Migalhas de Responsabilidade Civil

A responsabilidade civil e as nanotecnologias

Nanotecnologias podem trazer riscos invisíveis? Isabel Borjes e Taís Gomes explicam o avanço sem regulamentação no Brasil e como a responsabilidade civil objetiva protege o consumidor mesmo diante de efeitos científicos incertos.

11/11/2025

As nanotecnologias, embora representem um dos maiores avanços científicos das últimas décadas, ainda não possui regulamentação específica no Brasil. Trata-se de um campo que manipula a matéria em escala atômica e molecular, permitindo aplicações em setores como saúde2, cosméticos, alimentos, agricultura e até mesmo na indústria bélica. O potencial inovador é inegável, mas também o são os riscos desconhecidos, tanto para o ser humano quanto para o meio ambiente. Este cenário desafia o Direito, especialmente o sistema da responsabilidade civil, a encontrar respostas eficazes para proteger consumidores diante de produtos cujas consequências ainda não são plenamente conhecidas.

A concepção clássica da responsabilidade civil, fundada na culpa, mostra-se insuficiente para lidar com os danos decorrentes das nanotecnologias. Como é sabido, o instituto da responsabilidade civil evoluiu da culpa ao risco - da teoria subjetiva à teoria objetiva3, principalmente para atender os danos causados pelas coisas perigosas, encontrando no dano e no nexo causal os seus elementos imprescindíveis.

A teoria objetiva, baseada no risco, surge como resposta, uma vez que dispensa a prova da culpa e busca resguardar a vítima, atribuindo ao fornecedor ou fabricante o dever de reparar os danos causados.

Nesse contexto, ganha centralidade o dever de informação, considerado um direito fundamental do consumidor e corolário da boa-fé objetiva. Sem as informações adequadas, claras e confiáveis, o consumidor não tem como exercer plenamente sua liberdade de escolha, ficando vulnerável diante de riscos ocultos.

Inclusive, o CC, ao positivar a boa-fé objetiva, nos termos dos arts. 113, 187 e 422, de forma indireta, porque o dever de informação decorre deste princípio, determina a observância do dever de informação. Assim sendo, o dever de informação4 de forma ostensiva e adequada, como um direito básico e fundamental do consumidor e corolário do princípio da boa-fé, deve estar expressamente consignado no produto ou serviço que se utilizar das nanotecnologias para que o consumidor dele tome conhecimento.

A importância do dever de informação consiste justamente no fato de levar ao conhecimento da outra parte uma quantidade de dados suficientes para que possa decidir-se acerca da utilização, aquisição de um produto5 nanotecnológico, já que em matéria de riscos tecnológicos a sociedade deve ser beneficiada não só por um direito de informação, mas de uma informação confiável.6 Somente a informação adequada, suficiente e veraz permite o consentimento informado ou esclarecido ou vontade qualificada.7

Nesse sentido, o CDC, em seus arts. 12 e 14, responsabiliza objetiva e solidariamente o fabricante, o construtor e o produtor, e subsidiariamente o comerciante, nos termos do art. 13, pelos danos causados ao consumidor, pelo fato dos produtos ou serviços colocados no mercado de consumo.

Não se pode olvidar que o fornecedor assume esse risco porque lhe traz benefícios econômicos, enquadrando-se na modalidade do risco-proveito, cuja máxima ubi emolumentum ibi onus é geradora da responsabilidade objetiva.

Indiscutível, portanto, a aplicação da teoria objetiva, não só porque está expressamente prevista no CDC, mas também porque o CC permite sua aplicação pelo risco da atividade, nos termos do § único do art. 927, exigindo três elementos: a) atividade ou serviço desenvolvido de forma regular, b) possibilidade dessa atividade gerar riscos a outrem e c) ocorrência do dano e do nexo causal8

Importante destacar o art. 931 do CC, que trouxe a responsabilidade do empresário, individual ou não, pelos danos causados pelos produtos que colocar em circulação, independentemente de ter ciência ou não dos riscos. Ao fazer referência a “produtos postos em circulação”, a lei civil acolheu o risco do desenvolvimento9. Como é posterior ao CDC e muito mais abrangente do que o art. 12, discutiu-se acerca da possibilidade de sua aplicação também nas relações de consumo.  

O risco do desenvolvimento, ou seja, aquele impossível de ser identificado no momento do lançamento do produto, não pode mais servir de excludente de responsabilidade. Ao contrário, deve ser entendido como um defeito de concepção: se o fornecedor coloca no mercado algo cujos efeitos não domina, assume os riscos decorrentes. O CDC (arts. 12 e 14) e o CC (arts. 927, parágrafo único, e 931) já permitem enquadrar tais hipóteses, responsabilizando objetivamente fabricantes e fornecedores, independentemente de conhecimento prévio dos danos potenciais.

Desse modo, quando se tratar de responsabilidade civil decorrente das nanotecnologias, propugnar-se-á pelo uso do CDC10, nos termos do art. 12, e pela incidência do CC11, conforme arts. 927, parágrafo único, e art. 931, para responsabilizar-se o fornecedor do produto, independentemente de ter comprovação científica dos efeitos colaterais quando o colocou no mercado12.

Essa ampliação do instituto da responsabilidade civil é necessária diante da velocidade do progresso tecnológico e da lentidão do Direito em regular situações inéditas. A função reparatória deve ser complementada por uma função preventiva e de precaução, especialmente quando se lida com riscos incertos e de larga escala. A lógica da precaução exige que medidas protetivas sejam adotadas mesmo antes de ter conhecimento dos danos, justamente para evitar que as vítimas fiquem desamparadas. Isto inclui não apenas a informação ostensiva e transparente, mas também mecanismos de responsabilidade ampliada, seguros e fiscalização estatal.

A reparação integral, princípio norteador do sistema, deve assegurar que a vítima seja colocada em condição o mais próxima possível da que estava antes do dano. Para tanto, admite-se a flexibilização de elementos clássicos da responsabilidade, como o nexo causal, em favor do consumidor, evitando que a ausência de provas técnicas impossíveis de produzir13 inviabilize o direito à indenização. A solidariedade social, o respeito à dignidade da pessoa humana e a tutela das futuras gerações são fundamentos que justificam essa nova configuração do instituto.

As nanotecnologias, embora tragam benefícios extraordinários, também carregam potenciais danos desconhecidos. Diante deste cenário, o Direito não pode se omitir, sob pena de deixar a sociedade à mercê de riscos invisíveis. Cabe ao sistema de responsabilidade civil assumir sua função de precaução, garantindo que fabricantes e fornecedores arquem com os danos causados, ainda que estes só sejam descobertos após a introdução do produto no mercado14. A proteção da vítima deve prevalecer sobre a alegação de ignorância científica, pois a dignidade humana exige respostas jurídicas capazes de acompanhar a evolução tecnológica.

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1 Este artigo está baseado no primeiro e único livro escrito no Direito Brasileiro sobre o tema, há mais de dez anos, e as nanotecnologias ainda permanecem sem regulamentação. Ver: Responsabilidade Civil e nanotecnologias. BORJES, Isabel Cristina Porto. GOMES, Taís Ferraz e ENGELMANN, Wilson. São Paulo: Atlas/GEN, 2014. E, posteriormente, em artigo: BORJES, Isabel Cristina Porto. A nanotecnologia desafia a responsabilidade civil. In: Seminário Internacional Nanotecnologias, Sociedade e Meio Ambiente: desafios jurídicos, éticos e sociais para a “grande transição” sustentável e permanente. São Leopoldo: Casa Leiria, 2024, p. 49-69. Disponível aqui

2 A vacina da COVID -19, da Pfizer, foi obtida através de nanopartículas ou nanocarregadores. Informação disponível aqui. Acesso em: 09/10/2025.

3 As teorias da responsabilidade civil dividem-se em subjetiva (consubstanciada na culpa) e objetiva ou do risco (bastando sua verificação a existência do dano e do nexo causal). A responsabilidade subjetiva exige a comprovação da culpa do agente, além do dano e do nexo de causalidade; a objetiva ou do risco dispensa por completa o exame da conduta dolosa ou culposa do agente, satisfazendo-se apenas com o dano e com o nexo causal. 

4 O Código de Defesa do Consumidor estabelece a informação como um direito fundamental dos consumidores, em contrapartida como dever do fornecedor de produtos, nos termos dos artigos 4º, III e IV; 6o, III; 9º, e 31.

5 Nessa assertiva a palavra “produto” deve ser compreendida em um sentido “lato”, tendo em vista que as nanotecnologias compreendem os mais vastos setores da sociedade (medicina, estética, vestuário, remédios e exames, dentre outros exemplos já citados). 

6 KOURILSKY, Philippe; VINEY, Geneviève. Le principe de precaution. Paris: Éd. Odile Jacob, 2000, p. 58. 

7 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 96 e 97.

8 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade Civil.2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 155.

9 Sobre o risco do desenvolvimento e as nanotecnologias, consultar: ENGELMANN, Wilson. O diálogo entre as fontes do Direito e a gestão do risco empresarial gerado pelas nanotecnologias: construindo as bases à juridicização do risco. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; ENGELMANN, Wilson (Orgs.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, n. 9, p. 319-344.

10 Apenas parar argumentar, pelo diálogo das fontes, uma legislação não exclui a outra, mas seu campo de incidência poderá ser maior ou menor. Assim, quando se tratar de uma relação consumerista, será aplicado o Código de Defesa do Consumidor, mas respeitando as demais fonts, a despeito do Código Civil e da Constituição Federal.  

11 Se um empresário coloca um produto nanotecnológico no mercado, sem a observância do dever de informação de possíveis consequências danosas, como examinado, age de forma ilícita, sendo possível utilizar-se da tutela inibitória para obrigá-lo a fornecer as informações necessárias, eliminando o ilícito, ou proibi-lo de colocar à venda o produto, prevenindo, assim, possíveis danos futuros. A tutela inibitória não servirá para punir quem praticou o ilícito, mas serve para impedir que seja praticado novamente, desencorajando nova conduta.

12 Essa posição foi acolhida pelo STJ, 3ª Turma, Relatora Min. Nancy Andrighi, conforme RECURSO ESPECIAL Nº 1.774.372 – RS (2018/0272691-3, julgado em 05/05/2020.

13 Nesse sentido, o Código de Processo Civil positivou a teoria da carga dinâmica do ônus da prova, no art. 373, §1º, a seguir copiado:

Art. 373. O ônus da prova incumbe:

§1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.

14 Cabe salientar, ainda, a previsão da responsabilidade preventiva, considerada em seu sentido “lato”, que engloba a precaução (cf. Teresa Ancona Lopez, Responsabilidade Civil na Sociedade de Risco. p. 427. Disponível aqui, na proposta de alterações do Código Civil, conforme art. 927-A, §§ 1º ao 4º, do  Projeto de Lei 04/2025.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.