PI Migalhas

Seis milhões de judeus, uma palavra e a poesia concreta

Os colunistas mencionam dois exemplos de criação artística e discutem sobre a proteção autoral.

3/2/2014

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio

A notícia sobre um livro1 contendo a palavra judeu repetida seis milhões de vezes chamou atenção na semana passada2, marcada pelo Dia Internacional da Memória do Holocausto3. Contendo 1.250 páginas idênticas, cada uma com 40 colunas e 120 linhas, somam-se 4.800 "judeus" por página, dispostos de maneira idêntica, página após página.

And Every Single One Was Someone4, título da obra, convida-nos a olhar para cada uma daquelas palavras e imaginar um nome, um rosto, uma pessoa, seu círculo de amizades, família, emprego, desejos e aspirações, gostos, personalidade. Convida-nos, portanto, a pensar a pessoa por trás do rótulo judeu, realizando um processo inverso e antagônico àquele de massificação pelo gênero, fundamento primeiro de qualquer genocídio, que suprime todos esses caracteres em razão do pertencimento a um grupo que, por interesse do dominador, deve ser exterminado.

Essa personificação da vítima do genocídio lentamente transforma obra de Phil Chernofsky em um protesto universal e o distancia da concretude singular do genocídio judeu da segunda guerra, permitindo-nos refletir sobre a reumanização do indígena ao tibetano, do armênio ao bengali assassinado pelo ou depois do mesmo processo de generificação odiosa que se conduziu na alemanha nazista.

Há alguma dúvida sobre a gritante característica artística dessa obra que, embora composta pela singeleza da repetição de uma única palavra, contem um mundo de significados e desperta uma avalanche de pensamentos, sentimentos e discussões?

Todos se lembrarão do poema Luxo/Lixo de Augusto de Campos, publicado em 19655. Compõe-se, à primeira vista, de uma única palavra, "Lixo", que, no entanto, se observada com cuidado, revela que cada uma das letras dessa palavra principal é composta de repetições, em tamanho reduzido, da palavra "Luxo" em tipografia rebuscada6.

A brilhante composição nos permite extrair diversos significados possíveis a partir dessas duas palavras – o desvalor do luxo, a relatividade do mundo que se molda à perspectiva do observador, o inexorável ciclo que descarta e tritura o que é puramente material, entre muitos outros. A evocação de múltiplos significados a partir de duas simples palavras transforma-as, em razão de sua disposição, em objeto artístico inquestionável7.

Os dois casos mencionados são exemplos de criação artística que, apesar de não se constituirem em exemplos clássicos e simples de obra autoral como um romance típico, são indiscutivelmente criações originais do espírito. Será que merecem proteção autoral?

Outra questão, paralela à da proteção como obra e, ao mesmo tempo, dela decorrente, é a do grau de apropriação do material protegido: considerando-se que determinada obra deve ser protegida por direitos autorais, em que medida a reprodução de partes ou trechos viola o direito do criador8? Perceba-se que, nos casos mencionados, este problema se agrava e ganha especial relevo, já que a proteção de um poema de duas palavras e de um livro contendo uma única não poderia, por óbvio, garantir uso exclusivo dessas duas palavras ao criador.

Vejamos.

Do ponto de vista legislativo, tem-se que o conjunto de normas aplicáveis à matéria em território nacional traz rol exemplificativo de obras intelectuais9, estabelecendo tão-somente que serão assim consideradas e protegidas as (i) criações do espírito que se encontrem (ii) expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível10.

Quanto ao requisito de serem criações do espírito, a doutrina normalmente aponta a restrição da proteção autoral àquilo que (a) é produto da criação humana e (b) se caracteriza pela originalidade; quanto à exigência da expressão ou da fixação, dir-se-á que cristaliza o conceito autoral de proteção à forma, ao produto da idéia revestida de corporificação passível de percepção, e não à idéia em si.

A perquirição do conteúdo do requisito de (b) originalidade é relativamente trabalhosa, mas, entendemos, importante para orientar o estabelecimento da amplitude de apropriação decorrente da concessão de proteção. Identifica-se, neste requisito, dois elementos: (b.1) um, objetivo, compatível com o conceito de novidade do direito de propriedade industrial (existência ou não de criação idêntica prévia), e outro, subjetivo, a que gostaríamos de chamar (b.2) originalidade propriamente dita, representativo do concurso do autor no produto final objeto da criação autoral. Em alguma medida, a originalidade propriamente dita será grau da novidade12, determinando-lhe o distanciamento em relação ao quanto já foi criado.

Sob o prisma desses requisitos, parece-nos claro que as obras de Augusto de Campos e de Phil Chenofsky devem desfrutar de proteção autoral. São novas, trazem em si indelével traço de criação que lhes foi aposto por seus autores e encontram-se expressas, fixadas em suporte que permite sua apreciação por meio dos sentidos. Além disso, e a despeito de o julgamento do mérito das obras não constituir prova a que se deve submetê-las a fim de determinar se são ou não passíveis de proteção, claro está que em caráter artístico se distanciam em muito de textos meramente descritivos, informativos e despidos de maior criatividade.

Quanto ao segundo questionamento, tentemos identificar qual é o grau de apropriação que essa proteção proporciona. Será que estamos todos proibidos de utilizar a palavra judeu em nossos escritos, já que concluímos que a obra que a repete seis milhões de vezes é digna de proteção autoral? O que dizer das palavras luxo ou lixo – ferimos os direitos de Augusto de Campos ao publicá-las?

No caso de Chenofsky, lembremos que a originalidade propriamente dita da obra decorre não da utilização do termo comum judeu, mas da sua repetição em número equivalente à estimativa de judeus mortos na segunda guerra, além da disposição alinhada e repetida à exaustão ao longo de suas páginas, característica que evoca o tratamento dos prisioneiros judeus como apenas números, animais massificados nas incontáveis fileiras dos campos de concentração. A obra, portanto, em sua completude (porque daí decorre sua originalidade específica), tal como se encontra, é passível de proteção autoral, mas não concedeu ao Rabino a cerebrina exclusividade sobre o uso das partículas que a compõem. A reprodução do livro idêntico, neste caso, sem autorização do autor ou da lei, constituirá violação, mas não a reprodução parcial.

O mesmo se diga do poema de Augusto de Campos. Aquela fixação específica da constituição das letras da palavra LIXO pelas palavras LUXO, em tipografia reduzida e rebuscada, reificação da originalidade autoral é que não poderá ser reproduzida, permanecendo evidentemente livre o uso dos termos particulares que, somados, compõem a obra13. Uma reprodução do poema como graficamente representado constituirá, se não autorizada ou permitida por lei, violação.

Esses exemplos revelam casos em que a originalidade propriamente dita da obra decorre de seu conjunto e de sua inteireza, sendo impossível decompô-las em partes menores que, isoladas, seriam passíveis de proteção. No caso de obras literárias mais comuns, como romances ou poemas não-concretos, é possível que delas se extraiam partes que, em si, carregam originalidade suficiente, ainda que separadas do todo a que pertencem.

O limiar da violação será ultrapassado, portanto, quando o conjunto reproduzido sem autorização legal ou do autor se revestir de novidade e originalidade propriamente dita suficientes para que sejam protegidas. Aquém desse limite estariam, portanto, as partículas que, independentes e isoladas, não são passíveis de apropriação.

A análise casuística, aqui, será indispensável na maioria das vezes para determinar, no caso concreto, os limites da proteção autoral. Relembre-se, apenas para rechaçá-lo, o mito do limite de oito compassos copiados para que uma composição seja considerada como plagiária de outra já existente. Haverá casos em que vinte compassos não constituirão reprodução não autorizada, porque destacados do todo não se revestem de originalidade suficiente a sustentar proteção autônoma, e encontrar-se-ão exemplos em que um conjunto de notas de um mesmo compasso poderá infringir direito alheio. Quem não se lembra da sequência sonora celebrizada no filme Contatos Imediatos de Terceiro Grau?

Assunto complexo, que merece sempre a mais atenta observação.

__________

1And Every Single One Was Someone, de Phil Chernofsky. Geffen Publishing House, 2013.

2
Holocaust Told in One Word, 6 Million Times

3
27 de janeiro marca a liberação dos prisioneiros remanescentes de Auschwitz, em 1945, pelo exército vermelho. A data comemorativa (ou, melhor dizendo, a data memorial) foi estabelecida como tal por meio da Resolução da ONU 60/7, de 3 de novembro de 2005. Por ocasião dessa 60ª Assembleia Geral, o representante brasileiro Ronaldo Mota Sardenberg deu a seguinte declaração, relatada indiretamente no texto da ata: "The Jewish Holocaust had been a paradigm of genocide, a crime that, until then, lacked definition and did not allow for legal recourse. The Hague Treaties had not mentioned genocide. Massacres prior to the Holocaust could not be properly judged, and their perpetrators could not be punished, including the crimes committed against the indigenous peoples of the Americas during the colonial period, along with the practice of slavery. The profound impact of the Holocaust prompted the international community to attempt, through the United Nations, to define genocide as an international crime and to bring its perpetrators to justice. In 1948, the United Nations approved the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide and, more recently, the crime was incorporated into the Rome Statute of the International Criminal Court. He said the fight against the crime of genocide would only be complete when States adhered to and implemented human rights instruments in both the domestic and international spheres. In remembering the Holocaust, the international community not only renewed its indignation and rejection of the actions committed, but also renewed its commitment to fight oppression and prejudice wherever it took place".

4E cada um era alguém.

5Um fato curioso que merece ser mencionado: Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, precursores do movimento concretista brasileiro, estudaram, na década de 1940, na gloriosa Faculdade de Direito do Largo São Francisco. É opinião modesta deste articulista que seus nomes deveriam fazer companhia aos de Castro Alves, Álvares de Azevedo e Guilherme de Almeida nas portadas ou colunas da velha e sempre nova academia.

6Uma busca pelo termo "Luxo/Lixo" em qualquer buscador revelará a imagem-poema.

7poesia concreta: [...] a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutura. espaço qualificado: estrutura espácio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear, daí a importância da idéia de ideograma, desde o seu sentido geral de sintaxe espacial ou visual, até o seu sentido específico (fenollosa/pound) de método de compor baseado na justaposição direta – analógica, não lógico-discursiva – de elementos. "il faut que notre intelligence s’habitue à comprendre synthético-ideographiquement au lieu de anlytico-discursivement" (apollinaire). eisenstein: ideograma e montagem. Plano-Piloto para Poesia Concreta. Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Noigrandes, 4, São Paulo, 1958.

8Este tema específico será objeto mais detalhado de um artigo atualmente em gestação, em conjunto com a Dra. Eliane Y. Abrão, cuja parceria muito nos honra.

9Termo por demais abrangente. Rol e requisitos do artigo 7º. da LDA.

10Critérios iguais ou semelhantes são comumente encontrados em estatutos autorais em todo o mundo. No México, artigo 13 da Ley Federal Del Derecho de Autor (DOF 10-06-2013); no Chile, artigos 1º. e 3º. Da Ley 17.336, que não põe requisito geral de fixação mas o menciona nas exemplificações de obras protegidas; no Uruguai, artigo 5º da Ley 9.739, conforme modificações introduzidas pela Ley 17.616; na Colômbia, artigo 2º da Ley 23 de 1982 (nivel nacional); na Argentina, artigo 1º da Ley 11.723; nos EUA, parágrafo 102, capítulo 1, Título 17 do United States Code.

11Parte da doutrina (especialmente, Eliane Y. Abrão) adiciona o requisito de estar a obra dentro do prazo legal de proteção aplicável à época de sua publicação. Concordamos, mas sem explorar o tema, em razão de não se relacionar ontologicamente com a figura da obra protegida.

12Esta posição, que identifica a originalidade propriamente dita como grau da novidade é uma proposição original que não se baseia em nenhuma construção doutrinária previamente conhecida pelos autores. Como tal, não foi ainda submetida a um debate que permitiria o aperfeiçoamento de sua essência ou mesmo seu descarte como tentativa teórica. Afigura-se-nos válida como ferramenta de análise.

13O direito marcário é contraexemplo desse conceito. As concessões de marcas nominativas representam, efetivamente, uma apropriação da palavra, respeitando tão somente a restrição da especialidade.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Luciano Andrade Pinheiro é advogado. Graduado pela Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito Autoral. Autor de artigos jurídicos. Palestrante. Perito judicial em propriedade intelectual. Foi assessor de técnica legislativa na Câmara dos Deputados, diretor adjunto da Escola Superior da Advocacia da OAB/DF e vice-presidente da Caixa de Assistência dos Advogados do Brasil/DF.