Migalhas das Civilistas

Quem, de fato, performa o mito de Medeia no divórcio ou dissolução de união estável?

O mito de Medeia revela-se no divórcio moderno: a justiça ainda enxerga mães como vilãs, ignorando a violência paterna real que sacrifica a infância e perpetua o machismo estrutural.

29/4/2025

O mito de Medeia é contundente ao versar a miséria humana diante do abandono/perda, da separação. A tragédia narrada por Eurípedes retrata a feiticeira Medeia, então esposa do herói Jasão, irremediavelmente colérica diante da separação e do propósito de Jasão em desposar Glauce, princesa de Corinto. Tomada pelo ódio, Medeia presenteia a noiva com um vestido, o qual incendeia quando provado, matando Glauce e seu pai. Não contente, Medeia ainda mata os filhos que teve com Jasão e foge para Atenas. Jasão, completamente destroçado, se prostra à sombra de sua nave Argo, já avariada, sendo morto pela proa que despenca1.

Esse mito tem sido trabalhado na psicologia e psicanálise sempre pelo viés do feminino, para problematizar a mulher enquanto mulher/esposa/companheira/amante e/ou mãe2. Há até mesmo quem relacione Medeia à alienação parental3. Medeia seria, assim, a síntese da mulher fatalmente ferida em seu amor, inconsolável pela perda/abandono e separação, cega de ódio, sedenta por vingança daquele a quem devotou todo seu afeto, dedicação e intelecto, sacrificando até mesmo suas origens4.

No entanto, a despeito de sempre ser chocante que uma mãe cometa uma atrocidade contra a própria prole em uma circunstância de separação, a experiência aponta que são os pais/homens os verdadeiros coléricos inconsoláveis5. Não há uma única semana no país sem notícias de um homem que atenta contra a vida da ex-esposa/companheira e/ou da prole, infelizmente muitas vezes obtendo êxito6. A verdadeira noção estatística disso, no entanto, é incompleta. As apurações mais detalhadas circunscrevem-se ao feminicídio, e quanto à violência contra crianças e adolescentes as apurações mais confiáveis não identificam especificamente os casos de filicídio e tampouco a autoria do crime conforme gênero, idade, grau de instrução entre outros critérios7.

Para além do filicídio, são inúmeros os casos, na vivência do direito de família, que mostram a instrumentalização da prole pelo pai/ex-esposo/companheiro, sacrificando-a em seu desenvolvimento psíquico-emocional (uma espécie de morte), para atingir a mãe/ex-esposa/companheira: desde atos aparentemente inofensivos (combinar “segredos” que não podem ser ditos à mãe, fazer passeios ao invés de dar continuidade à rotina escolar, negligenciar a rotina de cuidados básicos como alimentação e sono, ser permissivo com uso de telas, entre outros, para, supostamente, ser um “pai legal”), até atos mais graves, como abandono afetivo e patrimonial, negligência capaz de comprometer a integridade da criança e adolescente e/ou maus-tratos psicológicos e emocionais (ainda que velados) e físicos durante a convivência.

Essa realidade não é só alarmante pelo que representa em relação à criança e adolescente, as mais indefesas vítimas de uma tal conduta, mas pelo fato de que, na vivência da advocacia na área, é notória a falta de apuração adequada de dados atinentes, seja pela ineficiência ou limitação de estudos sociais e perícias psicológicas realizadas nos processos de família, seja pela deslegitimação da narrativa das mães/mulheres, ou, ainda pior, por uma postura judicial ora indiferente, ora manifestamente refratária ao enfrentamento de tais questões, no mais das vezes sob o manto do discurso de “objetividade” na “busca da solução do conflito”. 

Para além da discussão sobre a pertinência da lei de alienação parental (lei 12.318/10 – LAP), cujo conteúdo abarca apenas uma parte da conduta de genitores coléricos (inclusive a instrumentalização da própria LAP), há uma “morte”: todo divórcio/dissolução turbulento/a, porque o pai/ex-esposo/companheiro instrumentaliza a prole para atingir a mãe/ex-esposa/companheira, “mata” aspectos e potencialidades psíquicas e emocionais das crianças e adolescentes envolvidos, impedindo seu pleno desenvolvimento em franca violação à Constituição e ao ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente.

A não apuração desses dados serve à continuidade dos fatos que lhe são subjacentes. Como uma patologia cujo sintoma se percebe, mas em relação à qual nada se apura, acaba que nenhum remédio adequado é prescrito. Todos se mostram paliativos.

Uma segunda camada dessa realidade diz respeito à perpetuação da visão estrutural machista no âmbito judicial: o mito de Medeia atribuído à mulher que “ousa” se separar e, ainda mais, litigar é notório. Percebe-se isso na redação das peças de causídicos(as) que se prestam à reprodução desse discurso, representando pais/ex-esposos/companheiros praticamente “canonizados”, como também em decisões judiciais que aderem a tal discurso ainda que inconscientemente. O resultado há muito é conhecido. A despeito de avanços realizados, estamos longe de um judiciário infenso à estrutura machista que reiteradamente valida narrativas masculinas e deslegitima as femininas, muitas vezes resultando em prejuízo a crianças e adolescentes.

Não por acaso, o CNJ elaborou, por meio de Grupo de Trabalho instituído pela portaria 27/21, o chamado Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero8, a partir do qual resultaram instituídas as diretrizes estabelecidas pela resolução 492/239. O propósito do CNJ é concretizar, no âmbito do judiciário, não só os ditames constitucionais relativos à vedação de qualquer discriminação e à promoção de igualdade entre os gêneros, como também efetivar os direitos humanos desde uma perspectiva interseccional.

Na prática, o protocolo CNJ busca combater as questões centrais de desigualdade de gênero: (i) desigualdades estruturais; (ii) divisão sexual do trabalho; (iii) estereótipos de gênero; (iv) violência de gênero (em todos os sentidos, inclusive a processual).

E é interessante notar que, quanto aos estereótipos, no tópico “Pensando sobre a operação de estereótipos no direito e na atividade jurisdicional – exemplos e questões”, o protocolo CNJ aborda especificamente a possibilidade do estereótipo influenciar a apreciação de determinado fato considerando apenas evidências que reafirmam, por exemplo, o estereótipo “em disputas de guarda envolvendo acusações de alienação parental, a partir da ideia preconceituosa de que as mulheres são destemperadas, vingativas, volúveis e menos racionais do que os homens”10.

No entanto, conforme o Banco de sentenças e decisões com aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, mantido pelo CNJ11, até o momento, no Brasil inteiro, há registro de apenas 408 sentenças/decisões no âmbito de direito de família guiando-se pelo protocolo.

Em tal cenário, “reflexões críticas” advertindo das “armadilhas” presentes nos protocolos CNJ de perspectiva de raça e gênero, sob o argumento, em suma, de “vieses” capazes de comprometer as melhores das intenções, acabam se mostrando despropositadas.12

A realidade efetiva, de quem atua no âmbito do direito de família e, sobretudo, lida com casos envolvendo violência doméstica, e da jurisdicionada, mulher e mãe, está longe do ideal conjecturado em tal protocolo CNJ. No imaginário social e judicial ainda é atribuído à mulher o lugar de Medeia, contrariando a experiência, convenientemente jamais apurada em dados precisos, da conduta colérica e nefasta de pais/ex-esposos/companheiros em relação à própria prole, instrumentalizando-a para atingir suas ex-esposas/companheiras, senão para causar intenso e perene sofrimento, ao menos para causar constante angústia.

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1 EURÍPIDES. Medeia. Edição bilingue. Tradução, posfácio e notas Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2010.

2 Vide, exemplificativamente: SCHAFFA, Sandra. Medeia, o feminino, in Jornal de Psicanálise, São Paulo, 42(76): 51-64, jun. 2009; DELUIZ, Cristiana. MEDEIA: para além do mito, uma mulher em atos, in EVOCATIO Revista Luso-Brasileira de Filosofia, Artes e Cultura, V. 4, n. 11, 2024; ROSSI, Jean Pablo; SANTOS, Cláudia Raquel Padovani dos; BRESCANSIN, Lívia Y.. “Entre o amor e o ódio”: contribuições do mito da “Medéia” de Eurípedes para o estudo da ambivalência materna, in APRENDER – Cad. de Filosofia e Psic. da Educação, Ano XIV, n. 23, jan./jun.2020, pp. 153-174; MARCOS, Cristina Moreira; SILVA, Thaís Limp. Madeleine e Medeia: mulheres além da maternidade, Psicologia em estudo, disponível aqui. Acesso em 9/4/25;

3 MATIOLI, Aline Spaciari; MARTINEZ, Viviana Velasco Carola. De Medeia à alienação parental: traduções trágicas para o excesso pulsional, in Tempo psicanalítico, v. 53, n. 2, p. 164-193, dez.  2021, disponível aqui. Acesso em 9/4/25.

4 O Rei Eetes, pai de Medeia, havia prometido a entrega do velocino a Jasão mediante o cumprimento de uma tarefa impossível. Medeia, encantada por Jasão, o auxilia com seus feitiços e Jasão consegue o velocino, fugindo ambos em sua nave Argo. Para dissuadir o pai da perseguição, Medeia leva seu irmão pequeno junto, despedaçando-o e jogando pedaços ao mar de forma que seu pai desiste da perseguição a Jasão para juntar o que pode do filho em vista de um funeral. MATYSZAK, Philip. Os mitos gregos e romanos: um guia das narrativas clássicas. Tradução de Camila Aline Zanon. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2022, p. 139.

5 As taxas de feminicídio falam por si: conforme apuração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023 1.463 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, representando um, crescimento de 1,6% comparado ao ano anterior, e o maior número já registrado desde a lei Maria da Penha. Vide publicação especializada disponível aqui. Acesso em 9/4/25.

6 Uma das últimas notícias mais impactantes diz respeito ao caso do menino Theo, no Rio Grande do Sul, cujo pai, Tiago Ricardo Felber, após tentar esganar o filho um dia antes, decidiu lançar a criança de 5 anos de uma ponte. Segundo narrativa do próprio pai, autor do filicídio, ele fez “uma loucurinha”, e em seguida gravou áudio dizendo “aguenta o coração para o resto da vida, atirei o Théo ‘debaixo’ da ponte agora”. A motivação do crime: vingança contra a ex-esposa, mãe do menino. Vide as notícias veiculadas: disponível aqui, e aqui. Acesso em 9/4/25.

7 Exemplificativamente: Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, desenvolvido pela UNICEF Brasil a partir do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), disponível aqui. Acesso em 9/4/25; e o relatório anual Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), disponível aqui. Acesso em 9/4/25, o qual também toma por base a apuração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre outros dados. Há, outrossim, outro estudo viabilizado pelo IPEA, de Helder Ferreira, sob o título “O crescimento dos homicídios de crianças e adolescentes no brasil: 1980 a 2003”, disponível aqui. Acesso em 9/4/25.

8 Disponível aqui. Acesso em março de 2025.

9 Publicada no DJe/CNJ 53/23, de 20/3/23, p. 2-4 e disponível aqui. Acesso em março de 2025.

10 Vide, disponível aqui, página 29.

11 Vide, disponível aqui. Acesso em 9/4/25, mesma data da pesquisa no banco de dados respectivo.

12 Refiro-me ao artigo As armadilhas dos julgamentos sob 'perspectiva' propostas pelo CNJ, de Lênio Luiz Streck, veiculado pelo Consultor Jurídico em 5/12/24, disponível aqui , último acesso em 9/4/25. Em contraponto dialógico ao artigo de Lênio Streck, ver os artigos que se sucederam também no Consultor Jurídico: SEVERO, Valdete Souto. Por que protocolos para julgamento com perspectiva racial e de gênero? Diálogo necessário, veiculado em 19/12/24, disponível aqui, último acesso em 9/4/25, e SEVERI, Fabiana. Julgamentos sob perspectiva: análise sobre armadilhas citadas por Lenio Streck, veiculado também em 19/12/24, disponível aqui, último acesso em 9/4/25.

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Flávia Alessandra Naves Silva Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Diretora de Diversidade de As Civilistas. Vice-coordenadora da Comissão Nacional de Pesquisas do IBDFAM - Núcleo Sul/Sudeste. Advogada. Professora em cursos de graduação e pós-graduação.

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Thaís Sêco Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Doutora em Direito pela UFMG. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Conselheira Executiva da Associação As Civilistas.