Em “Dando nome aos bois: breve análise sobre a(s) arbitragem(ns) esportiva(s)”, coluna publicada há pouco mais de um ano1, empreendi a primeira parte da missão de desenhar e desmistificar questões relacionadas ao tema, separando o método de resolução de disputas das demais acepções semânticas, assim como iniciando o processo de depuração entre a arbitragem tradicional (aquela negociada pelas partes e incluída em uma convenção de arbitragem voluntariamente contratada), daquelas outras “arbitragens” previstas em legislação ou regulamentos de entidades esportivas.
Na oportunidade, finalizei a coluna fazendo referência à arbitragem esportiva desenvolvida no âmbito da CAS - Corte Arbitral do Esporte, tribunal arbitral com sede na Suíça, especializado em questões esportivas e com atuação como instância única ou recursal em disputas relacionadas ao esporte2. Fiz referência, em especial, a uma atuação daquela Corte como segunda instância recursal em caso de procedimentos envolvendo potenciais violações à regra antidopagem. Afirmei tratar-se de situação “sui generis”, em que a primeira instância do procedimento é levada a cabo no bojo da Justiça Desportiva Antidopagem e a instância recursal no bojo de uma arbitragem instituída perante o CAS. Ao misturar Justiça Desportiva e arbitragem esportiva, considerei-a uma verdadeira jabuticaba brasileira, prometendo retornar ao tema, o que faço agora.
A Justiça Desportiva Antidopagem está prevista nos arts. 55-A a 55-C da lei Pelé (lei 9.615, de 24 de março de 1998)3, em observância à prerrogativa constitucional inserta no art. 217, § 1º, da Constituição Federal de 1988, que outorga competência para apreciação das disputas envolvendo disciplina e competições esportivas, observado o prazo de sessenta dias mencionado no § 2º do mesmo art.4. Trata-se, portanto, de exceção ao princípio insculpido no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição5, permitindo-se que uma instância extrajudicial analise questões materialmente delimitadas (no caso, disciplina e competição esportiva) com prioridade em relação ao Poder Judiciário. A exceção, no entanto, não é absoluta, mas apenas temporal, ou seja, apenas nos primeiros sessenta dias garante-se que a questão seja analisada pelo órgão especializado; esgotado o prazo, abre-se integralmente a porta do Poder Judiciário para análise da matéria6.
A Justiça Desportiva Antidopagem, portanto, desenhada sob a égide da exceção prevista no art. 217, § 1º, da própria Constituição, não possui características próprias de um procedimento arbitral, senão de procedimento extrajudicial de assento constitucional. E tal natureza jurídica lhe afasta da discussão acerca da voluntariedade, própria do procedimento arbitral7.
A jabuticaba brasileira em matéria antidopagem fica, assim, mais interessante quando verificamos que, diferentemente da natureza jurídica da Justiça Desportiva Antidopagem, a Corte Arbitral do Esporte, essa sim, tem características próprias de procedimento arbitral e, portanto, a análise de sua legitimidade não está no assento constitucional, mas deve ser perquirida à luz do elemento da voluntariedade.
A possibilidade de recurso das decisões proferidas pela Justiça Desportiva Antidopagem à Corte Arbitral do Esporte está prevista no art. 8º do decreto 8.692, de 16 de março de 2016, que estabelece que “dos Acórdãos proferidos pelo Plenário caberá recurso para a Corte Arbitral do Esporte” (§ 2º) e que, no caso de atleta de nível internacional8, o acesso àquela Corte “independerá do exaurimento das instâncias nacionais” (§ 3º).
A opção do regulamento foi, portanto, conferir à Corte Arbitral do Esporte, no geral, posição de instância extraordinária, garantindo-se que a Justiça Desportiva Antidopagem cumpriria o duplo grau de jurisdição9. A possibilidade de exercício pela Corte do duplo grau ficou restrita apenas ao atleta internacional, sendo possível o recurso ao CAS independentemente do esgotamento das instâncias internas.
Em ambas as hipóteses, a instância da Corte Arbitral do Esporte foi prevista como instância facultativa, não necessária para o deslinde dos processos e julgamento de potenciais violações às regras antidopagem. No caso dos atletas nacionais, sua previsão como instância adicional às duas instâncias nacionais (i.e., a Câmara e o Pleno do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem) permite prescindir-se de uma regulamentação interna, devendo o atleta, caso deseje acessar a instância internacional, observar a regulamentação específica daquela corte arbitral.
Já para os atletas internacionais, a previsão quanto à desnecessidade de esgotamento das instâncias nacionais (prevista no citado artigo 8º do Decreto nº 8.692) levou à necessidade de construção de procedimento específico, isto é, à necessidade de que a própria legislação nacional previsse o caminho a ser seguido pelo atleta que, no uso de sua autonomia da vontade, preferisse o acesso à Corte Arbitral do Esporte em detrimento do esgotamento das instâncias da Justiça Desportiva Antidopagem.
O procedimento em questão está desenhado nos artigos 303-A a 303-C do Código Brasileiro Antidopagem10. Trata-se do procedimento extraordinário, o qual permite que a instância inicial seja realizada perante o Pleno do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (art. 303-B), com a opção do recurso perante a Corte Arbitral do Esporte, a qual servirá como segundo grau de jurisdição neste caso.
Segundo o art. 303-A, o atleta de nível internacional poderá optar por este procedimento quando intimado a manifestar-se para esse fim pela presidência do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem, sendo-lhe aplicável, em caso de silêncio, o rito ordinário (§ 3º)11. Ou seja, a opção pelo procedimento extraordinário é marcada, na legislação brasileira, pelo exercício da voluntariedade, de maneira que, não havendo manifestação de vontade no sentido de optar-se por tal rito, o procedimento seguirá o rito ordinário, o qual transcorre exclusivamente perante a Justiça Desportiva de assento constitucional.
A compreensão de como o procedimento foi construído permite concluir que, embora possa causar espécie, essa verdadeira jabuticaba desportiva sustenta-se em premissas sólidas: (i) a previsão do julgamento das infrações antidopagem pela justiça especializada de assento constitucional (no caso, a Justiça Desportiva Antidopagem); e (ii) apenas quando voluntariamente aceita pelo atleta de nível internacional, a abertura da porta da arbitragem esportiva perante a Corte Arbitral do Esporte. Dando nome aos bois, podemos dizer que nesta última hipótese (ii) estamos diante de uma verdadeira arbitragem, a qual afasta tanto o disposto no art. 5º, inc. XXXV, como o disposto no art. 217, § 1º, da Constituição Federal de 1988, por uma opção exercida em observância à autonomia da vontade também assegurada constitucionalmente (art. 5º, inc. II). Não é bem assim em todas as chamadas “arbitragens esportivas”, mas isso é assunto para uma próxima conversa.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Art. 55-A. Fica criada a Justiça Desportiva Antidopagem - JAD, composta por um Tribunal e por uma Procuradoria, dotados de autonomia e independência, e com competência para: I - julgar violações a regras antidopagem e aplicar as infrações a elas conexas; e II - homologar decisões proferidas por organismos internacionais, decorrentes ou relacionadas a violações às regras antidopagem. § 1o A JAD funcionará junto ao CNE e será composta de forma paritária por representantes de entidades de administração do desporto, de entidades sindicais dos atletas e do Poder Executivo. § 2o A escolha dos membros da JAD buscará assegurar a paridade entre homens e mulheres na sua composição. § 3o Os membros da JAD serão auxiliados em suas decisões por equipe de peritos técnicos das áreas relacionadas ao controle de dopagem. § 4o A competência da JAD abrangerá as modalidades e as competições desportivas de âmbito profissional e não profissional. § 5o Incumbe ao CNE regulamentar a atuação da JAD. § 6o O mandato dos membros da JAD terá duração de três anos, permitida uma recondução por igual período. § 7o Não poderão compor a JAD membros que estejam no exercício de mandato em outros órgãos da Justiça Desportiva de que trata o art. 50, independentemente da modalidade. § 8o É vedado aos membros da JAD atuar perante esta pelo período de um ano após o término dos respectivos mandatos. § 9o As atividades da JAD serão custeadas pelo Ministério do Esporte. § 10. Poderá ser estabelecida a cobrança de custas e emolumentos para a realização de atos processuais. § 11. As custas e os emolumentos de que trata o § 10 deverão ser fixadas entre R$ 100,00 (cem reais) e R$ 100.000,00 (cem mil reais), conforme a complexidade da causa, na forma da tabela aprovada pelo CNE para este fim. § 12. O Código Brasileiro Antidopagem - CBA e os regimentos internos do Tribunal e da Procuradoria disporão sobre a organização, o funcionamento e as atribuições da JAD. § 13. O disposto no § 3o do art. 55 aplica-se aos membros da JAD.
Art. 55-B. Parágrafo único. Os processos instaurados e em trâmite na Justiça Desportiva à época da instalação da JAD permanecerão sob responsabilidade daquela até o seu trânsito em julgado, competindo-lhe a execução dos respectivos julgados.
Art. 55-C. Compete à JAD decidir sobre a existência de matéria atinente ao controle de dopagem que atraia sua competência para o processo e o julgamento da demanda. Parágrafo único. Não caberá recurso da decisão proferida na forma do caput.
4 Art. 217 (...) § 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei. § 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.
5 Art. 5º, XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
6 Não se trata, portanto, de afastamento definitivo da tutela judicial, mas de delimitação de um campo material e temporal específico, em que se prioriza a tutela especializada. Esgotado, pois, o prazo de sessenta dias sem a decisão esportiva ou, ainda, caso o processo conduzido na seara esportiva infrinja algum direito passível de tutela judicial, ao atleta ou outro cidadão processado permanece conferida a garantia fundamental inscrita no citado artigo 5º, inc. XXXV, da Constituição.
7 Dado que a arbitragem só pode, em tese, excepcionar a garantia fundamental do citado artigo 5º, inc. XXXV, se as partes voluntariamente assim contratarem.
8 Assim considerado o “atleta que compete em nível internacional, conforme definido por cada Federação Internacional, de acordo com o Padrão Internacional para Testes e Investigações” (Anexo I do Código Brasileiro Antidopagem).
9 Princípio este que, embora não assegurado expressamente na Constituição, é consagrado na doutrina nacional como inerente ao devido processo legal e introduzido no ordenamento jurídico pátrio pela adesão ao Pacto de San José da Costa Rica, que o prevê em seu artigo 8, parágrafo 2, alínea h, o “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”.
10 Disponível aqui.
11 Vale dizer que o que foi outrora teorizado e incluído no Código Brasileiro Antidopagem como uma possibilidade tornou-se já realidade, destacando-se um caso em que houve a efetiva opção do atleta de nível internacional pelo duplo grau de jurisdição perante a Corte Arbitral do Esporte. Mas isso é história para uma outra coluna.