Migalhas de Responsabilidade Civil

Responsabilidade civil e adoção de crianças e de adolescentes: A difícil questão da quantificação do dano

Marcelo de Mello Vieira e Marina Carneiro Matos Sillmann refletem sobre parentalidade e adoção, destacando traumas, abandonos e a fragilidade das indenizações diante dos danos profundos causados aos filhos.

25/11/2025

Falar sobre parentalidade e responsabilidade civil é sempre espinhoso. Isso porque existe um delírio coletivo que família é sinônimo de amor e que esse amor ou afeto é capaz de curar tudo. Se essa relação fosse verdadeira, grande parte dos consultórios de psicologia do país estariam vazios, o que não é o que acontece. Mais atentos à realidade, Fiuza e Martins (s.d) ensinam que

“[A] atualmente, tornou-se moda nos meios familiaristas uma visão romântica da família, fundada no amor e no afeto. A família, por este prisma, seria o locus do afeto, sendo o ambiente mais adequado para a promoção do ser humano. De fato, a família ainda é, como regra, o ambiente mais adequado para o desenvolvimento do ser humano, mas não por ser necessariamente um local de amor e de afeto. Dentre outras razões, é por ser o ambiente em que nascemos e no qual nos sentimos naturalmente mais protegidos. Seguramente, há amor e afeto no âmbito familiar, mas não só; há também ódio, rivalidades e violência (física e moral). A família, na melhor das hipóteses, é um agrupamento de neuróticos, que se fazem bem uns aos outros, mas que também se fazem muito mal. Muitas vezes, é melhor para a criança ser afastada do locus familiar, que só lhe traz malefícios.”

A partir dessa concepção não romantizada de família, pode-se compreender que a parentalidade de fato não é um dado e, sim um longo e difícil processo psíquico no qual a criança se reconhecerá como filho e os adultos se identificarão como pais (Kozesinski, 2025, p. 39). Nesse processo, traumas ocorrerão, por mais bem-intencionados que os pais sejam.

Se falamos da parentalidade formada via adoção, outras camadas de desinformação e preconceitos complicam ainda mais o tema. Mesmo após mais de 35 anos de entrada em vigor da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção ainda é associada ao altruísmo, à generosidade e a um suposto dever de gratidão que o filho deveria ter pelos pais. Isso dificulta a aceitação social de que a parentalidade adotiva não é substancialmente diferente da parentalidade natural, apenas que são situações diferentes, ambas com muitos desafios, alguns parecidos e outros distintos. 

Assim como a parentalidade natural não ocorre imediatamente com o nascimento, a parentalidade adotiva não acontece na prolação da sentença de adoção, embora esse seja um evento chave para esse processo. É com ela que, juridicamente, se inicia a parentalidade, embora ainda haja um longo e tortuoso caminho para a sedimentação dessa relação se consolide. A maior prova dessa afirmação são os casos de abandono de filhos adotivos, também chamado de “devolução da criança”, situações nas quais há a sentença de adoção, mas os pais abrem mão da criação dos filhos adotivos.1

Segundo os dados apresentados no “Diagnóstico sobre a devolução de crianças e adolescentes em estágio de convivência e adotadas”, pesquisa encomendada pelo CNJ e apresentada em 2024, ocorreram cerca de 293 abandonos de filhos adotivos de meados de 2019 até 2023 (CNJ, 2024, p. 50). Apesar do número ser proporcionalmente pequeno em vista do número de adoções realizadas em igual período (cerca de 20.881 adoções),2 ele deveria estar mais próximo de zero.

Abandonar um filho, seja este natural ou adotivo é um ato ilícito capaz de gerar uma das piores sanções existentes dentro do Direito das Famílias: a perda do poder familiar (art. 1.638, II do CC brasileiro). Tal decisão não modifica o parentesco, fazendo com que mesmo sem o poder familiar, as outras obrigações sejam devidas, como os alimentos.

Entretanto, esse ato ilícito gera danos que necessitarão ser compensados e que não são devidos em razão do parentesco e não devem ser pensados sob a ótica no binômio necessidade-possibilidade que rege o dever de alimentos, cuja origem é a relação de parentesco. Essa compensação deve ser quantificada a partir da extensão do dano e aí que começa o problema. 

Josiane Veronese e Marcelo Vieira (2022), em pesquisa realizada até 2021 nos sites de todos os tribunais estaduais e em sítios de busca de decisões judiciais, encontraram 9 processos que versavam sobre a responsabilidade civil por abandono de filhos adotivos. Apesar de não terem acesso às decisões de todos os autos encontrados em razão do segredo de justiça, os autores sintetizaram os valores encontrados na tabela:

Decisão

Quantificação

TJMG – AC n. 1.0702.09.568648-2/002

R$ 15 mil

TJRJ – AC n. 0015081-24.2014.8.19.0024

Não há informações na ementa

TJRS – AC n. 70070078233

R$ 30 mil

TJSC – AC n. 2011.020805-7

R$ 80 mil com juros de mora dividido entre os irmãos

TJSC – AC n. 0900487-80.2016.8.24.0020

R$ 50 mil

TJSP – AC n. 0006658-72.2010.8.26.0266

R$ 20 mil

TJSP – AC n. 1001116-23.2018.8.26.0445

1 salário-mínimo até que o jovem complete 25 anos, ou seja, 10 anos, e tratamento terapêutico e psiquiátrico

TJSP – AC n. 1007832-93.2018.8.26.0048

R$ 150 mil com juros de mora

STJ – Resp. n. 1.698.728/MS

5 mil

Em que as particularidades existentes em cada um desses casos, nota-se que os valores indenizatórios não parecem seguir qualquer lógica. Mesmo o montante arbitrado em casos semelhantes, critério aplicável em danos in re ipsa (Soares, 2023, p. 6), não foram seguidos.

Não se pode dizer que a quantificação do dano moral seja uma questão nova no Direito nacional. Pelo contrário, muito já se debateu sobre o tema e pouco se avançou. Contudo, o que pode se afirmar que os danos ocorridos são profundos e vão perdurar por toda a vida dos filhos. O fato de essas crianças e adolescentes retornarem à guarida do Estado, o que, em tese, garantiria que eles tivessem, pelo menos, acesso ao mínimo de direitos, não pode servir de parâmetro para reduzir os valores indenizatórios.

Não é fácil saber o quanto ou o que poderia compensar a rejeição paterna e/ou materna para alguém que não teve direito a sua parentalidade natural, mas, com certeza, é indefensável que 5 mil reais seria o suficiente.

__________________

1 “Devolução da criança” é a expressão utilizada no art. 197-E, §5º do Estatuto da Criança e do Adolescente para descrever a situação que os pais adotivos não desejam mais exercer essa parentalidade. O termo precisa ser criticado, já que se não há diferença jurídica da parentalidade natural da adotiva (art. 227, §6º da CRFB/1988), da mesma forma que não há de ser falar em “devolver” um filho natural, a mesma expressão não pode ser utilizada para um filho adotivo. O que ocorre é o abandono ou reabandono como defendem Ismael Souza e Gláucia Souza (2019, p. 174). Ele não se confunde com a desistência da guarda para fins de adoção, situação também prevista no mesmo dispositivo, que retrata a não continuidade do procedimento de adoção pelos pretendentes. Neste não há a prolação de sentença constitutiva da parentalidade adotiva.

2 Esse foi o número encontrado em pesquisa realizada no portal do CNJ que permite o acesso em tempo real às estatísticas sobre adoção. De meados 2019, quando o Sistema Nacional de Adoção (SNA) foi criado até dezembro de 2023, 20881 adoções haviam sido realizadas no país (CNJ, 2025). 

3 Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Diagnóstico sobre a devolução de crianças e adolescentes em estágio de convivência e adotadas. Conselho Nacional de Justiça; Associação Brasileira de Jurimetria – Brasília: CNJ, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 27 ago. 2025.

4 Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Sistema Nacional de adoção e acolhimento. Painel de acompanhamento. Conselho Nacional de Justiça; Brasília: CNJ, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 27 ago. 2025.

5 FIUZA, César; MARTINS, Thiago Penido. A eficácia do direito fundamental à igualdade nas relações familiares: uma análise crítica da decisão proferida no julgamento do Recurso Especial n.º 1.159.242-SP. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2018.

6 KOZESINSKI, Carla Alessandra Barbosa Gonçalves. Tempos, temporalidades e temporais: Constituição da parentalidade e filiação adotivas e a artesania do acompanhamento dos processos de adoção. 2025. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2025.

7 SOARES, Flaviana, Rampazzo. Dano presumido e dano ’in re ipsa’ – distinções necessárias. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 6, n. 1, p. IV-X, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2025.

8 SOUZA, Ismael Francisco de; SOUZA, Glaucia Martinhago Borges Ferreira de. A necessidade de um novo olhar sobre os reabandonos de crianças e adolescentes na adoção: a teoria da perda de uma chance e a sua (não) aplicação na Justiça brasileira. Revista Direito & Paz, São Paulo, SP – Lorena, Ano XI, n. 40, 1 sem.  2019, p. 162-182. 

9 VERONESE, Josiane Rose Petry; VIEIRA, Marcelo de Mello. Abandono de filhos adotivos sob o olhar da Doutrina da Proteção Integral e da responsabilidade civil. São Paulo: Editora Dialética, 2022.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.