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Eutanásia e Morte Assistida na França: Um contraste com a realidade penal no Brasil

A coluna aborda a aprovação da morte assistida na França e contrasta com o tratamento penal da eutanásia e do suicídio assistido no Brasil.

30/6/2025

Recentemente, a Câmara dos Deputados da França aprovou projeto de lei que autoriza a prática da morte assistida, também denominado suicídio assistido, procedimento no qual um terceiro auxilia uma pessoa que deseja pôr fim à própria vida, geralmente fornecendo os meios ou orientações para que ela mesma realize o ato.1

Além disso, o projeto contempla a legalização da eutanásia ativa, que ocorre quando um profissional da saúde, geralmente um médico, administra diretamente uma substância letal ao paciente, com o objetivo de abreviar seu sofrimento diante de uma condição médica grave e irreversível.2

A proposta ainda precisa passar pelo crivo do Senado francês, onde possivelmente sofrerá alterações3. De todo modo, a iniciativa reacendeu debates intensos na sociedade francesa e internacional sobre os limites éticos, jurídicos e religiosos da intervenção médica no fim da vida, pois questões como o direito à vida, à autodeterminação do paciente, o papel do médico e os limites da dignidade humana são centrais nessa discussão.

No cenário brasileiro, por exemplo, as práticas da eutanásia e suicídio assistido continuam sendo criminalizadas, o que torna oportuno revisitar o seu enquadramento jurídico à luz do CP, bem como apresentar o PL 236/124, que versa sobre a temática.

Neste sentido, de acordo com o art. 121 do CP, aquele que mata alguém incorre em pena de reclusão de seis a vinte anos. No entanto, em seu parágrafo primeiro há um caso de diminuição de pena, que pode incidir nos casos em que o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, podendo, assim, o juiz reduzir a pena de um sexto a um terço.

Desse modo, no que diz respeito à eutanásia, seja ativa ou passiva5, tipificada no art. 121, § 1º, do CP, como homicídio simples-privilegiado, ou seja, quando um indivíduo, como um médico, tira a vida de outro, neste caso, de um paciente, porém, somente o faz em razão de relevante valor moral, como um ato de compaixão. Esta opção legislativa é explicada no item 39, da Exposição de Motivos da Parte Especial do CP:

Ao lado do homicídio com pena especialmente agravada, cuida o projeto do homicídio com pena especialmente atenuada, isto é, o homicídio praticado por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de emoção violenta, logo em seguida a injusta provocação da vítima. Por motivo de relevante valor social ou moral, o projeto entende significar o motivo que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática, como, por exemplo, a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima (caso de homicídio eutanásico), a indignação de um traidor da pátria, etc (Brasil, 1940).

Destarte, de acordo com o item 39 da Exposição de Motivos do CP, o homicídio pode ter a pena atenuada quando realizado sob situações que, embora tipifiquem um crime, são motivados por razões que encontram apoio moral ou ético, como no caso do homicídio eutanásico, no qual o ato ocorre movido pela compaixão diante do sofrimento extremo e irremediável da vítima, uma situação em que o objetivo é aliviar a dor e o sofrimento.

Verifica-se, pois, que o legislador optou por dar um tratamento mais brando nestas hipóteses, o que é benéfico para aquele que auxilia alguém a interromper a própria vida em razão de sofrimento.

Neste sentido, observa-se que no atual estágio do ordenamento jurídico brasileiro a chamada eutanásia configura crime de homicídio. O máximo que pode ocorrer em casos que tais e' o reconhecimento de uma redução de pena devido a` configuração do chamado homicídio privilegiado.6

A natureza jurídica do homicídio eutanásico, portanto, diz respeito a uma causa de diminuição de pena a ser aplicada em havendo a condenação do agente. Ademais, em termos processuais, como o Ministério Público poderá oferecer denúncia em razão da prática de crime doloso contra a vida - intenção e vontade de eliminar vida humana alheia - a competência é do Tribunal do Júri, que apreciará eventual privilégio frente ao ato, nos termos do art. 483, IV, do CPP.

No que diz respeito ao suicídio assistido, a tipificação penal seria diversa. Ambos os crimes estão presentes na Parte Especial do CP, no Título I, relativo aos crimes contra as pessoas, mais especificamente no Capítulo I, dos crimes contra a vida, de modo que a morte assistida se aloca no art. 122, do CP, que estabelece como crime persuadir ou encorajar alguém a cometer suicídio ou automutilação, ou prestar qualquer tipo de auxílio material para tal fim, de modo que a conduta é punível com reclusão que varia de 6 meses a 2 anos.

Ademais, o art. 122 do CP define que se a tentativa de suicídio resultar em lesão corporal grave ou gravíssima, sem a ocorrência de morte do indivíduo, a pena é aumentada para reclusão de 1 a 3 anos, e se o suicídio resultar, de fato, em morte, a pena é de 2 a 6 anos de reclusão.

Ressalta-se, ainda, que existem agravantes que duplicam a pena, como o motivo torpe, egoísta, ou quando a vítima é menor de idade ou possui capacidade de resistência diminuída, além de casos em que a conduta é realizada por meios virtuais ou em tempo real. Observa-se, neste caso, que não há qualquer causa de diminuição da pena.

Desse modo, caso um profissional da saúde cometa algum desses delitos, no momento da aplicação da pena devem ser observados os princípios constitucionais e penais da individualização da pena, da proporcionalidade e da culpabilidade, a fim de garantir uma resposta estatal adequada à gravidade do fato e à condição subjetiva do agente.

Não menos importante, insta salientar que no Brasil, o PL 236/12, também conhecido como “Novo CP”, de autoria do senador José Sarney, que está em tramitação no Congresso Nacional, propõe a criação de um tipo penal próprio para a eutanásia, que foi apresentado no art. 122 do novo códex e considera a prática um crime autônomo, de modo que não está mais vinculada a um crime principal (homicídio simples) para existir.

Neste sentido, ainda há presença da pena, definida em reclusão de dois a quatro anos ao agente que realiza, de modo a demonstrar que a proposta do possível novo dispositivo legal visa preservar a vida do indivíduo, mesmo que este tenha solicitado pela abreviação, de forma que, o bem jurídico fundamental - a própria vida - não pode ser cessado de maneira artificial, ainda que se trate de uma enfermidade irreversível que provoca sofrimento ao indivíduo.

Demais disso, o parágrafo primeiro do art. 122 apresentado determina ainda a possibilidade de extinção da punibilidade com o perdão judicial, conforme art. 107, IX, do CP vigente, a ser apreciado a depender das circunstâncias do caso concreto pelo magistrado responsável pelo julgamento do caso.

Ou seja, seria possível que o juiz não aplicasse a pena estabelecida, caso fossem reconhecidos graus de parentesco entre a vítima e o indivíduo que praticou ou se o agente possuísse vínculos afetivos, como no caso de um médico que trata um paciente à longa data, de modo a relativizar a aplicabilidade da imputação do crime de eutanásia.

Contudo, ainda que o “Novo CP” tenha inovado ao tipificar a eutanásia, deixou diversas lacunas abertas. Inicialmente, tem-se que mesmo colocando a eutanásia como figura autônoma e sendo proposto um marco penal menor, não há, de fato, diferença para o que já é estabelecido no atual ordenamento jurídico, uma vez que existe a causa de diminuição da pena - privilegiadora - do homicídio simples.

Ademais, observa-se que a redação permite que familiares realizem a prática sem que sejam responsabilizados, porém, em nada muda ao médico, pois a análise será subjetiva. Ora, como medir os laços de afeição do médico com a vítima? Será pelo tempo que ele a acompanha/assiste? Será pela afeição que desenvolveu em um curto tempo em decorrência de ser um indivíduo sensível? Será pelo estado de saúde e consequente sentimento de pena? Não há especificação.

Neste mesmo sentido, a “permissão” para que parentes realizem a prática também se mostra inviável, uma vez que na eutanásia, é imprescindível que seja a realização do ato pelo profissional da saúde qualificado.

Isso porque, os médicos e enfermeiros, por exemplo, são, de fato, capacitados para realizar a eutanásia, se for uma eutanásia ativa, por exemplo, são eles quem possuem o conhecimento para injetar um medicamento corretamente no paciente, ou no caso da eutanásia passiva, seriam os responsáveis por saber qual conduta deveria ser realizada no paciente e deixar de realizá-la.

Permitir que familiares possam realizar a eutanásia e, mais ainda, que não sejam punidos por isso, gera uma possibilidade de margem de erro na prática eutanásica. E se o familiar aplicar a medicação errada e, em vez de causar a morte do paciente, trazer sequelas piores que as existentes? E se o enfermo não morrer? Existirá diferenciação entre um familiar que irá praticar a eutanásia por compaixão daquele que irá realizar para que possa ter acesso a herança do enfermo, por exemplo? Poderá ser realizada a eutanásia em qualquer local? Inúmeras são as possibilidades de erro, tanto técnicos, quanto morais.

Neste sentido, deveria o referido projeto ter possibilitado a execução somente aos profissionais da saúde, ou, ao menos, deveriam estes figurar entre aqueles cuja pena pode ser afastada de acordo com o caso concreto. Trata-se, portanto, de uma norma penal em branco, uma vez que, se aprovada, seria necessário realizar complementação ao conteúdo apresentado, pois permanece omissiva em pontos essenciais, conforme apresentado.

Destarte, diante de todo o apresentado, conclui-se que a eutanásia e o suicídio assistido são temas complexos que envolvem aspectos jurídicos, éticos, médicos e sociais. Assim, ainda que o PL 236/12 tente avançar no tratamento normativo da eutanásia ao propor sua tipificação autônoma e prever hipóteses de perdão judicial, sua redação carece de maior precisão e segurança, especialmente quanto à definição de quem pode praticar o ato e sob quais condições.

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1 MASSON, Cleber. Direito Penal – Parte Especial (arts. 121 a 212). 17ª ed. São Paulo: Método, 2018. p. 96.

2 FERRAZ, Octavio Luiz Motta. Eutanásia e homicídio – matar e deixar morrer: uma distinção válida? Revista de Direito sanitário. São Paulo, v. 2, nº 2, julho 2001, p.101.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 Explica-se: a eutanásia ativa consiste em uma ação comissiva do agente, na qual o médico, por exemplo, irá, de fato, realizar uma conduta que acarretará a morte do paciente, como aplicar uma injeção letal. A eutanásia passiva, por sua vez, consiste em uma ação omissiva, momento em que o agente deixará de realizar uma ação, isto é, por meio de uma conduta negativa, de um não fazer, quando deveria, irá provocar a morte antecipada do paciente, como a interrupção de um tratamento que ainda possui potencial de benefício para o paciente.

6 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito penal: parte especial I: arts. 121 a 212. São Paulo: Saraiva, 2012.

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Alexandro de Oliveira é doutorando e mestre em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFRJ). Pesquisador, Advogado e Bioeticista. Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) , da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), da Sociedade Brasileira de Bioética (SPP), do Instituto Miguel Kfouri Neto (IMKN), Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federalcis Fluminense (UFF).

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.