Olhares Interseccionais

O sistema bota fogo nos pretos, mas é o "fogo nos racistas" que incomoda o sistema

Racismo, este é o crime perpetrado há 522 anos, mas com absolvição sumária dos acusados.

9/5/2022

A gente grita "fogo nos racistas" sempre que pode, mas a gente não bota fogo nos racistas.
Eles não gritam fogo nos pretos, mas eles botam fogo nos pretos sempre que podem.

Hércules Marques
Livro: Jovem preto rei – Nascido para vencer

"Um boy branco me pediu um high five, confundi com um Heil Hitler..."1 12 de março de 2022, o plantão da enfermeira socorrista do SAMU, Laura Cristina Cardoso, foi interrompido pelo racismo, ecoado livremente no lar da família tradicional brasileira. A dedicação ao trabalho na área de saúde, capaz de salvar a vida do idoso de 90 anos, vítima de Acidente Vascular Cerebral (AVC), talvez tenha ferido mortalmente a vida da profissional.

Em relato pelas redes sociais, ela desabafou: "Entro no quarto onde está a vítima e uma senhora que meio desesperada grita: 'E agora, filho? Ela é negra'". No que ele respondeu: "Tudo bem, mamãe. Ela está usando luvas". A vítima foi devidamente atendida pelas minhas mãos negras enluvadas e deixada aos cuidados do hospital privado que a família preferiu."2

Racismo, este é o crime perpetrado há 522 anos, mas com absolvição sumária dos acusados. Um país construído por mãos negras e indígenas, relegados a objetos pela elite aristocrática, que faz jorrar sangue negro a cada 23 minutos. Mas o que incomoda o sistema é o "fogo nos racistas".

Os/as profissionais de saúde foram responsáveis por salvarem este país, colapsado pelas práticas genocidas do (des)Governo Federal, somado à pandemia do coronavírus. A maioria dos/as que morreram nos hospitais foram pessoas negras, como negras também eram a maioria das mãos que faziam o (im)possível para salvar as vidas. Lidaram com a sobrecarga de trabalho, distanciamento da família, doenças de ordem psicológica, solidão, atrasos nos salários, corpos empilhados, mortes, valas abertas, sacos pretos, caixão e vela. Mas o que incomoda o sistema é o "fogo nos racistas".

No dia 12 de abril de 2022, um mês após a enfermeira do SAMU ter sido hostilizada enquanto exercia o seu trabalho, Rafaela Nascimento, enfermeira negra, foi condenada em uma ação de indenização. Desta vez, foi o sistema de justiça que se arvorou a tentar frear o grito de guerra de quem por muito tempo foi silenciado/a. Rafaela foi condenada a pagar a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), bem como excluir das redes sociais as publicações vinculadas à imagem de uma pessoa segurando cartaz com a máxima: "fogo nos racistas".

Isto porque, a sua irmã acusou a funcionária da loja autora da ação de tê-la agredido e proferido injúrias de cunho racial, tal qual "negra, cadela, careca". Houve o registro do Boletim de Ocorrência, mas o representante do Ministério Público requereu o arquivamento do inquérito policial em relação à injúria racial. Este ato levou Rafaela a relatar todos os fatos em suas redes sociais, gerando repercussão e protestos em frente à loja.

A loja, ora autora, ingressou com ação judicial e o pedido foi julgado improcedente, em 1ª instância. Após recorrer da decisão, obteve êxito, pois de acordo com o desembargador, "a publicação em rede social que atribui à apelante (loja) a responsabilidade por prática racista ou injuriosa, incitou a prática de crime (fogo nos racistas)". Vejam bem, o suposto crime de racismo praticado pela funcionária da loja, foi arquivado, mas o cartaz publicado nas redes sociais, segundo o acórdão, "configurou o dano moral praticado contra a pessoa jurídica".

"Estamos de olho Eye of tiger, eye of tiger, eu sigo de olho. Olha eu olhando pros fascista, igual Floyd olha pro McGregor, se num entendeu o que eu tô falando, eu devo 'tá falando grego, ó."3

"Na hora do julgamento, Deus é preto e brasileiro".4 No mesmo país em que os governantes incitam execuções sumárias, "é só mirar na cabecinha e atirar, pra não ter erro", o cristão, ex-militar e presidente da República, diz que "não é coveiro". Com a marca de 584.421 mortes registradas no Brasil, o Messias exclamou: "Covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou algumas semanas". Mas é o "fogo nos racistas" que incomoda o sistema.

No país em que corpos negros são abatidos utilizando-se do slogan "bandido bom, é bandido morto", as altas taxas de letalidade policial gritam sobre absurdos, conveniências e arquivamentos dos processos, chancelados pelo sistema de justiça, sob a alegação de legítima defesa. Mas uma mulher preta é condenada em 2ª instância por "exercício arbitrário da justiça com as próprias mãos, pois inaceitável em um estado democrático de direito", postar um cartaz com a frase "fogo nos racistas".

E olhe que a população negra só grita por reparação... "Firma, firma, firma, fogo nos racistas."5

__________

1 Djonga, Olho de Tigre, 2017.

2 Disponível aqui.

3 Djonga, Olho de Tigre, 2017.

4 Djonga, Olho de Tigre, 2017.

5 Djonga, Olho de Tigre, 2017.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Aléssia Tuxá Indígena do Povo Tuxá. Defensora Pública do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica da DPE/BA. Mestra em Direito Público pela UFBA; Graduada em Direito pela UEFS.

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Fábio Francisco Esteves é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), especializando em Direito Constitucional pela ABDConst, MBA em PNL e liderança de alto performance, juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), atualmente exercendo o cargo de juiz instrutor do Gabinete do Ministro Edson Fachin, no STF, professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Distrito Federal, ex-vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), co-fundador do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Negros - ENAJUN e do Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação - FONAJURD, co-criador do Projeto Falando Direito para educação em cidadania, Presidente da Comissão Multidisciplinar de Inclusão do TJDFT, membro da Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados para revisão da legislação antirracista, membro da Comissão para Promoção da Igualdade Racional no Processo Eleitoral, do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, foi Presidente da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (AMAGIS-DF), nos biênios de 2016/2018 e 2018/2020.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.