Olhares Interseccionais

Branco, este artigo é pra você!

Você, branco, talvez não tenha lido esta coluna até ver nela seu "nome". Seja bem-vindo, este texto é sobre você.

19/9/2022

Eles que são brancos e os que não são eles que
são machos e os que não são eles que são adultos
e os que não são eles que são cristão e os que não
são eles que são cristãos e os que não são eles
que são ricos e os que não são eles que são sãos
e os que não são todos os que são mas não acham
que são como os outros que se entendam que se
expliquem que se cuidem que se

(Brancos, Ricardo Aleixo)

Você, branco, talvez não tenha lido esta coluna até ver nela seu "nome". Talvez tenha sido tragado pela curiosidade de saber "o que esse preto está a dizer de mim?" Seja bem-vindo, este texto é sobre você.

A escala da existência humana pressupõe o humano e o humano é branco. Branco-macho-cis-hetero-rico-casado-cristão-semdeficiência é o ser paradigma da existência plena, completa, inteira. Todo o resto é pedaço-menor, é incompleto,  e vai-se descendendo até notar que a existência negra nem mesmo humana é - daí porque nos afligem diariamente com toda sorte de aviltamento do corpo, imagem, memória, subjetividade...

Por ter uma existência atravessada por dores atemporais, que nos conectam à colônia e ao futuro péssimo - tanto possível quanto provável -, temos escrito muito sobre a nossa condição de vítima das sevícias constantes, bem como de seus impactos sobre o nosso povo. O negro como um lugar de dor é uma construção frequente, ainda quando o que nos move é a denúncia dessa realidade. Com recorrência, apresentamos os números do genocídio negro, enunciamos as narrativas das famílias pretas marcadas na carne, contudo, não raro, cometemos o pecado de dar ao sujeito branco o benefício de figurar como agente oculto ou implícito.

Está aí um dos muitos privilégios de ser branco: não ser exposto, não ser apontado, não ser constrangido. Quando não "botamos o dedo na ferida", a consequência é essa aparência absolutória; por não ser referido, ou não ser referido o quanto deveria, o branco vai esmaecendo, se tornando etéreo e quase desimportante. De repente, as estatísticas que revelam a desgraça do viver negro parecem ser naturais, causadas por uma espécie de destino que há de se abater sobre nossas cabeças, sem agência, sem responsabilização ou possibilidade de interrupção do seu curso.

É o que acontece quando falamos das heranças da escravidão para o povo preto, tema da maior relevância, sem lembrar de dirigir os holofotes às heranças dessa mesma atrocidade para o povo branco. Enquanto nós carregamos no dorso as mazelas, os loiros carregam os louros dessa vil espoliação – até hoje e além.

"Os beneficiários do colonialismo europeu não eram apenas a companhias e as famílias ricas que participavam diretamente da extração das riquezas das colônias. Todas as outras classes, até as mais pobres, também se beneficiaram da elevação de padrão de vida, do desenvolvimento econômico e da transferência do trabalho pesado para as colônias" (Cida Bento, O Pacto da Branquitude, p. 29-30)

Os brancos vão transmitindo intergeracionalmente esse patrimônio material e imaterial que a posição hegemônica lhes legou, sem qualquer necessidade de parentesco. É de um branco a outro, pelo simples fato de sê-lo. A epiderme alva ativa automaticamente um feixe de privilégios que independem do grau de consciência do ser branco que os titulariza. Não há como acordar não-branco, ainda que você se envergonhe ou rejeite o mal causado por seus antepassados (e por seus contemporâneos!), do mesmo modo que nós, negros, não perdemos a ostensividade epidérmica por eventual ascensão ou inserção social, econômica, prestígio político ou coisa que o valha.

Nesse cenário, o branco que se acha menos branco por ser consciente e empático com as violências que nós sofremos apenas reforça sua prerrogativa de "poder ser o que se quer". Existe até quem se declare pardo, sabendo - ou devendo saber - que essa afirmação faz incidirem políticas afirmativas voltadas para o povo negro (que é a soma de pardos e pretos, vale lembrar). Coisa de branco mesmo...

Se você chegou até aqui, não se preocupe: sabemos que nem todo branco é assim. Fala-se em "branquitude" para nominar essa vantagem que o povo branco tem independentemente de querê-la ou aceitá-la; fala-se também em pessoas (brancas) "aliadas", para ressalvar quem, apesar da sua posição especial, deseja contribuir para uma mudança do status quo.

Não ache, porém, que você é um branco aliado se você

(i) usa o termo "racismo estrutural" para isentar a responsabilidade pelas práticas diárias de discriminação, suas e dos outros;

(ii) se você leu a orelha de um ou dois livros de pessoas negras, absorveu ideias gerais e acredita que está imune de ser racista após essa sua "imersão";

(iii) se você acha que pode escrever ou falar sobre o racismo sem ouvir, consultar e aprender com pessoas negras (as que estejam dispostas a ensinar!), e se faz isso para ser protagonista absoluto, favorecendo a você e não à causa;

(iv) se você ainda não entendeu que a diversidade em eventos está na participação real, em número significativo, de pessoas negras - e não na presença figurativa, no convite feito para colorir o cartaz pretensamente europeu;

(v) se as pessoas negras no seu Instagram, nos lugares que você frequenta, nos seus encontros festivos estão apenas servindo, trabalhando, atendendo aos seus prazeres dominicais;

(vi) se a existência negra é seu objeto de estudo, seu fetiche, e suas práticas seguem as mesmas de sempre;

(vii) se você interrompe, interpela, interdita as pessoas negras no seu falar e existir, especialmente quando o assunto é a nossa vivência;

(viii) se você só é antirracista nas redes sociais, nos discursos oficiais, mas esquece o seu antirracismo nos clubinhos, nos "petits comités" – isso vale também para as mulheres brancas, que, na luta contra o velho e bruto machismo, esquecem de contemplar as mulheres negras;

(ix) se você...;

(x) se você...;

(...) ... 

... todos os que são mas não acham que são como os outros que se entendam que se expliquem que se cuidem que se...

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Colunistas

Aléssia Tuxá Indígena do Povo Tuxá. Defensora Pública do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica da DPE/BA. Mestra em Direito Público pela UFBA; Graduada em Direito pela UEFS.

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Fábio Francisco Esteves é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), especializando em Direito Constitucional pela ABDConst, MBA em PNL e liderança de alto performance, juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), atualmente exercendo o cargo de juiz instrutor do Gabinete do Ministro Edson Fachin, no STF, professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Distrito Federal, ex-vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), co-fundador do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Negros - ENAJUN e do Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação - FONAJURD, co-criador do Projeto Falando Direito para educação em cidadania, Presidente da Comissão Multidisciplinar de Inclusão do TJDFT, membro da Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados para revisão da legislação antirracista, membro da Comissão para Promoção da Igualdade Racional no Processo Eleitoral, do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, foi Presidente da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (AMAGIS-DF), nos biênios de 2016/2018 e 2018/2020.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.