Migalhas de Direito Médico e Bioética

A nova judicialização da saúde: Evidências, regulação e sustentabilidade em debate

A discute como a nova judicialização da saúde exige operadores jurídicos mais técnicos, diante de um Judiciário que demanda evidências, coerência clínica e atuação com visão sistêmica.

3/6/2025

A judicialização da saúde no Brasil, embora consolidada como fenômeno social e jurídico, encontra-se em plena transformação. Historicamente, no setor público, as demandas judiciais concentravam-se no fornecimento de medicamentos ou tratamentos não padronizados pelo SUS, ganhando robustez com os julgamentos do Tema 6 e do Tema 1234 de repercussão geral no STF. Tais precedentes buscaram estabelecer critérios objetivos para o deferimento de pleitos envolvendo o direito à saúde, em especial quando se trata de fármacos de alto custo.

Na saúde suplementar, por sua vez, a judicialização sempre orbitou em torno da extensão das coberturas contratadas, com especial atenção à (in)definição do caráter taxativo ou exemplificativo do rol da ANS. Por muito tempo, a questão central era: há ou não obrigação de custeio? Essa dualidade entre os setores, no entanto, começa a se dissolver à medida que os litígios deixam de se restringir ao acesso e passam a enfrentar questões mais técnicas, estruturais e sistêmicas.

Hoje, tanto o Poder Judiciário quanto os órgãos reguladores passam a exigir racionalidade e coerência técnico-científica nas condutas clínicas. A medicina baseada em evidências, anteriormente vista como uma diretriz de boas práticas, assume agora o papel de critério jurídico decisório.

Em 2024, o NatJus - Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário registrou mais de 98.631 notas técnicas, um aumento de 40% em comparação com o ano anterior. O NatJus já contabiliza mais de 286 mil notas técnicas registradas no total, sendo 138.057 produzidas pelo NatJus Nacional e 148.351 pelos núcleos estaduais e do Distrito Federal. O NatJus também emite pareceres, mas a quantidade de pareceres não é mencionada especificamente nos resultados da pesquisa1.

Medicina baseada em evidência é uma abordagem que busca otimizar a prática médica, utilizando a melhor evidência disponível para tomar decisões sobre o cuidado com o paciente. Em vez de confiar apenas na experiência pessoal ou em práticas tradicionais, a MBE busca integrar a pesquisa científica com a experiência clínica e as preferências do paciente. 

O NatJus é um órgão vinculado aos tribunais que fornece pareceres técnicos, com base na medicina baseada em evidências, para auxiliar juízes em decisões envolvendo demandas de saúde - tanto no SUS quanto na saúde suplementar.

As Cortes, por sua vez, começam a ponderar com mais rigor o nexo entre a conduta médica, os protocolos clínicos e os pleitos dos pacientes.

Esse novo paradigma levanta uma série de reflexões: o que é, afinal, uma evidência robusta? Como equilibrar o conhecimento científico com a escuta qualificada do paciente? Como decidir entre o custo-efetividade de uma conduta e o impacto individual de sua negativa?

Não por acaso, o sistema de saúde suplementar registra sinais de tensão. Em 2024, noticiou-se que o número de ações judiciais no setor ultrapassou 300 mil dobrando em relação aos últimos três anos2. O saldo de depósitos judiciais por parte das operadoras chegou a R$ 2,67 bilhões3.

O envelhecimento acelerado da população, com expectativa de 70 milhões de idosos em 2050, e a desaceleração do crescimento populacional prevista para 2041, divulgados pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e ONU - Organização das Nações Unidas, impõem um novo desafio: menos contribuintes jovens para financiar os custos crescentes da longevidade. A ANS tem repensado profundamente seu modelo regulatório, especialmente no que diz respeito à fiscalização do setor de saúde suplementar e à definição de critérios técnicos para incorporação de procedimentos.

Diante desse novo desenho, surgem possibilidades relevantes para mitigar conflitos: a inclusão de novos hospitais na rede credenciada, o aperfeiçoamento dos mecanismos de reembolso, maior implementação da telessaúde e o uso crescente da inteligência artificial na coordenação do cuidado.

Essas medidas, se bem implementadas, podem representar alternativas eficazes à judicialização - ou ao menos, instrumentos de racionalização do conflito.

A judicialização, nesse cenário, é tanto consequência quanto causa: pode ser uma tragédia para a sustentabilidade do sistema ou um remédio para forçar avanços regulatórios. A depender da resposta institucional - e da atuação técnica dos operadores do Direito -, seguirá suprindo lacunas ou se transformará em agente de coerência e aperfeiçoamento.

O profissional jurídico da saúde precisa, portanto, evoluir. Conhecer os fundamentos da medicina baseada em evidências, entender o funcionamento regulatório da ANS, compreender os fluxos operacionais dos hospitais e operadoras, e acompanhar os debates bioéticos contemporâneos deixou de ser um diferencial - tornou-se uma exigência.

A judicialização da saúde não é um fenômeno que será contido por decisões judiciais pontuais. É um processo em curso, que exige respostas estruturais. O Judiciário continuará a atuar enquanto o sistema falhar em antecipar e resolver os conflitos. A escolha está posta: evoluímos juntos - ou seguimos judicializando o desequilíbrio.

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1 REDE NATJUS. Rede NATJUS registra mais de 286 mil Notas Técnicas e se prepara para nova fase com o e-NATJUS 4.0. Disponível aqui.

2 BP MONEY. Número de ações contra planos de saúde cresce. Disponível aqui.

3 ISTOÉ DINHEIRO. Judicialização do setor de saúde chega ao limite no Brasil. Disponível aqui.

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Colunistas

Alexandro de Oliveira é doutorando e mestre em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFRJ). Pesquisador, Advogado e Bioeticista. Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) , da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), da Sociedade Brasileira de Bioética (SPP), do Instituto Miguel Kfouri Neto (IMKN), Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federalcis Fluminense (UFF).

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.