Reforma do Código Civil

PL 4/25: Notas breves sobre as propostas para os artigos 1º, 3º e 4º do Código Civil

Maurício Bunazar comenta propostas do PL 4/25 que revisam o Código Civil, com foco na personalidade jurídica e nas regras de capacidade civil.

7/4/2025

Procurando honrar o compromisso de escrever alguns textos curtos sobre as propostas de revisão e atualização do Código Civil contidas no PL 04/2025, passo a tratar das sugestões de alteração dos artigos 1º, 2º e 3º.

Quanto ao art. 1o, o PL propõe a manutenção do caput com a inclusão de parágrafo único com a seguinte redação:

Art.1º...

Parágrafo único. Nos termos dos tratados internacionais dos quais o País é signatário, reconhece-se personalidade internacional a todas as pessoas naturais em território nacional, garantindo-lhes direitos, deveres e liberdades fundamentais.

A inclusão deste dispositivo remete ao caput do artigo 5o da Constituição Federal, que garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

No passado, houve alguma discussão sobre se a frase estrangeiros residentes no país implicaria negar aos estrangeiros não residentes no Brasil- turistas, por exemplo- a proteção daqueles direitos fundamentais.

Esse tipo de dúvida revela a filiação a um positivismo à Austin, que já não é levado a sério. Os chamados direitos fundamentais nada mais são do que a positivação de direitos naturais, por definição, universais e aplicáveis a todo ser humano.  

Quando o Código Civil de 1916, em seu artigo 2o, e o Código Civil de 2002, em seu artigo 1o, proclamaram que toda pessoa é capaz de ser titular de direitos e deveres, evidentemente, incluíram o estrangeiro.

Poder-se-ia, então, supor inútil a inclusão do referido parágrafo único, mas não é o caso.

A intensificação dos fluxos migratórios, historicamente atrelada ao recrudescimento da xenofobia, justifica que os tratados internacionais e o direito positivo de cada nação reafirmem o óbvio: a pessoa humana- nasça onde nascer, esteja onde estiver- é, sempre, titular de direitos, liberdades e deveres qualificados como fundamentais justamente porque sem eles o ser humano fica exposto aos abusos da tendencial tirania desumanizadora de todo Estado.

A inclusão do parágrafo único ao artigo 1o do Código Civil nada mais faz do que reproduzir o disposto em alguns tratados internacionais, como:

Art. 6º da Declaração universal dos Direitos Humanos: Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.

Art. 16 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos: Toda pessoa terá direito, em qualquer lugar, ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.

Art. 3º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.

Duas notas exegéticas podem ser úteis. A utilização do adjetivo internacional ligado ao substantivo personalidade acabou por ser criticada difusamente por alguns em palestras, sob o argumento de que a expressão seria confusa ou vazia de significado.

A afirmação não é correta. Qualquer dicionário demonstra que a palavra internacional significa: (i) conhecido fora de seu país (Houaiss); (ii) de nação a nação; entre nações (Diccionário Encyclopedico Illustrado da Lingua Portuguesa).

Assim, o dispositivo proposto pelo PL 4/25 afirma que a personalidade civil da pessoa humana é atributo reconhecido universalmente.

Quanto à segunda nota exegética, serve apenas para aclarar a locução prepositiva Nos termos dos tratados internacionais dos quais o País é signatário.

Essa locução de modo nenhum pode ser interpretada de modo a fazer com que somente se reconheça universalmente a personalidade civil de uma pessoa humana se isso estiver previsto em tratado internacional. Como já afirmado, a personalidade civil da pessoa humana é atributo inato e que, por isso, independe de previsão legal, convencional ou mesmo na constitucional.

Quanto ao artigo 3o, o PL propõe a seguinte redação:

“Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:

 I - os que tenham menos de 16 (dezesseis) anos;

II - aqueles que por nenhum meio possam expressar sua vontade, em caráter temporário ou permanente.”

O caput sofre alteração redacional para adequar o texto ao que nunca foi objeto de dúvida: a incapacidade absoluta não impede que o absolutamente incapaz exerça atos da vida civil, mas que o faça pessoalmente. É dizer, ele, por meio de seu representante, exercerá todos os atos da vida civil.

A novidade vem com a (re)inclusão do inciso segundo.

Com efeito, a lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) trouxe proteções merecedoras dos maiores encômios, como as referentes à acessibilidade física.

Não obstante, ao submeter todas as pessoas com deficiência ao mesmo regime jurídico, criou a absurda situação de retirar proteção jurídica das pessoas com severas deficiências intelectuais e severas enfermidades mentais. Basta dizer que essas pessoas, ao serem tidas como capazes ou, no máximo, como relativamente incapazes, sofrem os efeitos da prescrição, perdem direitos por usucapião e podem celebrar negócios jurídicos que serão, no máximo, anuláveis.

O PL 04/2025 busca remediar a situação ao incluir no rol de absolutamente incapazes aqueles que por nenhum meio possam expressar sua vontade, em caráter temporário ou permanente.

Quando da discussão dessa proposta, sugeri que a redação do artigo 3o fosse a seguinte: São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 anos e os que não tenha discernimento.

Os demais membros da Comissão- exceção feita ao professor José Fernando Simão- rechaçaram a proposta sob o argumento de a palavra discernimento ser capacitista.

Ouso, entretanto, discordar. Capacitismo haveria se a ausência de discernimento fosse tida como consequência necessária da deficiência, o que não é nem nunca foi o caso.

Seja como for, a proposta contida no PL 04/2025 permite que a expressão por nenhum meio possam expressar sua vontade seja interpretada de modo a incluir não somente os que mecanicamente estejam impedidos de expressar sua vontade- como alguém em coma-, mas também os que, por falta completa de discernimento, devam ter desconsiderada a vontade que pessoalmente manifestarem no exercício da autonomia privada.

“Art. 4º (texto original mantido)

I - (texto original mantido)

II - aqueles cuja autonomia estiver prejudicada por redução de discernimento, que não constitua deficiência, enquanto perdurar esse estado;

III - Revogado;

IV - (texto original mantido)

Parágrafo único. As pessoas com deficiência mental ou intelectual, maiores de 18 (dezoito) anos, têm assegurado o direito ao exercício de sua capacidade civil em igualdade de condições com as demais pessoas, observando-se, quanto aos apoios e às salvaguardas de que eventualmente necessitarem para o pleno exercício dessa capacidade, o disposto nos arts. 1.767 a 1.783 deste Código.”

Quanto ao artigo 4º, o inciso II, adequadamente, retira a menção às causas que possam implicar redução do discernimento para ressaltar que a qualidade de relativamente incapaz decorre da diminuição do discernimento, e não de causa ou causas específicas como o alcoolismo ou o vício em drogas.

A ressalva expressa na locução que não constitua deficiência tem duplo efeito. Ao não ressalvar a locução enfermidade mental, permite que enfermos mentais, como os que padecem do Mal de Alzheimer, de esquizofrenia e de outras, desde que tais enfermidades impliquem diminuição do seu discernimento, possam contar com o regime jurídico protetivo da incapacidade relativa.

O segundo efeito consiste em evitar a alegação de que o PL buscou afastar o regime jurídico contido no Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Tanto isso é verdade que o parágrafo único do dispositivo, em harmonia com o Estatuto da Pessoa com Deficiência e dando efetivo cumprimento à Convenção Internacional de Nova York sobre Pessoa com Deficiência, garante que a pessoa com deficiência, sem que seja privada da proteção que eventualmente necessite- por exemplo, amparada por um curador ou por apoiador- exerça os atos da vida civil.

Finalmente, quanto à inclusão do art. 4º-A, segundo o qual a deficiência física ou psíquica da pessoa, por si só, não afeta sua capacidade civil, é proposta que reforça a melhor interpretação do regime jurídico das incapacidades.

Para que alguém seja considerado incapaz por outro motivo que não a idade é necessário apenas verificar se houve ou não redução de seu discernimento, sendo irrelevante para fins jurídicos qualquer atribuição de causa para esse efeito.

Agradecendo mais uma vez a oportunidade da publicação, informo que procurarei, em uma próxima oportunidade, tratar das propostas relativas aos direitos da personalidade. 

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Colunistas

Flávio Tartuce é pós-doutor e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. Relator-Geral da proposta da reforma do Código Civil.

Luis Felipe Salomão é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Corregedor Nacional de Justiça. Membro da Corte Especial do STJ. Presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Marco Aurélio Bellizze é ministro do Superior Tribunal de Justiça. Membro da 3ª Turma. Membro da 2ª Seção. Membro da Comissão de Jurisprudência. Professor da Fundação Getúlio Vargas desde 2021. Coordenador Acadêmico da FGV/Exame de Ordem. Vice-presidente da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Rosa Maria de Andrade Nery é professora associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da PUC/SP. Livre-Docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP. Árbitra em diversas câmaras de arbitragem do Brasil. Foi Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo por 20 anos e desembargadora do Tribunal de Justiça o Estado de São Paulo por 15 anos. Titular da cadeira de número 60 da Academia Paulista de Direito. Professora do curso de graduação e de pós-graduação em Direito da PUC/SP e professora colaboradora do Centro Universitário Ítalo-Brasileiro. Relatora da proposta da reforma do Código Civil.