Introdução
A prova pericial no Tribunal do Júri não constitui adereço técnico nem elemento ornamental destinado a conferir aparência de rigor ao procedimento. Trata-se, antes, do eixo racional do julgamento, do ponto de sustentação que impede a reconstrução dos fatos de se dissolver na imprecisão das narrativas retóricas. Em um espaço marcado por discursos emotivos, simbolismos de autoridade e estratégias de persuasão, é a ciência que devolve ao debate sua densidade epistêmica, aportando critérios de verificabilidade, objetividade e transparência.
A doutrina contemporânea, na esteira de Taruffo e Ferrajoli, tem insistido que o processo penal moderno deve ser compreendido como um procedimento de formação racional da decisão, no qual a prova pericial ocupa papel estrutural, e não meramente acessório. A racionalidade, como lembra Michele Taruffo, não é atributo retórico: é forma de legitimação democrática.
O art. 422 do CPP e o marco epistemológico do pré-plenário
Nesse contexto, o art. 422 do CPP assume relevância singular. Ele estabelece o último momento, não raro, o único, para que as partes requeiram diligências imprescindíveis, inclusive de natureza pericial. Trata-se de verdadeiro marco epistêmico: instante em que defesa e acusação, após examinarem o conjunto probatório já produzido, podem identificar lacunas, contradições e aspectos que demandam aprofundamento científico.
A fase de preparação para o Plenário é essencial para que as partes possam desenvolver um julgamento baseado na técnica. Veja que é neste momento em que além de se indicar testemunhas imprescindíveis, podem ser requeridos esclarecimentos técnicos dos peritos oficiais e indicação de assistente técnico, conforme autoriza o art. 159, §5º, do CPP e requerer as diligências necessárias.
A lei, com prudência, posiciona esse limite antes do plenário para evitar que o julgamento seja pautado por percepções subjetivas ou por narrativas descoladas dos dados empíricos. O que se pretende é assegurar que o Júri entre em cena com um acervo minimamente robusto, apto a sustentar a deliberação íntima dos jurados.
Há de se dizer que os esclarecimentos técnicos dos peritos oficiais e assistentes, podem ser instrumento importante para que os jurados consigam compreender a situação que está em julgamento. Em linguagem simples, se exemplifica: certa vez realizando um júri, foi inquirido o perito que realizou o exame necroscópico, uma vez que o objetivo da defesa era verificar o que levou o perito a responder positivo para o quesito sobre o meio cruel, resposta esta que fundamentou o Ministério Púbico a realizar denúncia no homicídio qualificado por meio cruel. O perito oficial em plenário esclareceu que qualificou deste modo porque o meio utilizado que gerou a lesão era um objeto pérfuro-cortante1, uma faca, assim prosseguiu o perito informando que na concepção dele cometer um crime de homicídio com uma faca era meio cruel. Ocorre que, o homicídio por meio cruel não é definido na lei deste modo (art. 121, §2º, III, do CP). Verifica-se que ao se pedir esclarecimento do perito, a defesa demonstrou que o agente público (Perito oficial) extrapolou os limites da lei e baseou a qualificadora do meio cruel por puro entendimento pessoal, não encontrando fundamento na ciência.
Deste modo, a fase do art. 422 do CPPI é importante etapa para convocar a ciência como instrumento de esclarecimento. Mais do que isso: é permitir que o julgamento não se realize com zonas de sombra, vulnerando a própria legitimidade da decisão popular.
A vulnerabilidade técnica: operadores do Direito e a ausência de literacia científica
Uma das fragilidades mais profundas do sistema reside no fato de que grande parte dos operadores do Direito desconhece o universo pericial. Falta-lhes conhecimento adequado, até porque a faculdade de direito não os ensina, métodos de investigação científica, análise de laudos e, sobretudo, compreensão sobre o que pode e o que não pode ser respondido por determinadas técnicas.
A advocacia, a magistratura e o Ministério Público ainda convivem com um déficit de literacia científica, expressão que Susan Haack utiliza para descrever a incapacidade de compreender ou manusear adequadamente informações técnico-científicas no contexto probatório. Assim, muitos profissionais não sabem o que requerer, como requerer ou por que requerer. Desconhecem os limites metodológicos das perícias, deixam de formular quesitos essenciais e, frequentemente, acolhem como definitivo um laudo insuficiente ou metodologicamente frágil.
Nesse cenário, se atualiza a velha máxima: “quem não sabe o que procura não reconhece quando encontra.” A consequência é grave: as partes se tornam reféns daquilo que a perícia já ofereceu, ainda que incompleta ou equivocada, incapazes de identificar contradições ou de perceber a necessidade de complementações. Não se trata de deficiência pontual, mas de uma ameaça à própria racionalidade do julgamento, que, em última análise, compromete o ideal constitucional de justiça.
As partes como agentes epistêmicos do processo penal
À luz do garantismo de Ferrajoli e da epistemologia processual de Taruffo, as partes no Tribunal do Júri não desempenham papel meramente ritualístico. São agentes epistêmicos, responsáveis por assegurar que as decisões sejam tomadas a partir de elementos empíricos sólidos.
Um pedido pericial genérico é desperdício, de tempo, de dinheiro dos cofres públicos; um pedido formulado fora do prazo do art. 422 é inviável.
Mas um pedido claro, preciso, fundamentado e tempestivo é instrumento de verdade.
Para visualizar como é importante para o instrumento da busca da verdade os esclarecimentos técnicos, vamos mais uma vez trazer um caso concreto. Em certo caso de homicídio em que uma vítima veio a óbito por choque hemorrágico, decorrente de agressão por objeto contundente, a médica hepatologista que atuou como assistente técnica foi elementar para esclarecer a lesão e suas características. Uma testemunha descrevia que o policial havia lesionado a vítima na região do abdómen com um cassetete. Ocorre que o exame necroscópico não descrevia uma lesão compatível com a narrada, a qual é descrita pela medicina legal como uma equimose, chamada de víbices, sendo descrita por França, que “quando a equimose é produzida por objetos cilíndricos, como os bastões, cassetetes, bengalas, deixa, em vez de uma marca, duas equimoses longas e paralelas”. Todavia, o exame descrevia uma equimose em barra na região do hipocôndrio direito. Havia também uma testemunha no processo que descrevia que a vítima havia sido agredida horas antes da chegada da polícia por um terceiro com uma barra de ferro. A médica assistente técnica esclareceu em plenário que a lesão descrita era semelhante à de uma barra de ferro, sendo totalmente incompatível com equimose (víbices) característica de uso de cassetete, e a região abdominal atingida (hipocôndrio) era compatível como os achados do exame interno em que se demonstrou “lesão traumática de pediculo hepático”, explicando que aquela primeira lesão gerou um sangramento interno que em algumas horas levou a vítima a óbito. Neste caso especificamente, o esclarecimento da médica foi muito importante para determinar a autoria, uma vez que aquela vítima, a qual era portadora de doença mental, havia brigado com terceiro antes da chegada da autoridade policial e havia sido lesionada, contudo a vítima passou mal quando resistiu à prisão em flagrante, tendo os familiares presumido que a vítima havia morrido em decorrência desse segundo momento. O policial, que em nenhum momento utilizou o cassetete contra a vítima, foi processado e somente absolvido após o esclarecimento da assistência técnica.
A plenitude de defesa, princípio que singulariza o rito do Júri, só se concretiza quando a ciência é mobilizada adequadamente. A paridade de armas, por sua vez, não se esgota na retórica, mas se realiza por meio do acesso à informação técnica capaz de sustentar a narrativa defensiva ou acusatória.
No plenário, a retórica pode inflamar, mas somente a ciência tem a capacidade de esclarecer.
A íntima convicção não é um salto no escuro
A íntima convicção dos jurados não se confunde com liberdade arbitrária. Como bem observam Aury Lopes Jr. e Gustavo Badaró, trata-se de convicção vinculada às provas, e não de impressão subjetiva livre de amarras lógicas.
E as provas técnico-científicas são, nessa equação, centrais. Trajetórias e trajetos balísticos, dinâmicas de eventos, mecanismos de lesão, compatibilidade entre depoimentos e vestígios, causa jurídica e causa médico-legal da morte: são perguntas que apenas o conhecimento especializado pode responder com precisão.
Quando a perícia é negligenciada, o julgamento arrisca transformar-se em espetáculo. Quando é utilizada de modo consciente, se torna ferramenta de racionalidade e justiça material.
Ciência e processo: um encontro de responsabilidade
A compreensão da centralidade probatória da perícia, aliada ao correto manejo do art. 422, revela que o Tribunal do Júri não é simples palanque jurídico. É espaço onde se cruza ética, ciência e responsabilidade democrática.
Julgar é interpretar o real; e interpretar sem instrumentos adequados é negar o próprio ideal de justiça. A ciência, ao adentrar ao plenário, não apenas esclarece: exige coragem intelectual, demanda que o discurso se submeta aos dados e que a emoção seja atravessada pela razão.
Esse encontro, entretanto, só é possível quando as partes sabem acionar a ciência dentro dos limites processuais, especialmente no prazo de cinco dias previsto pelo legislador, após a intimação do art. 422 do CPP.
Considerações finais
A justiça no Tribunal do Júri não emerge espontaneamente; é resultado de uma construção cognitiva rigorosa. Ela se ergue a partir de laudos bem elaborados, diligências pertinentes, pareceres técnicos e quesitos formulados com precisão metodológica. Fortalece-se quando defesa e acusação tratam a ciência como linguagem comum da verdade e se fragiliza cada vez que a técnica é ignorada.
Cada julgamento no Júri é, antes de tudo, um exercício de maturidade intelectual. Quando a ciência adentra o plenário, não se decide apenas um caso: decide-se com consciência, método e verdade. E é somente nesse encontro entre técnica, ética e reflexão profunda que a justiça deixa de ser promessa e se converte em realidade palpável.
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Referência bibliográfica
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1 Hélio Gomes conceitua que “são os que transferem sua energia cinética por pressão, através de uma ponta, e por deslizamento, por meio de um ou mais gumes que seccionam as fibras dos tecidos”.