Olhares Interseccionais

Uma provocação inicial

A militância na causa indígena e a recente atuação na Defensoria Pública do Estado da Bahia tem mostrado que o primeiro obstáculo que os indígenas precisam superar no processo de luta pela efetivação de direitos é a invisibilidade das suas lutas e lutos.

17/4/2023

Este é o meu primeiro texto para essa coluna e eu não poderia deixar de mencionar a felicidade que sinto por, ladeada de tanta gente que admiro, ocupar este espaço e poder falar sobre alguns temas interseccionais que tocam a minha existência e, talvez, estejam invisibilizados na sua. O gosto pela escrita me acompanha há muito tempo, assim como a insegurança sobre os frutos dela. Foram muitos os diários - físicos ou digitais - e as notas com ideias e pensamentos sobre temas diversos - desde questões existenciais até o objeto deste artigo.

Entre os seus autores preferidos, quantos são indígenas? Quantos autores indígenas você conhece? Quantas autorAs indígenas? O que é que você sabe sobre nós, além daquilo que te ensinaram na escola sobre a nossa participação como figurante na primeira temporada da série sobre a história do Brasil (mais precisamente no capítulo "descobrimento") e das notícias sobre nossa briga por terra ou alguma grave situação de violação dos nossos direitos?

Nós somos mais do que isso. De acordo com dados parciais do censo 2022, hoje no Brasil existem 1.652.8761 indígenas em todos os Estados, o que corresponde a um aumento de quase 100% em relação aos dados do censo de 20102. A constatação da existência de um número tão expressivo de indígenas no território nacional deveria naturalmente induzir a uma outra reflexão: onde eles estão? É certo que no imaginário popular os indígenas brasileiros estão todos vivendo da caça e da pesca em alguma área de difícil acesso da floresta amazônica, mas os dados do último censo demonstram que há indígenas em todas as unidades federativas. Sim, há indígenas no Amazonas, no Acre, mas há também em São Paulo, em Santa Catarina, em Pernambuco, no Espírito Santo, em Minas Gerais e em todas as outras 20 unidades da federação.

O fluxo natural desta reflexão levará ao próximo questionamento como vivem esses indígenas? A resposta a essa pergunta, de tão simples, surpreenderá muita gente: os povos indígenas do Brasil vivem de formas variadas, em zonas urbanas e rurais, trabalhando com tecnologia, arte, saúde, agricultura etc. e isso não tem o condão de torná-los “aculturados” ou menos indígenas. Ter acesso a tecnologias, ao mercado de trabalho e aos produtos da sociedade capitalista em que estamos inseridos não é critério definidor de etnia. Aqui eu peço desculpas aos leitores que têm a sensação de estar perdendo tempo de vida ao ler tanta obviedade, mas o óbvio precisa ser dito e, infelizmente, vocês ainda são a minoria.

Feitos esses esclarecimentos e considerando a surpresa de muitos diante das informações trazidas, chegamos ao cerne da questão: se esses indígenas são tantos e estão em todos os lugares por que você não os conhece?

A militância na causa indígena e a recente atuação na Defensoria Pública do Estado da Bahia, à frente do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica, tem mostrado que o primeiro obstáculo que os indígenas precisam superar no processo de luta pela efetivação de direitos é a invisibilidade das suas lutas e lutos. E isso não é por acaso.

A legislação brasileira sobre povos indígenas pré-Constituição de 1988 é orientada pelo paradigma assimilacionista, pautado pela tentativa de integrar os indígenas à “comunhão nacional”. A ideia de integração aqui não corresponde apenas a uma viabilização do acesso aos serviços e direitos ofertados pelo Estado e à convivência respeitosa em sociedade; integrar corresponde ao outro de uma ponte que precisaria ser atravessada pelos indígenas para que pudessem tornar-se parte da sociedade brasileira qualquer cidadão e a os passos dessa travessia seriam também de distanciamento da própria cultura, de modo que o caminho estaria percorrido quando se estivesse completamente despido desta. A perfeita materialização deste paradigma encontra-se positivada na lei 6001/1973, o Estatuto do índio, que em seu art. 4º classifica os indígenas em isolados, em via de integração e integrados.

A partir da Constituição Federal de 1988, este paradigma foi formalmente superado e aos indígenas passou a ser assegurado o direito de preservar e ter respeitados seus costumes e tradições sem que isso seja empecilho ao acesso aos demais direitos. Na prática, porém, o processo de superação de um paradigma como este, que esteve vigente por mais de 4 séculos demanda muito mais esforço do quê a mera atividade legislativa e exige esforços, inclusive, do sistema de educação.

Os livros didáticos brasileiros contam a história de surgimento do Estado brasileiro com a versão do “descobrimento” em que os indígenas são constantemente retratados como selvagens que viviam no meio do mato, passaram pelo processo de catequização e sumiram. É por causa dessa narrativa que você não tem referências indígenas atuais e ainda vê escolas que insistem em utilizar o dia 19 de abril para pintar as crianças com tinta guache colocar um enfeite papel na cabeça e fazer bater a mão na boca para fazer barulho. É por causa dessa narrativa que as lutas e lutos dos povos indígenas precisam romper o manto da invisibilidade.

A histórica ausência de indígenas em espaços de poder, nas instituições públicas e a conivência da sociedade com isso reafirma que estes espaços não foram pensados para nós, o presente da sociedade brasileira foi planejado sem contar com a nossa presença. Mas nós estamos aqui, estamos ocupando esses espaços e aldeando as instituições.

Uma importante ferramenta para suprir essa lacuna é a política de reserva de vagas em concursos públicos. Mas, diferente do que acontece em relação à população negra, não existe ainda uma lei federal tratando sobre a reserva de vagas para indígenas em concursos públicos, apenas algumas poucas iniciativas, sobretudo nas Defensorias Públicas e mesmo as instituições que possuem uma política de reserva de vagas que contempla a população indígena, ainda é frequente a reserva de um mesmo percentual para negros e indígenas, disputando entre si. Essa medida, se por um lado representa um avanço em relação à retirada do véu da invisibilidade, também desnuda outra questão: gera uma concorrência entre grupos historicamente vulnerabilizados para acessar espaços que foram negados ao longo dos séculos.

Outro aspecto relevante é a valorização da educação escolar indígena, a educação diferenciada que permite o acesso aos conteúdos do currículo regular mas também aos conhecimentos tradicionais do seu povo no ambiente da escola. A consagração da educação escolar indígena e a sua farta regulamentação no âmbito do MEC é uma demonstração de como espaços pensados para apagar a cultura indígena vêm sendo demarcados para que se tornem locus de fortalecimento dela.

A finalização dos processos de demarcação dos territórios indígenas que, de acordo com o art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, deveria ser concluído até 5 anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, consiste noutro instrumento poderoso nessa luta contra a invisibilidade destinada aos Povos Indígenas.

Há muito a ser discutido sobre esses fatores que contribuem para suprir essa lacuna de presença indígena em espaços de poder e vamos falar, com calma, nos próximos textos. Até lá!

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1 Dados parciais do censo 2022, disponível aqui.

2 IBGE. Os indígenas no Censo Demográfico 2010 primeiras considerações com base no quesito cor ou raça.disponível aqui.

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Aléssia Tuxá Indígena do Povo Tuxá. Defensora Pública do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica da DPE/BA. Mestra em Direito Público pela UFBA; Graduada em Direito pela UEFS.

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Fábio Francisco Esteves é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), especializando em Direito Constitucional pela ABDConst, MBA em PNL e liderança de alto performance, juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), atualmente exercendo o cargo de juiz instrutor do Gabinete do Ministro Edson Fachin, no STF, professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Distrito Federal, ex-vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), co-fundador do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Negros - ENAJUN e do Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação - FONAJURD, co-criador do Projeto Falando Direito para educação em cidadania, Presidente da Comissão Multidisciplinar de Inclusão do TJDFT, membro da Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados para revisão da legislação antirracista, membro da Comissão para Promoção da Igualdade Racional no Processo Eleitoral, do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, foi Presidente da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (AMAGIS-DF), nos biênios de 2016/2018 e 2018/2020.

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