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A desinformação no mercado da estética: O agravamento da vulnerabilidade do consumidor

Em um mercado estético cada vez mais digital, Roberta dos Santos Rodrigues expõe como o CDC protege o consumidor vulnerável, destacando o dever de informação clara e os riscos da desinformação para a saúde, segurança e escolhas conscientes.

20/10/2025

Em um mercado de beleza cada vez mais digital, o CDC atua como um escudo, assegurando especial proteção a quem busca serviços estéticos. Com previsão na CF/88, essa proteção se baseia no reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, que, em uma relação de consumo, se encontra em posição de desigualdade em relação ao fornecedor. Essa salvaguarda é materializada pelo art. 6º do CDC, que assegura a proteção da vida, saúde e segurança (inc. I), além do direito à informação adequada e clara sobre os serviços e seus riscos (inc. III).

Essa assimetria se manifesta de várias formas, sendo a vulnerabilidade informacional uma das mais relevantes, especialmente em uma sociedade conectada. Se antes a vulnerabilidade informacional se limitava à dificuldade de acesso a dados sobre um produto ou serviço, hoje ela ganha contornos mais complexos com a proliferação da desinformação.

O STJ, ao julgar o REsp 1.358.231/SP, reconheceu a vulnerabilidade informacional do consumidor, enfatizando que a troca de informações de maneira globalizada e em tempo real confere amplo poder àqueles que detêm informações privilegiadas, e que nas relações de consumo a informação sobre o produto ou serviço é indispensável ao processo decisório de compra.

No setor de serviços de estética, o consumidor se torna particularmente vulnerável, imerso em um ambiente onde as promessas de transformação estão por toda parte, mas a ausência de informações claras pode comprometer diretamente sua saúde e segurança.

O déficit informacional desponta como um dos principais fatores de desequilíbrio. A falta de acesso às informações adequadas sobre o produto ou serviço, coloca o consumidor em uma posição de suscetibilidade, incapaz de constatar a veracidade dos dados1.

E essa preocupação não se limita ao Brasil. A ONU - Organização das Nações Unidas, em sua resolução 39/248 de 1985, destaca a importância do acesso à informação adequada como um dos princípios para a proteção do consumidor. A norma defende que as práticas de promoção e vendas devem ser conduzidas pelo princípio de tratamento justo, de modo que o consumidor receba informações precisas para fazer escolhas independentes2.

No Brasil, o direito fundamental à informação é assegurado expressamente pela CF/88, no art. 5º, inciso XIV. De forma mais delineada, o CDC, em seu art. 6º, inciso III, o consolida como um dos direitos básicos do consumidor, assegurando a "informação adequada e clara sobre os diferente produtos e serviços" incluindo suas características e riscos. Além disso, o inciso IV do mesmo dispositivo atua como uma salvaguarda, protegendo o consumidor contra a "publicidade enganosa e abusiva".

Dessas disposições decorre um dever de informar que atinge todos os participantes da cadeia de produção, sendo seu cumprimento essencial para a construção de confiança e a garantia da boa-fé na relação de consumo 3-4. No entanto, a crescente propagação da desinformação pode minar essa confiança e agravar a vulnerabilidade do consumidor.

Nas últimas décadas, a estética assumiu importante papel no processo de seleção que rege as relações humanas. A ausência de beleza pode significar a exclusão social, relegando o indivíduo a uma posição marginalizada, visto que o atual império da beleza não comporta o que é considerado "fora do padrão"5. Segundo a ISAPS - Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética, os procedimentos estéticos aumentaram mais de 40% nos últimos quatro anos6. No Brasil, a procura por procedimentos estéticos cresceu 390% em 20237.

Nesse cenário, a desinformação se avoluma. De acordo com a Anvisa, em 2023 os serviços de estética e embelezamento apareceram como os mais denunciados, representando 60% das queixas8, colocando a saúde do consumidor em risco, já que os procedimentos oferecidos podem não ter base científica e não seguirem as normas mínimas de segurança. Como exemplo, pode-se citar anúncios de procedimentos ou uso de substâncias que destacam apenas os benefícios, sem apontar os riscos inerentes, influenciando diretamente a decisão do consumidor e aumentando a possibilidade de ocorrência de danos.

Por isso, é necessário promover e respeitar a autonomia do consumidor. O profissional da área de estética tem o dever de prestar todos os dados essenciais do procedimento ou tratamento proposto. As informações não podem ser viciadas, rasas ou incompletas, mas sim qualificadas e completas para que o consumidor exerça sua escolha de forma plena e consciente, consentindo ou recusando o serviço, sem comprometer a sua autonomia e a livre manifestação de sua vontade9.

O que era para ser um investimento na beleza e bem-estar pode levar à frustração e baixa autoestima, assim como problemas de saúde, inclusive mental, já que a aparência física tem se traduzido em uma afirmação dentro da sociedade10.

É preciso promover a conscientização dos consumidores acerca dos riscos da desinformação no mercado de estética. Além disso, a fiscalização dos serviços e dos profissionais, a promoção de campanhas educativas e a adoção de práticas transparentes pelos fornecedores são fundamentais para a plena proteção do consumidor.

Em um mercado em constante expansão como o da estética, o esforço conjunto de todos os envolvidos - Estado, fornecedores e os próprios consumidores - é a chave para assegurar que a vulnerabilidade não se torne uma hipervulnerabilidade, e que os direitos à saúde e à segurança do consumidor sejam respeitados.

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1 MIRAGEM, Bruno. Princípio da Vulnerabilidade: Perspectiva Atual e Funções no Direito do Consumidor Contemporâneo. In. MIRAGEM, Bruno; MARQUES, Claudia Lima; MAGALHÃES, Lucia Ancona Lopez de Orgs.. Direito do Consumidor 30 anos de CDC: Da Consolidação como Direito Fundamental aos Atuais Desafios Da sociedade. Rio de Janeiro: Forense, 2020, cap. 8, E-book.

2 ONU. Resolução n.º 39/248, de 09 de abril de 1985. Diretrizes para a proteção ao consumidor. Disponível aqui.

3 BARBOSA, Fernanda Nunes. O dano informativo do consumidor na era digital: uma abordagem a partir do reconhecimento do direito do consumidor como direito humano. In. BORGES, Gustavo; MAIA, Maurilio Casas Orgs.. Novos Danos na pós-modernidade. 1. ed. Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido, 2020, cap. 1, pp. 25-53.

4 VERBICARO, Dennis; VIEIRA, Janaína do Nascimento; FREIRE, Gabriela Ohana Rocha. Consumo digital, notícias falsas e o controle da desinformação do consumidor à luz da modulação algorítmica. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 143, 2022, pp. 285-314. Disponível aqui.

5 BORGES, Gustavo. Erro Médico nas Cirurgias Plásticas. São Paulo: Atlas, 2014.

6 ISAPS. Procedimentos estéticos próximos a 35 milhões em 2023. 12 jun. 2024. Disponível aqui.

7 IG. Cresce o número de procedimentos estéticos no Brasil. 21 nov. 2023. Disponível aqui.

8 ANVISA. Nota técnica orienta sobre fiscalização sanitária em serviços de estética e embelezamento. 03 jul. 2023. Disponível aqui.

9 AKAOUI, Fernando Vidal Reverendo; TASSO, Bruno Fernando Barbosa Teixeira. Autonomia dos pacientes na escolha dos procedimentos estéticos. UNISANTA Law and Social Science, [S. l.], v. 12, n. 2, 2023, pp. 238-250, p. 239. ISSN 2317-1308. Disponível aqui.

10 TRÓPIA, Carolina Guimarães; MOREIRA, Sabrine Pereira da Silva. A Influência dos Procedimentos Estéticos na Saúde Mental. Estética em Movimento, [S. l.], v. 2, n. 2, 2023, pp. 65-89, p. 66. Disponível aqui.

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Colunistas

Alexandro de Oliveira é doutorando e mestre em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFRJ). Pesquisador, Advogado e Bioeticista. Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) , da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), da Sociedade Brasileira de Bioética (SPP), do Instituto Miguel Kfouri Neto (IMKN), Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federalcis Fluminense (UFF).

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.