O envelhecimento e a deficiência, quando analisados interseccionalmente, revelam o que denominamos de estado de invisibilidade, e com ele o discurso de ódio, violência simbólica, abandono e exclusão social que persistem no Brasil contemporâneo e estão arraigados na própria estrutura do Estado. A associação entre idade e deficiência é expressiva e importante para entendermos a sociedade e construir políticas públicas efetivas e inclusivas. Dados recentes do Censo 2022 indicam que 47,2% da população idosa apresenta deficiência, ou seja, quase a metade das pessoas com mais de 60 anos declarou que possui pelo menos um tipo de deficiência (física, sensorial, intelectual ou psicossocial).
A Organização das Nações Unidas – ONU, considerou o período entre 1975 e 2025 como a “Era do Envelhecimento”, um momento de transformação global impulsionado pelo aumento da longevidade e da população idosa. Estamos no final do último ano da “Era do Envelhecimento”, período de intensa transformação e crescimento da pirâmide etária, que revela um envelhecimento sem qualidade e sem acesso adequado a serviços públicos básicos, especialmente de saúde. Os dados demonstram a gravidade do envelhecimento sem observância da ética do cuidado com a pessoa idosa que, somada a questões socioeconômicas, gera ou agrava a deficiência, aumenta a pobreza e a exclusão social.
Apesar da centralidade desse fenômeno, a sociedade ainda opera sob lógicas discriminatórias que inferiorizam corpos considerados “não produtivos”, “doentes” ou “imperfeitos”, pensamento construído a partir da cultura da normalidade. Esse imaginário social reproduz duas formas específicas de opressão: o capacitismo – preconceito contra pessoas com deficiência – e o etarismo – preconceito baseado na idade, especialmente contra pessoas idosas.
Essas formas de preconceito articulam estruturas sociais que privilegiam a juventude, a produtividade e a autonomia, sustentadas por um paradigma corporal normativo de uma cultura baseada em padrões sociais de comportamento, aparência, funcionalidade corporal plena e pensamento, considerados corretos ou esperados em uma sociedade moderna.
O envelhecimento como construção sociocultural se mostra bem aparente quando partimos do estudo sobre o envelhecimento, a partir de diferentes perspectivas analíticas: biológica, economicista, sociocultural e transdisciplinar. A visão biologizante da “velhice”, que a reduz a processos de declínio físico e cognitivo do corpo, sem observância das condições socioeconômicas, contribui para a construção de estereótipos negativos, que associam o processo natural de envelhecimento a doença, incapacidade, dependência e improdutividade.
No ambiente laboral, por exemplo, o etarismo se manifesta como a exclusão e/ou discriminação da pessoa idosa em processos seletivos, na promoção de cargo ou de aumento salarial; além de sofrer pressão para aposentadoria antecipada em decorrência de sua desvalorização simbólica, como a falta de acesso a novas tecnologias e invisibilidade no planejamento de crescimento e expansão da empresa, entre outros aspectos.
O etarismo é, portanto, uma violência estrutural que viola a dignidade humana, autonomia, solidariedade, igualdade e a não discriminação. Quando a condição etária avançada colide com a deficiência, os esteriótipos negativos se amplificam, dobrando o preconceito e a discriminação, agora a partir do binômio: etarismo e o capacitismo.
O capacitismo, como aponta Anahí Guedes de Mello, é um sistema de opressão que hierarquiza sujeitos a partir de uma corponormatividade baseada no ideal de corpo jovem, produtivo, funcional e sem deficiência. Ele se expressa em barreiras atitudinais, barreiras comunicacionais, barreiras arquitetônicas e urbanísticas, barreiras tecnológicas e informacionais. O capacitismo não é apenas um preconceito individual, trata-se de um regime político e cultural que produz desigualdades, violência simbólica e marginalização.
A análise interseccional é indispensável para compreender como o capacitismo e o etarismo se conectam. A fragilidade natural do corpo da pessoa idosa, frequentemente torna-se alvo do capacitismo ao ser associado à incapacidade, lentidão, dependência e falta de autonomia. No mesmo sentido, pessoas com deficiência podem enfrentar etarismo, quando se considera que seu processo de envelhecimento será “pior”, “mais rápido” ou “mais custoso” para a pessoa e para a sociedade.
Vale ressaltar que raça, condição socioeconômica, orientação sexual, território e identidade de gênero podem intensificar essas exclusões. Por exemplo, mulheres negras, idosas e com deficiência, enfrentam níveis mais elevados de violência doméstica, pobreza, abandono e invisibilidade social. Por isso, compreender essas intersecções é fundamental para a formulação de políticas públicas que não reproduzam desigualdades, mas inclusão concreta.
Mas a inclusão ainda não é uma realidade. A luta por mudanças estruturais foi tardia, tanto para as pessoas idosas, como para as pessoas com deficiência. Se consideramos a Constituição Federal de 1988 e as suas diretrizes protetivas voltadas para os grupos vulnerabilizados, podemos observar que as pessoas idosas permaneceram por 15 anos sem a tutela concreta e específica dos seus direitos, que só foi efetivada com o Estatuto da Pessoa Idosa em 2003 (Lei nº. 10.741/2003). E quando tratamos das pessoas com deficiência, a situação é ainda mais grave, essa proteção normativa só ocorreu 27 anos depois da Constituição Federal, quando sancionada a Lei 13.146, em 2015, denominada Estatuto da Pessoa com Deficiência. O que podemos tirar como conclusão lógica desse atraso na tutela concreta desses grupos minoritários, é que esse estado de invisibilidade não é apenas social, é também normativo e, portanto, está na própria estrutura do Estado.
O capacitismo e etarismo são, portanto, fatores de produção de desigualdades que violam diretamente a dignidade humana. Não são distorções pontuais: são estruturas de poder, enraizadas na cultura, nas instituições e nas relações sociais. Ambos atuam na desumanização de corpos que fogem ao ideal de juventude, produtividade e autonomia plena dos seus corpos.
Enfrentar esses sistemas exige políticas públicas interseccionais concretas, ações institucionais contínuas, formação e participação social ativa, valorização e representação de grupos minoritários nos espaços de poder, além do reconhecimento da interdependência e da vulnerabilidade humana. Por isso, a inclusão só será efetiva quando o Estado reconhecer que não se trata apenas de acessibilidade, mas de transformação cultural profunda na sua própria estrutura, visando uma inclusão concreta de todos os atores sociais, especialmente os vulnerabilizados.
Portanto, em um país que envelhece rapidamente e que possui milhões de pessoas com deficiência e idosas, compreender e combater o capacitismo e o etarismo é condição essencial para promover justiça social, igualdade e dignidade humana. Reconhecer a diferença e a diversidade humana é uma questão de equidade, que se constrói quando corpos, idades, capacidades e autonomia são vistos, não como exceção, mas como parte do tecido humano que exige reconhecimento, igualdade, dignidade e inclusão.
Referências
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