Circus

Gênios

Gênios

18/7/2008

 

"

O nível de QI pelo qual alguém pode ser chamado de gênio é geralmente definido como 140 ou superior. Se eu precisar de tanta gente assim para me indicar para alguma coisa, jamais serei reconhecido como gênio."

Luiz Fernando Veríssimo
Ou Woody Allen, sei lá.

O Noam Chomsky, quando não está escrevendo a respeito dos desmandos do George W., dá aulas e conferências sobre lingüística, uma ciência da qual ele é um dos papas mundiais. A senhora não sabe que ciência é essa ? Ele explica : o ser humano utiliza não mais do que trinta sons para expressar-se. Com esses fonemas ele forma palavras, que distribui uma ao lado de outra, formando frases.

Até aí tudo bem. O problema surge agora : como fazer para conseguir que outra pessoa saiba o que aquela frase que eu inventei quer dizer ? Deve haver entre ambos um código que permita esse entendimento. Por exemplo : se eu disser que vi um iaque de cor âmbar passeando junto a um gêiser, quantos leitores conseguirão fazer um desenho mental representando essa figura exatamente com essa cor naquele lugar ? Ir ao dicionário servirá para obter o tal código. Mas isso não explica como a coisa funciona. O que leva o conceituado lingüista a concluir, sem medo de parecer piegas : "Qualquer pessoa comprometida com a crença de que os humanos são organismos biológicos, e não anjos, reconhecerá que a inteligência humana tem alcance e limites específicos, e que boa parte do que procuramos entender poderá estar além desses limites."

Se a ciência não consegue explicar como se forma isso que chamamos de "inteligência", quando se cuida da "genialidade" os cientistas nem tentam.

O Jô Soares, por exemplo, é uma das poucas pessoas que pode dizer ao espelho aquilo que qualquer um de nós, e ele em especial, pensa de si próprio : Eu-gênio. Ele e o Jay Greenberg. A senhora ainda não conhece o Jay ? Que lástima ! Mas antes de falar desse compositor, refiro-me ao Jay, não ao Jô, permita falar de mim, meu personagem predileto.

Dois testes para a tua inteligência. O primeiro teria sido apresentado em um exame vestibular recente : nesta seqüência de números, diga qual deve ser, logicamente, o próximo : 2, 10, 12, 16, 17, 18 e 19. Se você pronunciar os números em voz alta mata a charada : dois, dez, doze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove e duzentos. Ou seja, todos os nomes começam com a mesma letra. O próximo número, portanto, deverá ser 200. Diga francamente : esse teste tem a ver com medição de inteligência do candidato ou serve para medir a cretinice de quem o propôs ?

O outro teste, mais fácil de responder : diga, se não achar a pergunta indiscreta, quantos anos a senhora tem ? 20 ? 40 ? 60 ? E quantas composições musicais já escreveu ? 5 ? 2 ? Nenhuma ?

Pois aí é que está. Tanto eu quanto o Greenberg já escrevemos várias. Cito a mais importante das que escrevi, fazendo, porém, antes disso, todo um circunlóquio, palavra que sempre desejei incluir numa crônica mas não havia ainda tido oportunidade até hoje de fazê-lo.

Tempos de TACrim. Eu mais o Zé Celso fomos designados para representar o Egrégio numa solenidade em Sertãozinho e adjacências. Na direção do carro do tribunal ninguém menos do que o simpático Cipriano, cuja tez, pelo nome, não preciso especificar ser negra. Preconceito ? Não. Isso terá relevância no desenrolar de nossa história, senhoras e senhores. Quando o carro dito oficial segue célere pela rodovia doutor não sei quê de Almeida, eis que um treminhão resolve atravessá-la, vindo do acostamento da direita. Não sabe o que é um treminhão ? Digo-lhe : é um caminhão enorme que, de quebra, tem ligado a si uma carreta mais enorme ainda, e tome cana de açúcar em ambos.

Quando vimos aquele monstro cruzando a estrada, eu e o Zé puxamos de nossos terços e nos pusemos a invocar os santos conhecidos em São Paulo e em Ibitinga. Pensei em mandar o Cipriano tentar passar por baixo do caminhão. O Zé nem sei se pensou alguma coisa. O fato é que o nosso bravo cinesíforo, sem licença prévia de qualquer de nós dois, resolveu acelerar o carro, levando-o para o acostamento da esquerda. E ali, pelo acostamento, a uma velocidade cinematográfica, ele passou rente à frente do lento caminhão, impedindo, com isso, que a magistratura de São Paulo perdesse dois de seus mais valorosos baluartes, se me permitem a modéstia.

Feito isso, ele parou o carro, pois estava mais branco do que alguma coisa muito branca que no momento não sei precisar o que seria, e tomou fôlego para as chamadas vicissitudes que o resto da viagem talvez trouxesse. Eu e o Zé Celso demos um beijo de agradecimento em cada bochecha do Cipriano e dali para a frente eu sempre o cumprimentava assim como alguém que convivesse com seu anjo da guarda, coisa que não é para qualquer um, concorda ?

Meses ou anos depois, o Cipriano me informa que agora se chamava simplesmente Cipri e havia formado um conjunto musical, donde aquele cabelo black-power que ele agora exibia. A senhora não sabe o que é isso ? Procure uma fotografia do Michael Jackson, do tempo em que ele ela negro, tinha lábios de negro e cabelo de negro, formava com seus irmãos negros o Jackson Five e a senhora vai saber do que eu estou falando. Cabelo black-power era assim uma espécie de capacete peludo, inventado por uns ativistas norte-americanos, salvo erro meu.

Pois o Cipri e suas cipriotas, ou que nome tivesse o conjunto musical, adotava aquele visual, no que fazia muito bem. "E estou gravando meu primeiro elepê", informa-me o meu anjo protetor. Pois me cante aí algum dos sambas do disco, digo-lhe eu, entusiasmante. Ele canta um dos sambas do tal disco e eu não deixo por menos : "melhor do que esse eu já compus."

O bravo Cipri não sabia se me mandava para ou se apenas deveria rir de minha pilhéria. Por cautela, prefere rir. Quer ouvi-la ? Sim. Pois lá vai :

"Toda minha alegria acabou/ Fantasia rasgou/ Carnaval/ terminou/ quarta-feira/ e toda a brincadeira/ no chão, a final. Inda ontem passei por aqui/ era um rei/ hoje simples gari. Etc. e tal."

A Excelência tá brincando ? Tou não, Cipri. Pois vou incluir no meu disco.

E toca levarmos aquilo ao maestro fulano de tal, que escreveu a partitura, e agora vamos registrar isso no, o senhor me traga cópia do RG, do CIC, prova de residência, vacina contra sarampo e tome espera. Um belo dia, lá vem o Cipri com o disco pronto debaixo do braço. Acho que só eu e o Mazzoni, que adquiria até disco de comercial, compramos. E posso dizer orgulhosamente que, graças a meu samba, o obscuro conjunto musical Cipri e suas cipriotas despontou para o anonimato.

E a senhora aí rindo, mesmo sem ter jamais feito um sambinha desses, é ou não é ? Tenho outros, mas cadê motorista pra gravá-los ?

Ocorre que eu comecei falando de um colega e me desviei do tema. Esse meu egocentrismo ainda me mata. Pois o colega Jay Greenberg, nascido em 1991, já antes dos cinco anos de idade rabiscava notas musicais numa pauta improvisada. Ou nas paredes da casa. A senhora quando tinha aquela idade se limitava a solos de chupeta, com direito a marias-chiquinhas, é ou não é ? E o nosso colega, meu e do Mozart, já compondo suas áreas e seus quintais.

Em 28 de novembro de 2004, faça aí as contas, o respeitável programa da CBS News 60 Minutes já dava notícias da precocidade do garoto. Em agosto de 2006, continue a fazer suas contas, a Sony BMG incluiu em sua série Masterworks, isto é, Obras-primas, um disco do jovem compositor. Não deixe o Cipri ler isto.

É claro que a ciência, tanto quanto as religiões, passaram a dedicar-se ao fato com a curiosidade que não poderia ser diferente. Reencarnação do Mozart, dizem alguns, com aquela invejável segurança de quem já sabe tudo sobre o aquém e o além. Isso só pode ser milagre ! É impossível a uma criança, que ainda não tem formação musical, distinguir os solos que devem caber ao violoncelo dos que devem caber ao oboé, pontifica o doutor fulano, mui digno titular de.

Se você não tem algo menos importante a fazer do que perder tempo com essas coisas irrelevantes, enquanto não começa o BBB ou o jornal nacional, vá ao site (clique aqui), onde não só verá o rosto adolescente do Bluejay, como ele é carinhosamente chamado, como poderá ouvir algumas de suas composições. Talvez você também tenha alguma teoria sobre um fenômeno desses.

Eu, de mim, como diz o Ranulfo, limito-me a observar que algumas pessoas, quando vêem uma rosa, ficam fazendo cálculos matemáticos para tentar entender como aquelas pétalas foram colocadas umas ao lado das outras, umas camadas depois das outras, com aquela precisão, aquela harmonia toda. E por quem ? Eu não digo que também não tenha essa curiosidade, muito pelo contrário. Mas, a esta altura de minha vida, descobri que se eu ficar fazendo esses cálculos, o tempo vai passar, a rosa vai acabar secando e eu não terei aproveitado a oportunidade que me havia sido oferecida de apreciar a beleza e o perfume dela. Nada de tentar compreender; apenas apreciar.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Adauto Suannes foi desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.