Conversa Constitucional

Direito à inovação e o caso Buser no STF

Autor analisa decisão do STF sobre fretamentos em MG, destacando conflitos entre lei local e livre iniciativa da Buser.

1/12/2025

O ministro André Mendonça pediu vista do RE 1.506.410, então em votação no plenário virtual do pleno do STF, interposto pelo Partido Novo – Minas Gerais questionando acórdão do Órgão Especial do TJ/MG numa ação declaratória de constitucionalidade local movida pelo Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Minas Gerais quanto aos arts. 3º; 4º; 5º; e art. 6º, I do caput e III do parágrafo único da lei estadual 23.941/21 e à resolução estadual 5.575/21 da Assembleia Legislativa mineira.

O art. 3° da lei obriga a venda casada de ida e volta no serviço de fretamento eventual de ônibus. Os serviços privados de transporte coletivo de passageiros não eventuais seriam prestados em “circuito fechado”, segundo o qual viagens de fretamento intermunicipais só poderiam ser realizadas por um mesmo grupo de pessoas que sai de um mesmo ponto A para um mesmo ponto B e retorna junto, na mesma data e no mesmo ônibus, devendo ter um propósito comum, sob pena de multa, processo de cassação da autorização de fretamento e medidas de retenção e remoção do veículo.

Os arts. 4° e 5º estipulam: a) prazo limite de 6 horas antes do início do primeiro trecho de viagem para a requisição da autorização de fretamento; e b) que a relação nominal dos passageiros a serem transportados somente poderá ser parcialmente alterada, no limite de dois passageiros ou de 20% da capacidade do veículo, o que for maior, e comunicada ao DER-MG até o momento de início do primeiro trecho da viagem.

O inciso I do art. 6º diz: “É vedada a prestação do serviço de fretamento de que trata esta lei nas seguintes condições: intermediada por terceiros que promovam a comercialização de lugares fracionada ou individualizada por passageiro”.

Por fim, o inciso III do § único do art. 6º impede que um passageiro já constante da lista previamente comunicada ao órgão estadual embarque ou desembarque ao longo do itinerário, inclusive em terminal rodoviário utilizado pelo transporte coletivo.

Como é possível manter de pé uma lei tão abertamente contrária à liberdade, num Estado cuja história anuncia, para todo o país, “Liberdade, ainda que tardia”?

Para a eminente relatora, ministra Cármen Lúcia, contudo, o STF já assentou que “compete à União organizar as diretrizes básicas sobre a política nacional de transporte. Por outro lado, cabe ao Estado-membro dispor sobre o transporte estadual e intermunicipal, ao passo que ao município incumbem as regras de interesse local”

Sua Excelência anotou que “não se verifica ofensa aos princípios da livre iniciativa e livre concorrência, por se tratar de lei genérica para melhoria na prestação do serviço de transporte, sem adentrar matéria impeditiva do regular exercício de atividade econômica ou discriminatória dessa atuação empresarial, que pudessem contrariar esses postulados constitucionais”. E desproveu o recurso extraordinário.

Antes, a então procuradora-Geral da República, Dra. Raquel Dodge, na ADPF 574 (acerca do modelo de negócio da plataforma Buser)1, relembrou que a ação questionava o exercício de atividades por empresas de tecnologia “que atuam como intermediárias na contratação de viagens rodoviárias fretadas”. Referidas empresas “colhem, por meio de aplicativos e websites, informações do público a respeito de seus interesses em viagens e, ao final, mediante procedimento de combinação de informações, selecionam empresas autorizadas a atuar no transporte rodoviário fretado, fazendo com que a cobrança da viagem seja rateada entre os usuários”, anotou a então procuradora-Geral da República, concluindo: “do exame dos preceitos da Constituição que disciplinam os serviços de transporte de passageiros, não há como se extrair norma que proíba as atividades contra as quais se insurge a arguente”.

O STF, podendo ter julgado procedente a ADPF 574, de relatoria do ministro Edson Fachin, não o fez, mantendo a Buser atuando plenamente. Posteriormente veio a já citada lei estadual 23.941/21, que tenta esvaziar o modelo de negócio da plataforma, sendo que, de fato, essa plataforma é o Brasil que deu certo.

 A Buser, empresa de tecnologia, nasceu graças a dois belo horizontinos - Marcelo Abritta e Marcelo Vasconcellos -, que, em 2017, abriram uma página do Facebook para “Fretamentos Colaborativos” e, em menos de 30 dias, alcançaram 10 mil seguidores.2 Em 2024 eram mais de 11 milhões de usuários3, sendo 1 milhão em Minas (principal empresa do ramo em MG). Há mais de 200 funcionários e 700 empresas de fretamento parceiras cadastradas em sua plataforma.      

Por meio dela, usuários cadastrados sugerem viagens, criam grupos ou integram os já existentes a fim de viabilizar viagens de ônibus que serão realizadas por empresas privadas de fretamento, autorizadas pelos órgãos reguladores competentes, a realizar transportes intermunicipais e interestaduais (fretamento colaborativo). Uma vez reunido número suficiente de usuários e caso haja disponibilidade das empresas parceiras, a viagem é confirmada e o custo do frete é rateado entre os interessados. A Buser apenas deu escala, por meio de um aplicativo, para aquilo que sempre foi feito por outras empresas ou pelas excursões turísticas.

Primeiramente, ela auxilia seus usuários a encontrarem outras pessoas que desejam realizar uma mesma viagem (percurso ou trecho). Feito isso, são formados grupos de pessoas com um interesse comum, ou seja, viajar por um mesmo trecho em uma mesma data. Então, a Buser conecta esses grupos de viajantes a empresas que prestam serviços de transporte privado na modalidade de fretamento, todas elas devidamente autorizadas a funcionar pelos órgãos reguladores competentes.

Nas viagens intermediadas pela Buser: (i) não há habitualidade ou regularidade, pois elas dependem da demanda específica dos usuários, que são responsáveis por criarem os grupos. Os destinos, datas e horários variam conforme os interesses dos próprios usuários; (ii) não há itinerários ou “linhas”. As viagens dependem das propostas dos usuários e variam conforme a demanda (há grupos abertos, aos quais os usuários podem aderir); (iii) não há universalidade. Somente a comunidade virtual e previamente cadastrada e formada no aplicativo pode criar ou participar de grupos, e apenas grupos fechados podem contratar fretamentos; (iv) não há venda de passagem. Os usuários pagam o valor do rateio do custo da contratação da empresa de fretamento, valor esse que irá variar conforme a lotação do veículo (quanto mais pessoas, menor o valor individual a ser pago); e (vi) não há garantia de que a viagem ocorrerá. As viagens são canceladas se o grupo não atingir o número mínimo de pessoas. Em algumas rotas, o índice de cancelamento por falta de quórum chega a 90%.

O art. 21 da Constituição diz competir à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros (XII, “e”) e instituir diretrizes para transportes urbanos (XX). O art. 22, XI, diz competir privativamente à União legislar sobre “trânsito e transporte”. Logo, é possível a convivência entre o transporte privado e o transporte coletivo público?

Sim. Os fretamentos são regulares e sempre coexistiram com os ônibus rodoviários de linha. A lei Federal 12.587/12, “institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana”. O art. 3º, § 2º, classifica os serviços de transporte urbano em coletivo ou individual, público ou privado, e de carga ou de passageiros. O art. 4º, VI e VII, conceitua transporte público coletivo e transporte privado coletivo. A exemplo do serviço de transporte rodoviário coletivo regular de passageiros, a exploração da atividade de transporte rodoviário sob o regime de fretamento também depende de autorização por parte da ANTT - Agência Nacional de Transporte Terrestre.

No acórdão da ADPF 449, o STF foi expresso:A União possui competência privativa para legislar sobre ‘diretrizes da política nacional de transportes’, ‘trânsito e transporte’ e ‘condições para o exercício de profissões’ (art. 22, IX, XI e XVI, da CRFB), sendo vedado tanto a Municípios dispor sobre esses temas quanto à lei ordinária federal promover a sua delegação legislativa para entes federativos menores, considerando que o art. 22, parágrafo único, da Constituição faculta à LC autorizar apenas os Estados a legislar sobre questões específicas das referidas matérias”.

O mesmo no acórdão do Tema 967: “A União Federal, no exercício de competência legislativa privativa para dispor sobre trânsito e transporte (CF/1988, art. 22, XI), estabeleceu diretrizes regulatórias para o transporte privado individual por aplicativo, cujas normas não incluem o controle de entrada e de preço. Em razão disso, a regulamentação e a fiscalização atribuídas aos municípios e ao Distrito Federal não podem contrariar o padrão regulatório estabelecido pelo legislador Federal”.

É vasta a jurisprudência do Supremo derrubando leis locais sobre trânsito e transporte. São exemplos: proibição de instalação de barreiras eletrônicas e obrigação de desativar as já existentes;4 licenciamento de motocicletas para transporte de passageiros (mototáxi);5 uso de cinto de segurança, proibindo transporte de menores de 10 anos no banco dianteiro dos veículos e fixando multa em benefício do município;6 inspeção técnica de veículos para avaliação de condições de segurança e controle de emissões de poluentes e ruídos;7 autorização do uso de película de filme solar nos vidros dos veículos;8 inspeção das condições de segurança veicular;9 obrigatoriedade de notificação pessoal dos motoristas em casos de utilização de celular com o veículo em movimento e da não-utilização do cinto de segurança;10 obrigatoriedade de transitar permanentemente com os faróis acesos nas rodovias estaduais;11 limites de velocidade nas rodovias do Estado ou sob sua administração;12 penalidades a quem seja flagrado em estado de embriaguez na condução de veículo;13 bloqueio do licenciamento de veículos;14 idade mínima para habilitação de veículo;15 e vedação da saída, dos limites do Estado, de madeiras em toras em veículos.16

A livre iniciativa tanto é um fundamento da República (art. 1º, IV) como um princípio da ordem econômica (art. 170, caput). Ao inserir o transporte terrestre no art. 178, a Constituição o qualifica como atividade econômica. São ainda princípios da ordem econômica a livre concorrência (art. 170, IV) e a defesa do consumidor (art. 170, V).  

Minas do ouro, Minas do Café, Minas do desenvolvimento industrial..., esse Estado notável também quer ser a Minas da inovação tecnológica. O Estado revolucionou o planejamento urbano a partir de Belo Horizonte; inovou na arquitetura, com a Pampulha; conferiu novidade à gestão pública pela liderança de Juscelino Kubitschek; deu originalidade à poesia, graças ao verso livre de Drummond; e abraçou a revolução do Plano Real, implementado pelo presidente Itamar Franco, um mineiro.

Por tudo isso, a posição lançada no julgamento do STF antes da vista do ministro André Mendonça, validando a lei estadual 23.941/21, é não apenas uma linha hermenêutica inadequada, mas um equívoco histórico que há de ser corrigido pelo plenário do STF quando da continuidade do julgamento.

__________

1  Na ADPF 74, a Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros pediu a inconstitucionalidade do conjunto de decisões judiciais que autorizavam o serviço da Buser. Em 19/12/2019, o ministro Edson Fachin anotou: “acolhendo os pareceres da Procuradoria-Geral da República e da Advocacia-Geral da União, nego seguimento a presente arguição de descumprimento de preceito fundamental e julgo prejudicados os pedidos de intervenção de terceiros”.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 ADI 2064, Min. Mauri'cio Corre^a. ADI 2718, Min. Joaquim Barbosa; ADI 3897, Min. Gilmar Mendes.

5 ADI 3136, Min. Ricardo Lewandowski; ADI 3135, Min. Gilmar Mendes; ADI 2606, Min. Mauri'cio Corre^a; ADI 3679, Min. Sepu'lveda Pertence; ADI 3610, Min. Cezar Peluso.

6 RE 227.384, Min. Moreira Alves.

7 ADI 3049, Min. Cezar Peluso.

8 ADI 1704, Min. Carlos Velloso.

9 ADI 1972, Min. Teori Zavascki. ADI 2328, Rel. Min. Mauri'cio Corre^a; ADI 3444, Min. Ellen Gracie.

10 ADI 2101, Min. Mauri'cio Corre^a.

11 ADI 3055, Min. Carlos Velloso.

12 ADI 2582, Min. Sepu'lveda Pertence.

13 ADI 3269, Min. Cezar Peluso.

14 ADI 2407, Min. Ca'rmen Lu'cia.

15 ADI 476, Min. Sepu'lveda Pertence.

16 ADI 280, Min. Francisco Rezek; ADI 1592, Min. Moreira Alves; ARE 639.496, Tema 430: “compete privativamente a` Unia~o legislar sobre tra^nsito e transporte, impossibilitados os Estados-membros e munici'pios legislar sobre a mate'ria enquanto na~o autorizados por Lei Complementar”.

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Colunista

Saul Tourinho Leal é doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, tendo ganhado, em 2015, a bolsa de pós-doutorado Vice-Chancellor Fellowship, da Universidade de Pretória, na África do Sul. Foi assessor estrangeiro da Corte Constitucional sul-africana, em 2016, e também da vice-presidência da Suprema Corte de Israel, em 2019. Sua tese de doutorado, "Direito à felicidade", tem sido utilizada pelo STF em casos que reafirmam direitos fundamentais. É advogado em Brasília.