Nossa experiência nos mostra que a discriminação e o preconceito não encontram limites e se espraiam nas mais diversas direções, a ponto de ser possível afirmar que não existe campo no qual seus tentáculos nefastos não estejam presentes e causando danos aos grupos mais vulnerabilizados.
Contudo existe uma perspectiva bastante disseminada de que em algumas searas haveria uma certa “imunidade” que faria com que a incidência desse preconceito e discriminação não se estabelecesse. Tal afirmação tem como lastro a premissa de que seriam áreas nas quais as características pessoais não teriam qualquer impacto, de forma que não haveria que se preocupar quanto aos efeitos dessa mácula social atingindo-os.
Essa ideia de uma neutralidade é enaltecida quando se pensa, no âmbito do Direito Civil, em negócios jurídicos e contratos. Ínsito na aridez dos seus elementos de concepção, surge a crença de que ali não haveria espaço para discriminações.
Essa visão apenas encontra lugar na esfera lúdica daqueles que conhecem o mundo de dentro de uma sala, sem qualquer contato efetivo com aquilo que se presencia no mundo real.
A realidade crua, por outro lado, nos mostra que não existe barreira que não possa ser transposta pelo preconceito e discriminação. E o mundo dos negócios jurídicos e dos contratos não escapa a essa regra, ainda que muitas vezes venha a se apresentar de forma mais sútil ou camuflada por camadas sobrepostas de uma pseudo tecnicidade. Para além da constatação de que isso efetivamente ocorre é essencial que também sejam apreciadas as consequências de tais fatos.
Na presente coluna apontarei algumas das situações nas quais o preconceito e a discriminação fundados na sexualidade criam limitações para a constituição de avenças entre as pessoas.
Condutas desse jaez estão presentes até mesmo antes da elaboração do contrato, na fase pré-contratual, com a apresentação de entraves para pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ que não são levantados a quem não está inserido em nenhuma das minorias sexuais que compõem a sigla.
Nesse contexto podemos mencionar a hipótese da negativa de oferta de serviços para pessoas que fazem parte desse grupo vulnerabilizado, por mero preconceito.
É imperioso não se olvidar que “mesmo antes de firmado o contrato, impõe-se às partes o dever de pautar-se segundo os parâmetros da boa-fé, não se admitindo que não se honre as tratativas já entabuladas, sendo plausível a quebra de expectativa de que o contrato seria firmado apenas mediante a apresentação de um motivo justo e razoável”1.
Não se pode afastar a incidência de uma responsabilidade pré-contratual, entendida “como aquela decorrente da violação dos deveres da boa-fé objetiva durante o amplo período de preparação do negócio jurídico”2. A liberdade contratual, consignada no art. 421 do CC não dá respaldo a condutas manifestamente discriminatórias, não permitindo “que um contrato não venha a ser celebrado ou suas bases venham a se tornar mais onerosas pelo fato de ter o contratante vindo a tomar ciência de que a outra parte” está inserida em uma das minorias sexuais3.
Um rompimento não justificado das tratativas, carente de fundamentação justificável, importa em responsabilidade pré-contratual. Sendo o serviço ofertado a toda a população mas restrito ou com valores majorados em decorrência da sexualidade do contratante que se afasta do padrão cisheteronormativo atualmente consolidado, fica evidenciado que a causa da restrição tem base na sexualidade.
Se o motivo para a não realização da avença está na condição de minoria sexual resta claro que esta não se configura como uma motivação juridicamente válida a sustentar a frustração da elaboração do negócio jurídico ou do contrato, o que configura uma “conduta discriminatória passível de responsabilização”, com base nos preceitos da responsabilidade civil extracontratual (art. 186 c/c art. 927 do CC)4.
Com isso é de se entender que a “negativa de atendimento em estabelecimento comercial, de prestar serviços ou, ainda, de realizar matrícula em instituição de ensino de pessoa transgênero (criança, adolescente ou adulto) ou cujos pais expressem a transgeneridade são hipóteses que encerram a ideia de conduta discriminatória e não exercício da liberdade de contratar, havendo de ser devidamente responsabilizada”5.
Nessa senda, um dos casos que ganhou maior notoriedade foi o Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Commission, nos Estados Unidos, no qual um confeiteiro negou-se a fazer o bolo de casamento para um casal de pessoas do mesmo sexo6. O casal formulou denúncia à Comissão de Direitos Civis do Colorado, a qual reconheceu a existência de discriminação por orientação sexual, aplicando sanções ao confeiteiro com base na CADA - Colorado Anti-Discrimination Act.
Nas instâncias estaduais, tanto administrativas, quanto judiciais, confirmou-se a condenação, prevalecendo o entendimento de que a legislação estadual era de aplicação geral e que não representava qualquer tipo de violação à liberdade religiosa, como também que a confecção de um bolo não configurava discurso protegido pela primeira emenda. Dessa forma, predominou a concepção de que o direito do casal ao atendimento igualitário a um serviço público deveria se sobrepor às crenças individuais do fornecedor.
Porém, quando a questão chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos houve a reforma do posicionamento anterior, e, por sete votos a dois, restou vencedor o entendimento de que a Comissão do Colorado havia agido com hostilidade religiosa, em afronta à cláusula de livre exercício da primeira emenda. De se notar que o afastamento do anteriormente decidido se deu não ante ao reconhecimento de que seria conferido ao confeiteiro o direito de recusa mas sim por compreender que a imparcialidade estatal é um requisito essencial à aplicação de leis de cunho antidiscriminatório.
Em território brasileiro tivemos situações similares, como a da recusa de prestação de serviços por uma empresa especializada em convites de casamento em atender o pedido de um casal de pessoas do mesmo sexo, sob o argumento de que “não fazia convites homossexuais”7, ou o da negativa da realização da filmagem de um casamento em Teresina, caso esse que culminou em condenação por homofobia8.
Interessante notar que nessas situações um fator comum a sustentar as negativas recai sobre a imposição ou não da obrigação de atender ao pedido com base em elemento de fundo religioso: a chamada objeção de consciência. Para os fins do presente texto, basta consignar que ela se alicerça na premissa de que seria admissível a escusa quanto ao atendimento daquela solicitação feita em razão de convicção religiosa de quem se nega a prestar o serviço.
No âmbito dos atendimentos médicos é de se asseverar que o CFM - Conselho Federal de Medicina tem uma resolução específica, a resolução 2.232/19, fixando os exatos parâmetros que permitem que o profissional daquela área venha a recusar o atendimento com base na objeção de consciência.
A questão que se suscita após tais ponderações é exatamente se há o direito de negar-se a atender alguém quando se fez a escolha por uma profissão que demanda o atendimento ao público. E, ao mesmo tempo, se a mera alegação de objeção de consciência com relação à prestação de um serviço para uma pessoa que pertença a uma das minorias sexuais não configura, de per si, uma hipótese de racismo, nos termos definidos pela ADO 269.
A mim parece que essa negativa não se faz admissível, configurando sim a conduta típica de racismo ou injúria racial, passível de condenação penal.
Noutras hipóteses se vislumbra a imposição de condições mais onerosas ou menos vantajosas a quem integra as minorias sexuais, com o fulcro de, com isso, desestimular a realização do contrato ou mesmo inviabiliza-lo. Para pessoas transgênero, por exemplo, o produto ou serviço é mais caro, não tem desconto ou qualquer outro benefício que é franqueado a quem não é “anormal” segundo os parâmetros postos.
Outra circunstância a ser analisada aqui, também ainda na fase pré-contratual, mas com características um pouco distintas, é aquela na qual a negociação que se está a entabular, visando a realização do contrato, é findada, por vezes de forma abrupta, no exato momento em que um dos contratantes vem a descobrir que o outro está inserido em uma das minorias sexuais.
Nesse contexto se constata a evidência de que a passabilidade10 configura-se como algo importante para a inclusão das minorias sexuais, especialmente as pessoas transgênero, pois apenas são barradas quando da entrega da documentação solicitada para a elaboração do negócio. Ao mesmo tempo, revela que até mesmo com caracteres físicos exteriores que permitam que transitem na sociedade sem que a condição de integrantes de uma minoria sexual seja notada, ainda são impactadas em razão do preconceito que as estigmatiza.
Em tais casos é recorrente que, como em um passe de mágica, o apartamento que estava disponível para locação acaba ficando fora do mercado quando a informação vinculada a um dos pilares da sexualidade (sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero)11 é exposta e revela se tratar de alguém que não se enquadra nos padrões socialmente tidos como adequados, surgindo, por exemplo, “todo tipo de mentira para simplesmente não alugar” um bem para uma pessoa transgênero12.
Superada essa fase pré-contratual seria de se esperar que a avença firmada gozaria da estabilidade que emana do pacta sunt servanda, restando resguardada a parte de que a eventual ciência de sua sexualidade pelo outro possa gerar empecilhos ou problemas. Contudo nem mesmo essa garantia se tem.
Inúmeras vezes há a busca por meios que permitam a rescisão da avença firmada ante a constatação da sexualidade tida como divergente, como nos casos de contrato de locação nos quais os locadores tentar por fim à avença pelo simples fato de ter vindo a ter ciência de que o locatário tem um relacionamento com alguém do mesmo sexo ou que tenha realizado a sua transição de gênero. Ou, quando não logram êxito em rescindir, não o renovam, sem qualquer fundamento… mas, obviamente, a razão determinante está na sexualidade do contratante.
Não podemos ignorar também as situações em que contratos são realizados com uns e não com outros, tendo como motivação aspectos vinculados à sexualidade. Aqui não estou tratando dos casos mencionados em coluna anterior na qual discorri sobre profissões eminentemente masculinas ou femininas13. A questão que se coloca no presente momento versa sobre a existência, por exemplo, de doações em favor de um filho apenas, preterindo outro em razão de enquadrar-se em algum dos espectros da diversidade que não se insere no que se tem como o parâmetro da normalidade14.
Evidente que um negócio jurídico gratuito, como uma doação, lastreia-se na discricionariedade do doador de determinar o que e para quem doará, contudo há de se verificar se essa escolha não é determinada por critérios discriminatórios, haja vista que a liberdade que é inerente à doação não é guarida para a prática de discriminações. Essas mesmas ponderações podem ser direcionadas também aos atos destinados à transmissão post mortem, pois o testamento ou qualquer conduta atrelada ao planejamento sucessório não pode se prestar a privar alguém de direitos em razão de sua sexualidade15.
O fato que não pode ser afastado é que ainda que seja possível aduzir a prevalência da discricionariedade ou mesmo que não se encontre um respaldo juridicamente positivado para se determinar a realização de um dado contrato com alguém, ou a imposição de que o contrato seja invalidado por se mostrar mais oneroso a quem integra uma das minorias sexuais, não se pode ignorar que a constatação de que tal situação se fez presente é bastante para que se possa pugnar pela incidência das consequências penais atrelada ao crime de racismo ou de injúria racial em decorrência da discriminação lastreada na orientação sexual ou na identidade de gênero, com base na ADO 2616.
A falsa percepção de que a liberdade de contratar respalda qualquer ato em sede contratual é indevida, haja vista que esta não é base a conferir guarida a quem quer burlar a lei e agir de forma discriminatória, já que isso está um tanto além da discricionariedade que rege as relações negociais.
É premente que nos mantenhamos atentos a esses elementos para garantir que as minorias sexuais não sejam atingidas por condutas discriminatórias escamoteadas de liberdade contratual.
As artimanhas usadas para segregar podem revestir-se de uma falsa tecnicidade, mas não devem prosperar.
Sigamos alertas.
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1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 108.
2 FRITZ, Karina Nunes. A responsabilidade pré-contratual por ruptura injustificada das negociações. Civilistica.com, v. 1, n. 2, p. 1-40, nov. 2012. p. 2.
3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 108.
4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 108.
5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 108.
6 Sobre o tema, sugiro a leitura do trabalho monográfico de Muriel Cordeiro Silva, intitulado “O caso dos confeiteiros devotos: o exercício da objeção de consciência religiosa por parte de fornecedores em face de consumidores homoafetivos no Brasil a partir do Direito anglo-americano”, defendido junto a Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
7 Disponível aqui.
8 Disponível aqui.
9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 82.
10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 25.
11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 1.
12 ARANTES, Apollo. Da gestação à parentalidade: relato de uma gestação transmasculina, controle da reprodução humana e o reforço do estigma para população trans. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, v. 6, n. 19, jan.-abr. 2023. p. 115.
13 Disponível aqui.
14 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 116.
15 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 139.
16 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 230.