Olhares Interseccionais

O parquet à la vontè em um código de processo penal racialmente desumanizador

O parquet à la vontè em um código de processo penal racialmente desumanizador.

8/11/2021

"Percebi que no Frigorifico jogam creolina no lixo, para o favelado não catar a carne para comer.
Não tomei café, ia andando meio tonta. A tontura da fome é pior do que a do álcool.
A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer.
Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago. Comecei sentir a boca amarga.
Pensei: já não basta as amarguras da vida? Parece que quando eu nasci o destino marcou-me para passar fome".

Carolina Maria de Jesus
Quarto de despejo - diário de uma favelada

As panelas destampadas, os pratos vazios e as despensas nuas de esperança expõem e denunciam a fome. Não há comida crua, tampouco cozida, não há comida. "Tem gente com fome"1 e só resta o buraco... do estômago e/ou da cela. Não há fartura, tampouco provisões alimentícias, ao contrário, falta a dignidade e sobra a desumanidade.

Como se não bastassem as caminhadas solitárias e famintas, revirar o lixo, "na imundície do pátio, catando comida entre os detritos"2, tal qual "O bicho", descrito pelo poeta Manuel Bandeira, é a imagem cada vez mais presente na vida dos/as brasileiros/as.

Mais de 70 anos se passaram desde a escrita-denúncia desse poema que escancarou a crise da fome que assolava o país e, ainda assim, soubemos recentemente que dois homens, por estarem na imundície do lixo de uma rede de supermercados, foram denunciados pelo Ministério Público, que, com peculiar arrogância narrativa, sustentou a hipótese de que eles praticaram o crime de furto. O patrimônio violado foi alimentos vencidos que estavam no local onde seriam triturados e descartados.

O caso aconteceu no dia 5 de agosto de 2019, em Uruguaiana, Rio Grande do Sul. Segundo o boletim de ocorrência, os policiais foram noticiados de que dois homens haviam entrado em área restrita de um supermercado, revirado o setor de descartes e fugido do local com mercadorias. A guarnição fez diligências e prendeu a dupla de indesejáveis nas imediações do estabelecimento, bem como apreendeu os produtos: cerca de 50 fatias de queijo, 14 unidades de calabresa, 9 unidades de presunto e 5 unidades de bacon.3

Em novembro de 2020, a Defensoria Pública do Estado (DPE), em sede de resposta à acusação, defendeu a tese do princípio da insignificância. De acordo com a defensora pública responsável, "é de se ter em vista o princípio da mínima intervenção, de onde emana que o Direito Penal deve tutelar apenas as condutas gravosas ao meio social, sem se preocupar com os denominados delitos de bagatela."4

A lucidez da alegação foi acolhida pelo juiz que, em julho de 2021, absolveu os réus. Segundo ele, "no presente caso não há justa causa para a presente ação penal em face do princípio da insignificância. Os réus teriam furtado bens (gêneros alimentícios com os prazos de validade vencidos) avaliados em R$ 50,00, os quais foram devidamente restituídos ao proprietário"5.

A aplicação do princípio da insignificância, segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), pressupõe a ofensividade mínima da conduta do agente; reduzido grau de reprovabilidade; inexpressividade da lesão jurídica causada; e ausência de periculosidade social.6 No caso em tela, o reconhecimento do caráter bagatelar da ação, ao permitir a interpretação jurídica de atipicidade material da conduta, resultou na absolvição sumária. Contudo, o Ministério Público recorreu da decisão, sob o argumento de que "não se pode usar o princípio da insignificância e do crime bagatelar como estímulo e combustível à impunidade."

Então, cabe perguntar: qual seria o "combustível à impunidade", nobre parquet? Aquele referente à fome que grassa ou o que isenta o órgão "promotor" da (in)justiça de defender os interesses sociais e individuais indisponíveis, acusando à la vonté?7

O fato de o processo ir ao Tribunal de Justiça para o julgamento do recurso de Apelação não garante a manutenção da absolvição, proferida em 1º grau. Isto porque, há poucos dias assistimos atônitos/as à manutenção em 2º grau da prisão de uma mulher, mãe de 5 filhos, acusada de furtar dois pacotes de miojo, duas garrafas de refrigerante e um pacote de suco em pó, totalizando R$ 21,69.

O teatro de horrores contou com a participação do Ministério Público que requereu a conversão da prisão em flagrante em preventiva, solicitação acatada pelo Judiciário, sob a justificativa de que "embora seja genitora de quatro crianças [o quinto filho é adolescente], não há evidências de que ela é responsável por seus cuidados" [...] "a recolocação em liberdade neste momento (de maneira precoce) geraria presumível retorno às vias delitivas, meio de sustento".

Ou seja, as convicções subjetivas da magistrada deram o tom da decisão.  E como forma de justificar e embasar o discurso criminalizante, o endosso foi perpetrado em sede de 2º grau, quando os argumentos morais do desembargador o fizeram afirmar que "embora triste a situação, impossível se negar a periculosidade avaliada em face da real e intensa culpabilidade da agente."8

Indiciamentos, denúncias, decretações e manutenções de prisões que sobrecarregam o Judiciário Brasileiro. Do ponto de vista de uma humanidade racialmente comprometida com a justiça, qual o custo de cada processo? Protege-se a (in)significância do patrimônio (comida vencida) em detrimento da vida e da dignidade.

Há democracia em um país cujo prato diário é a fome?

Existem muitas versões históricas, nem sempre convergentes, sobre a conformação orgânica do Ministério Público. De certa forma, para o que aqui nos interessa abordar, prevaleceu o desenho normativo de uma instituição vocacionada à defesa do regime democrático, de interesses sociais e individuais indisponíveis. Etimologicamente, o termo Ministério Público pode ser decomposto da seguinte forma. Deriva do latim ministerium, que significa ofício, trabalho, sacerdócio. "Público" vem do latim publicus e é "relativo ao povo", "aberto à comunidade".9

Segundo o promotor de justiça Saulo Mattos, a versão contemporânea do Ministério Público que foi lançada para o mundo guarda relação histórica com a principiologia liberal que incentivou a Revolução Francesa de 1789, marcada pelos abstratos ideais burgueses de igualdade, liberdade e fraternidade. Nas suas palavras:10

À semelhança da Revolução Francesa, nascia um novo Ministério Público de 1988, coordenado politicamente por uma elite burguesa desejosa de maior estabilização político-institucional e que, com a suavidade do discurso de garantia de direitos fundamentais para todos na nova ordem democrática, conseguiu realizar seu, e só seu, projeto de constitucionalização orgânica do Ministério Público.

Com isso, nos pulsantes anos de 1987-1988, a perspectiva que se divulgava, a título de propaganda institucional, é que o órgão ministerial deixaria de ser apenas o titular da ação penal e adquiria o importante papel de garantidor de direitos, de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, a quem incumbe, conforme dito acima, a defesa da ordem jurídica e do regime democrático. Mas, verifica-se que, em lugar disto, o Ministério Público tem trabalhado a partir dos justiçamentos11 às existências pobres, pretas, de homens e mulheres. Prisões em flagrantes de furtos de alimentos mostram a face mais abjeta do sistema de justiça criminal, contando com o aval do Ministério Público, que faz questão de ignorar o conceito dogmático de justa causa para a propositura da ação penal e, assim, seguir com denúncias irresponsáveis

Nesse contexto de práticas processuais penais racialmente injustas, não há reforma de Código de Processo Penal que, no campo normativo, constranja o Ministério Público a assumir, na prática, a sua identidade constitucional. É o curioso caso de uma instituição que faz o que quer quando deveria obedecer à normatividade constitucional.

Além de o Ministério Público se preocupar, na área criminal, com o valor patrimonial de comidas vencidas, percebe-se também que o normal agora é vender aquilo que antes era doado: feijão e arroz quebrados, ossos de boi12, carcaça e pés de galinha13, vísceras de peixe.14 Enquanto isso, o mapa da fome no Brasil faz a sua rota e constrange pessoas a procurarem comida em caminhão de lixo.15

Para quem se debruça sobre esse texto, que valor tem o lixo para você? Talvez responda de imediato: “lixo não tem valor”. No entanto, para o grupo social que vive abaixo da linha da pobreza, em situação de rua e os 1,4 milhão de catadores de resíduos sólidos que sobrevivem do lixo,16 "o lixo é o sustento".

Atualmente, de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil, 19 milhões de brasileiros/as enfrentam a fome,17  expostos/as ao desmantelamento das políticas sociais e da administração genocida do atual Governo.

Nestes casos e em tantos outros, escancara-se a face mais execrável de um sistema de justiça capaz de varrer, para o lixo do cárcere, homens e mulheres que já viviam empurrados à sarjeta e desprovidos/as de assistência estatal. Não há que se falar em consumação de crimes contra o patrimônio quando, diante dos nossos olhos temos a inaplicabilidade dos direitos sociais elementares dispostos na Constituição Federal, que há muito tempo viraram detritos. E por falar em lixo, quantos corpos mais serão aprisionados e desumanizados pela soberba do sistema de justiça?

E ainda hoje, as páginas da miséria vivida no “Diário de uma favelada” se avolumam. Carolina Maria de Jesus, eu também acredito que "... Há de existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá... Isto é mentira! Mas, as misérias são reais... o que eu revolto é contra a ganância dos homens que espremem uns aos outros como se espremesse uma laranja".18

Carolina Maria de Jesus, presente.

__________

1 Poema "Tem gente com fome", de Solano Trindade.

2 Poema "O Bicho", de Manuel Bandeira.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 "Recurso provido para restabelecer a sentença de primeiro grau, que reconheceu a aplicação do princípio da insignificância e absolveu o paciente do delito de furto." (RHC 140.017/SC, Rel. Min. EDSON FACHIN).

7 Art. 127 da Constituição Federal: O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

8 Disponível aqui.

9 Disponível aqui.

10 MATTOS, Saulo Murilo de Oliveira. Ministério Público e domínio racial: poucas ilhas negras em um arquipélago não-negro. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 10, n. 2 p.275, 2020.

11 Neste caso, as professoras Ana Luiza Flauzina e Thula Pires questionam o fato dos órgãos do sistema de justiça precisarem ser responsabilizados politicamente pelo papel que exercem na gestão do genocídio negro e na reprodução do racismo. A justiça atua de acordo com os preceitos constitucionais ao revés deles? Supremo Tribunal Federal e a naturalização da barbárie. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 11, N.02, 2020, p. 1211-1237.

12 Disponível aqui.

13 Disponível aqui.

14 Disponível aqui.

15 Disponível aqui.

16 Disponível aqui.

17 Disponível aqui.

18 Carolina Maria de Jesus em Quarto de despejo - diário de uma favelada.

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Aléssia Tuxá Indígena do Povo Tuxá. Defensora Pública do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica da DPE/BA. Mestra em Direito Público pela UFBA; Graduada em Direito pela UEFS.

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