Migalhas de Direito Médico e Bioética

O pacto da trindade: Medicina, direito e seguros

A interconexão entre medicina, direito e seguros, evidenciando como a trajetória histórica e a judicialização demonstram a necessidade de segurança e conduta ética. O autor faz referências históricas e filosóficas para contextualizar o gerenciamento de riscos e a importância da integração desses campos.

30/9/2024

Aspectos premissológicos da lógica filosófica.

Na matemática, bem como na numerologia, o número 3 é considerado perfeito. Segundo Pitágoras: "O princípio de tudo é o número."Este número, de tão fundamental, está presente em muitos aspectos essenciais do universo e da vida humana. Vejamos alguns exemplos:

  1. No estado da matéria: Sólido – Gasoso – Líquido;
  2. No Homem: Corpo – Mente – Espírito;
  3. Na santíssima trindade: Pai – Filho – Espírito Santo;
  4. Na Teoria da separação dos poderes de montesquieu: Legislativo – Executivo – Judiciário; entre outros.

Neste conceito, a existência de uma tríade representa um ideal de excelência.

A medicina e o Direito, enquanto campos de estudo e prática, têm sido pilares da civilização por séculos. A medicina, como ciência, e o Direito, como sistema de codificação, têm mais de três séculos de evolução. Os seguros, enquanto contratos e apólices, surgiram em Gênova, na Itália, no ano de 1347.2

O que esses três campos têm em comum, além de sua longa trajetória histórica? Um autor desconhecido relatou de forma perspicaz: "0 ser humano sempre esteve preocupado com a estabilidade de sua existência."3

A busca por melhores condições de vida, a necessidade de proteção contra perigos, as incertezas sobre o futuro, a fragilidade e a necessidade de restaurar a saúde têm sido constantes na experiência humana.

Viver envolve riscos. Como afirmou Sir William Osler, "a Medicina é a ciência das incertezas e a arte da probabilidade."4 Já o Direito é descrito por Wilson Campos de Souza Batalha como um conjunto de normas que regula a vida externa e as relações humanas.5 E o seguro, essencialmente, é um mecanismo para transferir o risco de uma pessoa para outra.

Embora tenham evoluído ao longo dos séculos, os riscos permanecem uma constante na vida humana.

Da medicina ao Direito – Um dueto entorno da judicialização da relação médico-paciente.

Malgrado a medicina e o Direito não tenham se transformado em ciências, juntas, foram frutos de um mesmo tempo, em que se primava da razão e valorava-se o saber, por meio da chegada do Renascimento e do Iluminismo.

O processo de como a Medicina torna-se ciência, bem destacado por Camila Vasconcelos, teve como marco a publicação da obra “Uma Introdução ao Estudo da Medicina Experimental”, em 1865, pelo médico francês Claude Bernard.6

De outro lado, em 1794, surge o código da prússia, considerado por muitos o primeiro código moderno, influenciado pelos pensamentos iluministas e das construções do jusracionalistas.

Desde então, ambas as ciências andavam desapartadas. Cada qual por si!

Eis que, em oposto a todo o processo iluminista e renascentista que tantos bons frutos deram para a humanidade, pairou-se o tempo nefasto do autoritarismo, extremismo e as atrocidades ocorridas na Segunda Grande Guerra Mundial.

É sobre os escombros, descobertas dos campos de extermínios humanos e de milhões de corpos das batalhas travadas, inclusive com o uso de arma de destruição em massa, que a medicina e o Direito se encontraram!

A Segunda Guerra nos mostrou que não existe o limite para o mal, ainda que sobre um falso pretexto da prática do bem.

Emerge no pós-guerra, notadamente no julgamento de Nuremberg, em 1945-1947, a necessidade de se codificar os limites da medicina, questionando a ciência, em suas práticas e objetivos, até então impensável.

Porquanto, surge aí um grande marco para a “bioética”!

Vejamos o que diz a primeira parte do Código de Nuremberg de 1947: “1. O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial.”7

Antes de ser ciência, a medicina era ética, arte!

Para tanto, basta citar o juramento do pai da Medicina, o grego Hipócrates: “Antes de tudo, não causar o dano.”

Se por um lado a bioética trouxe um valioso arcabouço de direitos dos pacientes e não-pacientes, por outro, inegável e legitimadamente impôs aos médicos maiores deveres.

A não observância destes deveres médicos, não é mera violação aos direitos dos pacientes, em detrimento da ciência médica ou de seu avanço. Mas desrespeito ao propósito maior da própria Medicina, enquanto preservação da saúde humana: “Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”. OMS em 1948.8

A judicialização da Medicina emerge no contexto de uma proteção ampliada para os pacientes mais vulneráveis na relação médico-paciente. Eclodido nos EUA, esse fenômeno está se tornando cada vez mais presente no Brasil. Fatores específicos do país, como o aumento do número de cursos de Medicina, a ampliação da força de trabalho médica e as mudanças na estrutura de trabalho dos profissionais de saúde, estão contribuindo para a elevação dessas ações judiciais.

Segundo o infográfico de 2024, "Panoramas da Judicialização da Medicina no Brasil", elaborado por Renato Assis e baseado em dados do CFM e do CNJ de 2023, o cenário atual revela um aumento na judicialização.9 Independentemente das causas desse crescimento, é evidente que os médicos estão enfrentando um número crescente de questionamentos sobre sua conduta ética e os possíveis danos causados aos pacientes.

Saímos de um modelo paternalista e tradicional da medicina para um modelo de empoderamento do paciente e humanístico da medicina atual. Já nos encontramos na medicina dos 4Ps: Preditiva; Preventiva; Personalizada e participativa/proativa.10

É inegável que, atualmente, os médicos enfrentam uma série de deveres e obrigações que antes não existiam. Isso implica que eles estão sujeitos a riscos que não enfrentavam anteriormente. Atualmente, não é mais aceitável que um médico não dialogue com o paciente sobre os riscos e benefícios da conduta médica proposta.

O processo de obtenção do consentimento informado implica na aceitação de riscos por ambas as partes: o paciente, que, após ser adequadamente informado, exerce sua autonomia ao aceitar ou recusar o tratamento, e o médico, que deve esclarecer de maneira clara e completa os objetivos esperados, benefícios, riscos, efeitos colaterais, complicações, duração do tratamento e cuidados necessários. O CFM recomenda que o médico forneça essas informações de forma suficiente para justificar a escolha da terapia (Recomendação CFM 01/16).11 Além disso, é fundamental que o médico respeite a decisão do paciente, mesmo após fornecer todas as informações necessárias.

Em resumo, a judicialização da Medicina reflete a crescente demanda por maior transparência e responsabilidade na prática médica. Para enfrentar esse cenário, é crucial que médicos e pacientes mantenham um diálogo aberto e esclarecedor, assegurando que as decisões sobre o tratamento sejam tomadas com um entendimento claro e mútuo das opções, riscos e benefícios envolvidos. Esse approach não só protege os direitos dos pacientes, mas também contribui para a redução de litígios e promove uma prática médica mais ética e responsável.

Hat-trick da medicina! Barba, cabelo e bigode para a sociedade de riscos. Um pódio que todos nós merecemos.   

Em 1986, o sociólogo alemão Ulrich Beck publicou o livro "Sociedade de Risco", logo após o desastre de Chernobyl. Neste trabalho, Beck explora a ideia de uma cultura centrada na gestão de riscos, que exige conhecimento para prevenir perigos e proteger-se em situações de emergência. Atualmente, vivemos em uma sociedade que demonstra crescente preocupação com o futuro e com a segurança, o que intensifica a percepção de riscos gerados pela própria sociedade.12

Assim, o conceito de "risco" tornou-se parte do nosso cotidiano. Mas como podemos controlar esses riscos? A resposta está na gestão de riscos, ou Risk Management. Este processo não é exclusivo de um grupo seleto nem significa a limitação das atividades a que se aplica. O estudo histórico da administração de riscos serve como base para aprimorar métodos que identificam os riscos em suas diversas formas.

Na indústria da aviação, por exemplo, a segurança não é baseada apenas em teorias ou previsões, mas em experiências passadas, com muitos acidentes e situações que, infelizmente, foram vivenciadas. Da mesma forma, na medicina, o gerenciamento de riscos é essencial. Médicos não podem se afastar da profissão por medo de falhar ou de ser acusados de erro médico. Assumir certos riscos é inerente a muitas atividades, incluindo a prática médica.

Os riscos podem ser controlados, reduzidos, eliminados ou mitigados. A gestão de riscos é viável e frequentemente necessária. Na medicina, o avanço nos cuidados ao paciente é uma forma de gestão de riscos, assim como os controles de infecção hospitalar. A assinatura do TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido é outro exemplo de gestão de riscos, pois garante que o paciente esteja devidamente informado e que sua autonomia seja respeitada.

Em um cenário de crescente judicialização e complexidade na relação médico-paciente, com potencial para danos irreparáveis, alguns países já adotam mecanismos de gestão e transferência de risco, como o seguro de responsabilidade civil profissional para médicos - RCP. Exemplos incluem os EUA, Portugal, Argentina, Alemanha e Inglaterra.

Imagine um paciente que, sabendo que seu médico é um excelente profissional que adota as melhores práticas e mantém um diálogo ativo com ele, também está protegido por um seguro de responsabilidade civil profissional contratado pelo médico. Se ocorrer um erro médico grave, o seguro pode cobrir despesas com tratamentos das sequelas, além de pensão e indenização por danos morais e estéticos. Nesse cenário, o paciente é compensado pelos danos, e o médico não enfrenta prejuízos financeiros.

Assim, tanto o médico quanto o paciente se beneficiam do seguro de responsabilidade civil profissional. O médico é protegido contra prejuízos financeiros, enquanto o paciente recebe a devida compensação. Além disso, a sociedade também se beneficia, pois evita que vítimas de erros médicos fiquem desamparadas.

Atualmente, o médico conta com protocolos e melhores práticas médicas, além do médico, como forma de prevenção e mitigação de riscos. A integração entre medicina, Direito (especialmente o médico e bioética) e seguros é essencial. Cada um desses componentes desempenha uma função essencial: a Medicina proporciona o cuidado direto ao paciente, o Direito estabelece as normas e a Bioética orienta o comportamento ético.

No exemplo da prática médica mais segura, o médico é como o paraquedista em salto, a medicina é a técnica aprendida, o direito médico é o paraquedas principal e o seguro de responsabilidade civil profissional é o paraquedas reserva. Cada um tem seu papel e responsabilidade. Ter um seguro de RCP não isenta o médico de sua responsabilidade de mitigar riscos, assim como a assinatura do TCLE não substitui o diálogo e a adoção das melhores práticas médicas no cuidado com o paciente.

Abrir mão de práticas sólidas na medicina, do direito médico e do seguro de responsabilidade civil profissional é comparável a um país renunciar às medalhas de ouro, prata e bronze conquistadas nas Olimpíadas, no mesmo pódio e na mesma modalidade esportiva.

Conclusão.

Por fim, o número 3, que tem sido associado historicamente à perfeição e totalidade em várias áreas do saber e da vida humana, também está presente nesta tríade: Medicina, e seguro. Estas áreas, cada um com sua relevância e evolução ao longo do tempo, têm se entrelaçado em uma colaboração mútua para enfrentar os riscos, desafios e imprevistos que surgem no dia a dia.

A judicialização da medicina no Brasil revela um aumento significativo da busca por transparência e responsabilidade, evidenciando a necessidade de um diálogo aberto entre médico e pacientes e mecanismos de maior proteção para os profissionais da saúde, no exercício da medicina ética e esclarecido.

A integração entre medicina, Direito e seguro de responsabilidade civil profissional exemplifica a abordagem prática e multifacetada para a gestão de riscos. Cada um desses componentes desempenha uma função essencial: a medicina proporciona o cuidado direto ao paciente, o estabelece as normas e a bioética orienta o comportamento ético, enquanto o seguro oferece uma rede de proteção financeira e segurança. Juntas, essas esferas constituem um sistema resistente que busca não apenas mitigar os riscos, mas também garantir que tanto os pacientes quanto os profissionais da saúde sejam protegidos e respeitados.

Assim sendo, é fundamental compreender e apreciar a interdependência entre esses campos, para promover uma sociedade mais segura, tranquila e justa.

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1. SABOYA, Maria Clara Lopes. Pitágoras: Todas as coisas são números. Revista da Faculdade Eça de Queirós. 2015. Disponível aqui. Acesso em 20 agos. 2024.

2. ARIAS, José Eduardo Teixeira. Teoria Geral do Seguro. O Seguro no tempo. p. 09 e 10. Rio de Janeiro. Editora Escola de Negócios e Seguros – ENS. 2021.

3. DIEHL, Leandro. Grandes nomes do raciocínio clínico 6: Sir William Osler. Raciocínio Clínico. A Ciência e arte do diagnóstico. 2021. Disponível aqui. Acesso em 19 ago. 2024.

4. NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito/ Paulo Nader. Ed,- Rio de Janeiro: Forense, 2015.

5. VASCONCELOS, Camila. Direito Médico e Bioética. História e judicialização da relação médico-paciente. p. 16. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris. 2020. 

6. Código de Nuremberg. Centro de Bioética do CREMESP. Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2024.

7. CRUZ, Marly Marques da. Concepção de saúde-doença e o cuidado em saúde. Fiocruz. Disponível aqui. Acesso em 18 ago. 2024.

8. ASSIS, Renato. Infográfico 2024. Judicialização da Saúde e da Medicina no Brasil. 2024.  

9. NAGOROLI, Rafaella; SILVA, Rodrigo da Guia. Debates Contemporâneos em Direito Médico e da Saúde. Capítulo 2. Inteligência Artificial na Análise Diagnóstica: Benefícios, Riscos e Responsabilidade do Médico. Disponível aqui. Acesso em: 10 set. 2024.

10. RECOMENDAÇÃO CFM 1/2016. Conselho Federal de Medicina. 2016. Disponível aqui. Acesso em: 17 ago. 2024.

11 RECOMENDAÇÃO CFM 1/2016. Conselho Federal de Medicina. 2016. Disponível aqui. Acesso em: 17 ago. 2024.

12. BECK, Ulrich. Sociedade de Risco. Rumo a uma outra modernidade. Editora 34. Disponível aqui. Acesso em 17 ago 2024.

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Colunistas

Alexandro de Oliveira é doutorando e mestre em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFRJ). Pesquisador, Advogado e Bioeticista. Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) , da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), da Sociedade Brasileira de Bioética (SPP), do Instituto Miguel Kfouri Neto (IMKN), Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federalcis Fluminense (UFF).

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.