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Você sabe o que é uma obra órfã?

Você sabe o que é uma obra órfã?

12/3/2018

Luciano Andrade Pinheiro e Carolina Diniz Panzolini

É muito comum o interesse em produzir obras derivadas, a partir de obras intelectuais já veiculadas, ou mesmo de proceder a usos, modalidades e explorações econômicas diversas. Quando o autor ou titular é conhecido ou fácil de encontrar, não há problema. A dificuldade surge quando o autor da obra que se pretende usar já morreu ou está desaparecido e não se encontra facilmente o titular dos direitos.

Não estamos falando de obra em domínio público, cujo prazo de 70 anos já expirou. Estamos tratando de obras que têm direitos patrimoniais vigentes, mas o titular desses direitos não é encontrado.

É sabido que para utilizar obras intelectuais produzidas por terceiros, faz-se necessário solicitar a autorização específica para o autor originário ou o titular de direitos para o respectivo uso que se efetivamente pretende. Essa é uma imposição legal.

Ressalte-se, por oportuno, que as formas de uso das obras intelectuais não se comunicam, em conformidade com a interpretação restritiva dos negócios jurídicos sobre os direitos autorais prevista no art. 4º da lei de 9.610/98.

Cada exploração econômica de uma obra intelectual deve ser precedida de uma autorização expressa e formal do referido autor ou do titular de Direitos, com o máximo de detalhamento, tipo de suporte (analógico ou digital), prazo de validade e discriminação do instrumento de transferência de direitos autorais, ou seja, cessão ou licença, nos termos do art. 49 da LDA.

Ocorre que, como dito, com muita frequência a parte interessada em utilizar uma obra intelectual e produzir uma obra derivada tenta, exaustivamente, identificar o autor ou o titular de direitos autorais, mas não obtém êxito.

Significa dizer que o interessado está imbuído de boa-fé, tem o desejo de formalizar um termo de transferência de direitos patrimoniais, busca uma forma de recompor financeiramente o efetivo autor ou titular dos direitos, mas não encontra o seu paradeiro correto.

Essas obras, cuja autoria ou titularidade derivada não foi identificada, a doutrina e a comunidade internacional do Direito Autoral denominaram de "Obras Órfãs". São aquelas obras em há o interesse de explorar economicamente, no entanto a parte interessada, apesar do espírito de boa-fé e do firme propósito em efetuar o respectivo pagamento dos Direitos Autorais a quem de direito, não encontra a pessoa a quem deve pedir autorização e remunerar.

Essa situação parece remota, mas é comum, mesmo em tempos de internet. Aliás, o ambiente digital, no lugar de colaborar para a identificação do autor da obra intelectual, muitas vezes provoca confusão, ante à avalanche de informações desencontradas.

E quando há um interessado em explorar economicamente uma obra, ou simplesmente ter acesso de forma mais aprofundada, para produzir uma obra derivada, por exemplo, e não se identifica o respectivo criador, estabelece-se um impasse entre o direito da proteção de uma obra intelectual e o necessário acesso à cultura, informação e educação.

Diante desta realidade, a comunidade internacional de Direito Autoral tem se mobilizado, sob diferentes perspectivas, para aprofundar o debate e buscar uma solução equilibrada que abarque os interesses envolvidos e, o mais importante, que preserve a segurança jurídica.

A Organização Mundial de Propriedade Intelectual tem enfrentado o debate, nos últimos Comitês Permanentes de Direitos Autorais e Direitos Conexos (SCCR), em Genebra. Nestas ocasiões, as discussões são estabelecidas de forma sensível, porque, de um lado há o interesse no acesso e na exploração da obra intelectual e, do outro lado, há a argumentação pela proteção da obra.

Sobre o assunto, há aspectos estratégicos que devem ser destacados, a começar pela necessidade de se estabelecer o máximo de segurança jurídica às obras intelectuais consideradas órfãs. Significa dizer que não é prudente classificar uma obra intelectual como obra órfã sem as cautelas necessárias, uma vez que poderá haver uso e exploração econômica sem o repasse ao autor ou ao titular de direitos. Ademais, a depender da utilização da obra, caso o efetivo criador apareça e se identifique, ele não poderá mais recuperar o controle da gestão patrimonial de sua obra.

Portanto, para considerar uma obra intelectual como órfã, ou seja, sem identificação do seu autor ou titular de direitos é importante exaurir uma busca que demandará tempo, não podendo ser algo imediato. O tempo de busca mencionado não é algo objetivo e simples de se determinar, mas deve representar um cuidado do interessado em esgotar as possibilidades de esclarecimentos.

Uma outra possibilidade é se pensar em espécies de proclamas e de meios que confiram publicidade oficial e de forma ampla para que a informação se propague com grande escala para que, efetivamente, alcance o autor ou titular de direitos.

A ideia de um banco de dados consolidado de obras intelectuais consideradas órfãs, após uma sistemática busca dos seus criadores, também é bem-vinda e pode servir de ferramenta bastante útil para conferir uma publicidade sobre referidas obras, além de ser uma fonte de pesquisa identificada e reconhecida para se buscar informações seguras.

Outro aspecto relevante é a necessidade da criação e da gestão de um fundo para servir como repositório dos direitos autorais destas obras intelectuais, uma vez que o fato de serem consideradas órfãs, não a tornam isentas de incidência de proteção dos direitos autorais.

Ademais, caso o autor ou o titular de direitos apareça e se identifique, ainda que de forma intempestiva, ele poderá receber direitos autorais arrecadados no passado, mas que lhes são devidos.

Ressalte-se que há aspectos imprescindíveis que devem ser observados durante todo este processo de busca pela identificação do autor e do titular de direitos, que são a boa-fé do interessado e a exaustão dos meios utilizados, de maneira a comprovar a impossibilidade de se alcançar uma informação precisa, inobstante o esforço envidado.

Ademais, também é importante que o interessado demonstre a sua efetiva capacidade técnica e financeira para a exploração dos direitos patrimoniais da obra intelectual pleiteados.

A temática envolvendo obras órfãs e toda sua problemática é relativamente recente, mundo afora, mas ressalta uma necessidade de se estabelecer limites e buscar soluções equilibradas entre o direito de proteção de uma obra intelectual e a necessidade de acesso à cultura, educação e informação de uma coletividade.

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Colunista

Luciano Andrade Pinheiro é advogado. Graduado pela Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito Autoral. Autor de artigos jurídicos. Palestrante. Perito judicial em propriedade intelectual. Foi assessor de técnica legislativa na Câmara dos Deputados, diretor adjunto da Escola Superior da Advocacia da OAB/DF e vice-presidente da Caixa de Assistência dos Advogados do Brasil/DF.