Observatório da Arbitragem

Dando nome aos bois: Arbitragem Esportiva e a CAS - Corte Arbitral do Esporte como instância recursal em matéria antidopagem

A coluna explica a jabuticaba brasileira da arbitragem antidopagem, combinando Justiça Desportiva e CAS como instância recursal voluntária.

25/11/2025

Em “Dando nome aos bois: breve análise sobre a(s) arbitragem(ns) esportiva(s)”, coluna publicada há pouco mais de um ano1, empreendi a primeira parte da missão de desenhar e desmistificar questões relacionadas ao tema, separando o método de resolução de disputas das demais acepções semânticas, assim como iniciando o processo de depuração entre a arbitragem tradicional (aquela negociada pelas partes e incluída em uma convenção de arbitragem voluntariamente contratada), daquelas outras “arbitragens” previstas em legislação ou regulamentos de entidades esportivas.

Na oportunidade, finalizei a coluna fazendo referência à arbitragem esportiva desenvolvida no âmbito da CAS - Corte Arbitral do Esporte, tribunal arbitral com sede na Suíça, especializado em questões esportivas e com atuação como instância única ou recursal em disputas relacionadas ao esporte2. Fiz referência, em especial, a uma atuação daquela Corte como segunda instância recursal em caso de procedimentos envolvendo potenciais violações à regra antidopagem. Afirmei tratar-se de situação “sui generis”, em que a primeira instância do procedimento é levada a cabo no bojo da Justiça Desportiva Antidopagem e a instância recursal no bojo de uma arbitragem instituída perante o CAS. Ao misturar Justiça Desportiva e arbitragem esportiva, considerei-a uma verdadeira jabuticaba brasileira, prometendo retornar ao tema, o que faço agora.

A Justiça Desportiva Antidopagem está prevista nos arts. 55-A a 55-C da lei Pelé (lei 9.615, de 24 de março de 1998)3, em observância à prerrogativa constitucional inserta no art. 217, § 1º, da Constituição Federal de 1988, que outorga competência para apreciação das disputas envolvendo disciplina e competições esportivas, observado o prazo de sessenta dias mencionado no § 2º do mesmo art.4. Trata-se, portanto, de exceção ao princípio insculpido no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição5, permitindo-se que uma instância extrajudicial analise questões materialmente delimitadas (no caso, disciplina e competição esportiva) com prioridade em relação ao Poder Judiciário. A exceção, no entanto, não é absoluta, mas apenas temporal, ou seja, apenas nos primeiros sessenta dias garante-se que a questão seja analisada pelo órgão especializado; esgotado o prazo, abre-se integralmente a porta do Poder Judiciário para análise da matéria6.

A Justiça Desportiva Antidopagem, portanto, desenhada sob a égide da exceção prevista no art. 217, § 1º, da própria Constituição, não possui características próprias de um procedimento arbitral, senão de procedimento extrajudicial de assento constitucional. E tal natureza jurídica lhe afasta da discussão acerca da voluntariedade, própria do procedimento arbitral7.

A jabuticaba brasileira em matéria antidopagem fica, assim, mais interessante quando verificamos que, diferentemente da natureza jurídica da Justiça Desportiva Antidopagem, a Corte Arbitral do Esporte, essa sim, tem características próprias de procedimento arbitral e, portanto, a análise de sua legitimidade não está no assento constitucional, mas deve ser perquirida à luz do elemento da voluntariedade.

A possibilidade de recurso das decisões proferidas pela Justiça Desportiva Antidopagem à Corte Arbitral do Esporte está prevista no art. 8º do decreto 8.692, de 16 de março de 2016, que estabelece que “dos Acórdãos proferidos pelo Plenário caberá recurso para a Corte Arbitral do Esporte” (§ 2º) e que, no caso de atleta de nível internacional8, o acesso àquela Corte “independerá do exaurimento das instâncias nacionais” (§ 3º).

A opção do regulamento foi, portanto, conferir à Corte Arbitral do Esporte, no geral, posição de instância extraordinária, garantindo-se que a Justiça Desportiva Antidopagem cumpriria o duplo grau de jurisdição9. A possibilidade de exercício pela Corte do duplo grau ficou restrita apenas ao atleta internacional, sendo possível o recurso ao CAS independentemente do esgotamento das instâncias internas.

Em ambas as hipóteses, a instância da Corte Arbitral do Esporte foi prevista como instância facultativa, não necessária para o deslinde dos processos e julgamento de potenciais violações às regras antidopagem. No caso dos atletas nacionais, sua previsão como instância adicional às duas instâncias nacionais (i.e., a Câmara e o Pleno do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem) permite prescindir-se de uma regulamentação interna, devendo o atleta, caso deseje acessar a instância internacional, observar a regulamentação específica daquela corte arbitral.

Já para os atletas internacionais, a previsão quanto à desnecessidade de esgotamento das instâncias nacionais (prevista no citado artigo 8º do Decreto nº 8.692) levou à necessidade de construção de procedimento específico, isto é, à necessidade de que a própria legislação nacional previsse o caminho a ser seguido pelo atleta que, no uso de sua autonomia da vontade, preferisse o acesso à Corte Arbitral do Esporte em detrimento do esgotamento das instâncias da Justiça Desportiva Antidopagem.

O procedimento em questão está desenhado nos artigos 303-A a 303-C do Código Brasileiro Antidopagem10. Trata-se do procedimento extraordinário, o qual permite que a instância inicial seja realizada perante o Pleno do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (art. 303-B), com a opção do recurso perante a Corte Arbitral do Esporte, a qual servirá como segundo grau de jurisdição neste caso.

Segundo o art. 303-A, o atleta de nível internacional poderá optar por este procedimento quando intimado a manifestar-se para esse fim pela presidência do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem, sendo-lhe aplicável, em caso de silêncio, o rito ordinário (§ 3º)11. Ou seja, a opção pelo procedimento extraordinário é marcada, na legislação brasileira, pelo exercício da voluntariedade, de maneira que, não havendo manifestação de vontade no sentido de optar-se por tal rito, o procedimento seguirá o rito ordinário, o qual transcorre exclusivamente perante a Justiça Desportiva de assento constitucional.

A compreensão de como o procedimento foi construído permite concluir que, embora possa causar espécie, essa verdadeira jabuticaba desportiva sustenta-se em premissas sólidas: (i) a previsão do julgamento das infrações antidopagem pela justiça especializada de assento constitucional (no caso, a Justiça Desportiva Antidopagem); e (ii) apenas quando voluntariamente aceita pelo atleta de nível internacional, a abertura da porta da arbitragem esportiva perante a Corte Arbitral do Esporte. Dando nome aos bois, podemos dizer que nesta última hipótese (ii) estamos diante de uma verdadeira arbitragem, a qual afasta tanto o disposto no art. 5º, inc. XXXV, como o disposto no art. 217, § 1º, da Constituição Federal de 1988, por uma opção exercida em observância à autonomia da vontade também assegurada constitucionalmente (art. 5º, inc. II). Não é bem assim em todas as chamadas “arbitragens esportivas”, mas isso é assunto para uma próxima conversa.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Art. 55-A.  Fica criada a Justiça Desportiva Antidopagem - JAD, composta por um Tribunal e por uma Procuradoria, dotados de autonomia e independência, e com competência para: I - julgar violações a regras antidopagem e aplicar as infrações a elas conexas; e II - homologar decisões proferidas por organismos internacionais, decorrentes ou relacionadas a violações às regras antidopagem. § 1o A JAD funcionará junto ao CNE e será composta de forma paritária por representantes de entidades de administração do desporto, de entidades sindicais dos atletas e do Poder Executivo. § 2o A escolha dos membros da JAD buscará assegurar a paridade entre homens e mulheres na sua composição. § 3o Os membros da JAD serão auxiliados em suas decisões por equipe de peritos técnicos das áreas relacionadas ao controle de dopagem. § 4o A competência da JAD abrangerá as modalidades e as competições desportivas de âmbito profissional e não profissional. § 5o Incumbe ao CNE regulamentar a atuação da JAD. § 6o O mandato dos membros da JAD terá duração de três anos, permitida uma recondução por igual período. § 7o Não poderão compor a JAD membros que estejam no exercício de mandato em outros órgãos da Justiça Desportiva de que trata o art. 50, independentemente da modalidade. § 8o É vedado aos membros da JAD atuar perante esta pelo período de um ano após o término dos respectivos mandatos. § 9o As atividades da JAD serão custeadas pelo Ministério do Esporte. § 10.  Poderá ser estabelecida a cobrança de custas e emolumentos para a realização de atos processuais. § 11.  As custas e os emolumentos de que trata o § 10 deverão ser fixadas entre R$ 100,00 (cem reais) e R$ 100.000,00 (cem mil reais), conforme a complexidade da causa, na forma da tabela aprovada pelo CNE para este fim. § 12. O Código Brasileiro Antidopagem - CBA e os regimentos internos do Tribunal e da Procuradoria disporão sobre a organização, o funcionamento e as atribuições da JAD. § 13. O disposto no § 3o do art. 55 aplica-se aos membros da JAD.

Art. 55-B. Parágrafo único.  Os processos instaurados e em trâmite na Justiça Desportiva à época da instalação da JAD permanecerão sob responsabilidade daquela até o seu trânsito em julgado, competindo-lhe a execução dos respectivos julgados.

Art. 55-C.  Compete à JAD decidir sobre a existência de matéria atinente ao controle de dopagem que atraia sua competência para o processo e o julgamento da demanda. Parágrafo único. Não caberá recurso da decisão proferida na forma do caput.

4 Art. 217 (...) § 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei. § 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

5 Art. 5º, XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

6 Não se trata, portanto, de afastamento definitivo da tutela judicial, mas de delimitação de um campo material e temporal específico, em que se prioriza a tutela especializada. Esgotado, pois, o prazo de sessenta dias sem a decisão esportiva ou, ainda, caso o processo conduzido na seara esportiva infrinja algum direito passível de tutela judicial, ao atleta ou outro cidadão processado permanece conferida a garantia fundamental inscrita no citado artigo 5º, inc. XXXV, da Constituição.

7 Dado que a arbitragem só pode, em tese, excepcionar a garantia fundamental do citado artigo 5º, inc. XXXV, se as partes voluntariamente assim contratarem.

8 Assim considerado o “atleta que compete em nível internacional, conforme definido por cada Federação Internacional, de acordo com o Padrão Internacional para Testes e Investigações” (Anexo I do Código Brasileiro Antidopagem).

9 Princípio este que, embora não assegurado expressamente na Constituição, é consagrado na doutrina nacional como inerente ao devido processo legal e introduzido no ordenamento jurídico pátrio pela adesão ao Pacto de San José da Costa Rica, que o prevê em seu artigo 8, parágrafo 2, alínea h, o “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”.

10 Disponível aqui.

11 Vale dizer que o que foi outrora teorizado e incluído no Código Brasileiro Antidopagem como uma possibilidade tornou-se já realidade, destacando-se um caso em que houve a efetiva opção do atleta de nível internacional pelo duplo grau de jurisdição perante a Corte Arbitral do Esporte. Mas isso é história para uma outra coluna.

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Colunistas

Marcelo Bonizzi é professor doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP/Largo São Francisco. Autor de livros e artigos. Pós-doutor pela Faculdade de Direito de Lisboa. Procurador do Estado de São Paulo. Atua como árbitro (FIESP/CAMES E CAMESC).

Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira é procurador do Estado de São Paulo. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Professor do Programa de doutorado e mestrado em Direito da UNAERP. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Membro de listas de árbitros de diversas Instituições Arbitrais. Foi membro da Comissão Especial de Arbitragem do Conselho Federal da OAB. Autor de livros jurídicos. Coordenador Acadêmico do site Canal Arbitragem.