligada ao fortalecimento do sistema de precedentes qualificados introduzido pelo CPC/2015. A obrigatoriedade de observar as teses firmadas pelo Judiciário compeliu a AGU a reavaliar sua estratégia, culminando em normativas detalhadas como a Portaria PGU/AGU nº 21/2024, que sistematiza a conciliação e a análise de probabilidade de êxito com base explícita nos precedentes.

Essa adaptação do Poder Executivo, validada pelos expressivos resultados do acordo STJ-AGU e incentivada por iniciativas do STF/CNJ, não é apenas uma tendência, mas uma transformação estrutural em curso. Ela aponta para um futuro onde a racionalidade e a consensualidade, ancoradas na segurança jurídica proporcionada pelos precedentes, serão os pilares da gestão dos litígios públicos. A prevenção de litígios infrutíferos através da adequação administrativa prévia às decisões judiciais consolidadas representa a fronteira mais promissora para a eficiência do sistema de justiça e da própria Administração Pública, consolidando uma nova era de colaboração e desjudicialização efetiva no Brasil.

Referências

BRASIL. Advocacia-Geral da União. Procuradoria-Geral da União. Portaria Normativa PGU/AGU nº 3, de 17 de junho de 2021. Regulamenta os critérios para a dispensa da prática de atos e desistência de recursos, bem como procedimentos ligados a execuções e cumprimentos de sentença em face da União. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 9, 18 jun. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 9 abr. 2025.

BRASIL. Advocacia-Geral da União. Procuradoria-Geral da União. Portaria Normativa PGU/AGU nº 14, de 17 de novembro de 2022. Altera a Portaria PGU nº 11, de 8 de junho de 2020, a Portaria Normativa PGU/AGU nº 3, de 17 de junho de 2021, a Portaria Normativa PGU/AGU nº 5, de 3 de agosto de 2021, a Portaria Normativa PGU/AGU nº 6, de 18 de agosto de 2021, e a Portaria Normativa PGU/AGU nº 7, de 18 de agosto de 2021. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 2, 18 nov. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 9 abr. 2025.

BRASIL. Advocacia-Geral da União. Procuradoria-Geral da União. Portaria Normativa PGU/AGU nº 21, de 22 de agosto de 2024. Regulamenta, no âmbito da Procuradoria-Geral da União e de seus órgãos de execução, o procedimento de celebração de acordos destinados a encerrar, mediante negociação, ações judiciais, ou a prevenir a propositura destas, que envolvam débitos da União. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 4, 2 set. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 9 abr. 2025.

BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2015]. Disponível aqui. Acesso em: 9 abr. 2025.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). **Grupo de Trabalho discute soluções para reduzir ações judiciais contra o poder público**. Brasília, DF: STF, 26 jun. 2024. Notícia. Disponível aqui. Acesso em: 9 abr. 2025.

  SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Em quatro anos, acordo STJ-AGU encerra quase 3,8 milhões de processos e aprimora gestão de precedentes. Brasília, DF: STJ, 1 abr. 2024. Notícia Institucional. Disponível aqui. Acesso em: 9 abr. 2025.

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1 BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2015]. Disponível aqui. Acesso em: 9 abr. 2025.

2 BRASIL. Advocacia-Geral da União. Procuradoria-Geral da União. Portaria Normativa PGU/AGU nº 3, de 17 de junho de 2021. Regulamenta os critérios para a dispensa da prática de atos e desistência de recursos, bem como procedimentos ligados a execuções e cumprimentos de sentença em face da União. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 9, 18 jun. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 9 abr. 2025.

3 BRASIL. Advocacia-Geral da União. Procuradoria-Geral da União. Portaria Normativa PGU/AGU nº 14, de 17 de novembro de 2022. Altera a Portaria PGU nº 11, de 8 de junho de 2020, a Portaria Normativa PGU/AGU nº 3, de 17 de junho de 2021, a Portaria Normativa PGU/AGU nº 5, de 3 de agosto de 2021, a Portaria Normativa PGU/AGU nº 6, de 18 de agosto de 2021, e a Portaria Normativa PGU/AGU nº 7, de 18 de agosto de 2021. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 2, 18 nov. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 9 abr. 2025.

4 BRASIL. Advocacia-Geral da União. Procuradoria-Geral da União. Portaria Normativa PGU/AGU nº 21, de 22 de agosto de 2024. Regulamenta, no âmbito da Procuradoria-Geral da União e de seus órgãos de execução, o procedimento de celebração de acordos destinados a encerrar, mediante negociação, ações judiciais, ou a prevenir a propositura destas, que envolvam débitos da União. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 4, 2 set. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 9 abr. 2025.

5 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). **Grupo de Trabalho discute soluções para reduzir ações judiciais contra o poder público**. Brasília, DF: STF, 26 jun. 2024. Notícia. Disponível aqui. Acesso em: 9 abr. 2025.

6 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Em quatro anos, acordo STJ-AGU encerra quase 3,8 milhões de processos e aprimora gestão de precedentes. Brasília, DF: STJ, 1 abr. 2025. Notícia Institucional. Disponível aqui. Acesso em: 9 abr. 2025.

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Mariana Freitas de Souza é advogada e mediadora. Presidente do ICFML Brasil. Diretora do CBMA. Membro da Comissão de Mediação do Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ. Membro da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem do IAB. Membro do Global Mediation Panel da ONU. JAMS Weinstein International Fellow. Sócia do PVS Advogados.

Samantha Longo é advogada, mediadora e professora. Membro do FONAREF - Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências e membro do Comitê Gestor de Conciliação, ambos do CNJ. Presidente da Comissão de Mediação da OAB/RJ. Diretora de Mediação do CBMA. Doutoranda e Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pela UniCuritiba. Capacitada em Negociação e Liderança pela Universidade de Harvard. LLM. em Direito Empresarial pelo IBMEC/RJ. Autora de diversos artigos, coordenadora de obras coletivas, coautora da obra "A Recuperação Empresarial e os Métodos Adequados de Solução de Conflitos" e autora do livro "Direito Empresarial e Cidadania: a responsabilidade da empresa na pacificação dos conflitos". Sócia do Longo Abelha Advogados.