Olhares Interseccionais

"Olha doutor, podemos rever a situação: Pare a polícia, ela não é a solução, não!"*: Perversidade racializada nos homicídios perpetrados pelo Estado

A Bahia assumiu a liderança do Estado em que mais ocorre mortes decorrentes de intervenção policial, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

21/8/2023

"Mundo moderno, lei do enquadro,
peito estendido, vários tiros no alvo.
 A carne barata continua mais fraca,
o sangue inocente na mão do Estado.
Corpos sequestrados, desbaratinados,
sabe que gera na consequência.
O sangue frio, o sol que queima,
sabe que gera na consequência.
‘Tô cheia de ódio e sem emblema,
Exú escuta o que você pensa".

$Salbitch - Cronista do Morro

Esse texto nasceu diferente, foi um filho parido à fórceps. Pelas inúmeras demandas da vida, por não estar alheia aos acontecimentos do cotidiano e por ter a certeza de que o corpo preto já nasce alvo, a sensação é que vivemos em uma sociedade adoecida. Parcelas da humanidade sendo desumanizadas. Outras parcelas desumanizando as humanidades. E tal qual Nando Reis, em Relicário, eu também pergunto: "O que está acontecendo? O mundo está ao contrário e ninguém reparou..."

Homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial operados sob o estigma da banalidade. O Brasil mostrando a sua cara e escancarando a política das vidas que são matáveis, dos corpos descartáveis e da polícia que mais mata. Seguindo o lema “Deus, Pátria, família, os homens de preto ou de marrom, deixam corpos pretos caídos ao chão. Como se não fosse amargo demais, há um vídeo circulando nas redes sociais, no qual o navio negreiro de prenome “caveirão”, jorra o sangue do abate, em frente ao Hospital Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.

“Entre esquerda e direita, continuo preta”, sentenciou Sueli Carneiro nos idos dos anos 2000 e tão atual, revela a face mais abjeta de um país construído e sustentado por mãos negras, mas que, regado a sangue negro, odeia as pessoas negras.

São negras as vítimas da matança institucionalizada promovida pelo Estado Brasileiro. Em se tratando da Bahia, o dado é digno de uma intervenção. A Secretaria de Segurança Pública, em uma fala que revela a descartabilidade de alguns corpos, informou que as pessoas mortas em confrontos com os agentes são "homicidas, traficantes, estupradores, assaltantes, entre outros criminosos". Por essa razão, não computa os registros junto com os dados de "morte praticada contra um inocente".

Revelando uma política de subnotificação de dados e perpetrando a disposição governamental de "botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol"1, em alusão à fala do ex. Governador, ao comentar a Chacina do Cabula, a Bahia assumiu a liderança do Estado em que mais ocorre mortes decorrentes de intervenção policial, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.2

E são diversas as pesquisas que trazem dados alarmantes acerca do tratamento ofertado a essas mortes. O relatório "Autos de resistência”: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011) elaborado pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana, da UFRJ, revelou que "o número de inquéritos de ‘autos de resistência’, arquivados por ‘exclusão de ilicitude’ a partir de 2005 alcança a cifra de 99,2% por cento de todos os inquéritos instaurados"3.

E como se não bastasse, o Supremo Tribunal Federal, sela o pacto narcísico que rege, guarda, governa e ilumina as decisões do Judiciário Brasileiro, sendo composto por 11 ministros terrivelmente brancos. A mais alta Corte continua completamente alva, mesmo quando diversos esforços foram envidados para que o presidente Lula indicasse uma mulher negra.

Daí eu lembro de Steve Biko ao dizer que "estamos por nossa própria conta". E o apelo é para que não nos desviemos no caminho. Os nossos antepassados sofreram agruras nos navios, não podemos nos contentar com qualquer transporte dos nossos corpos, sob pena de ferirmos a ética dos que vieram antes.

Merecemos estar sentados/as nas primeiras classes dos aviões, viajando para falar de nós, por nós. “E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados, que neste trabalho assumimos nossa própria fala”, conforme ensinou a saudosa Lélia González.

__________

*Edson Gomes - Camelô.

1 "É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol", comparou. "Depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores da arquibancada irão bater palmas e a cena vai ser repetida várias vezes na televisão.”

2 Disponível aqui.

3 MISSE, Michel. (Coord.). “Autos de resistência”: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Relatório de pesquisa. Rio de Janeiro: Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011.

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Colunistas

Aléssia Tuxá Indígena do Povo Tuxá. Defensora Pública do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica da DPE/BA. Mestra em Direito Público pela UFBA; Graduada em Direito pela UEFS.

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Fábio Francisco Esteves é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), especializando em Direito Constitucional pela ABDConst, MBA em PNL e liderança de alto performance, juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), atualmente exercendo o cargo de juiz instrutor do Gabinete do Ministro Edson Fachin, no STF, professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Distrito Federal, ex-vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), co-fundador do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Negros - ENAJUN e do Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação - FONAJURD, co-criador do Projeto Falando Direito para educação em cidadania, Presidente da Comissão Multidisciplinar de Inclusão do TJDFT, membro da Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados para revisão da legislação antirracista, membro da Comissão para Promoção da Igualdade Racional no Processo Eleitoral, do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, foi Presidente da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (AMAGIS-DF), nos biênios de 2016/2018 e 2018/2020.

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Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

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