Direito Privado no Common Law

A crise democrática na América do Sul? Dez pontos para o Putney Debate 2023 da Oxford Global Society

Um diálogo com a palestra de abertura do professor Richard Clary, da Harvard Law School, sobre a crise democrática no contexto dos Estados Unidos e do Reino Unido.

8/5/2023

Introdução

A Oxford Global Society me convidou para participar dos Putney Debates 2023 remotamente através do convite do professor Denis Galligan para que eu entrasse em diálogo com a palestra de abertura do professor Richard Clary, da Harvard Law School, sobre a crise democrática no contexto dos Estados Unidos e do Reino Unido. Minha palestra pretendeu analisar a situação nos termos do debate proposto por ele, mas a partir do contexto específico dos dez países da América do Sul e com a análise dos dez pontos relevantes para o debate regional.

O mapeamento empírico do stress democrático na América do Sul

O panorama empírico da América do Sul nos permite classificar os países em três categorias distintas. Em primeiro lugar, existe o caso da Venezuela, um país que experimentou uma erosão democrática desde 1999, que eventualmente causou um colapso político, econômico e social. Uma segunda categoria de países inclui Peru, Paraguai, Bolívia, Colômbia e Equador, que são considerados pelo relatório da Freedom House como sendo parcialmente livres. Já uma terceira categoria inclui os países do cone sul – Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, que podem ser classificados como exemplos de fortalecimento democrático.

Uma análise episódica dos dez países da região revela casos de autoritarismo na Venezuela, merecendo destaque o pitoresco período em que o país teve dois presidentes simultaneamente reconhecidos pela comunidade internacional como sendo chefes de Estado. Existem inúmeros exemplos de ‘impeachment’, tais como no Brasil, Peru e Paraguai. Outros casos de stress democrático dizem respeito às tentativas de contínuas reeleições presidenciais, tais como identificados na Bolívia e na Colômbia, mas não no Equador. Enquanto Argentina e Uruguai buscam seu posicionamento na economia global e o Chile enfrenta uma crise de polarização política e de identidade constitucional, o Brasil tem que enfrentar todas essas questões. No Brasil, existem desafios institucionais relativos ao desenvolvimento econômico, reformas tributárias, incentivos para a inovação e empreendedorismo, bem como reformas constitucionais e políticas. Também existem conflitos sociais e políticos, com polarização partidária e disputas que exigem a atuação do Supremo Tribunal Federal como um mediador.

Dez pontos relevantes para o debate

A discussão teórica sobre a crise democrática na América do Sul possui uma série de pontos relevantes para o debate. Um primeiro ponto interessante diz respeito à provocação do jornalista Michael Reid, do Economist, de que a América Latina é um “continente esquecido” e não deveria sê-lo devido à riqueza cultural, ao capital ecológico e ao laboratório para a democracia.1

Além disso, Roberto Gargarella apresenta a metáfora da ‘sala de máquinas’ da Constituição para discutir o problema da concentração de poderes no Poder Executivo a partir de um outro insight de Carlos Santiago Nino relativo ao ‘hyper presidencialismo’ na América do Sul.2 Em contraste com o presidencialismo dos Estados Unidos, existe uma concentração enorme de poder de iniciativa legislativa e de produção de leis através de mecanismos como a medida provisória. Outro ponto relacionado com a estrutura de poder e a relação entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo consiste no modelo de ‘Presidencialismo de Coalizão’, tão bem identificado pelo cientista político Sérgio Abranches.3 Em países como o Brasil, existe uma fragmentação partidária bem grande, que exige uma constante negociação do Presidente com inúmeros partidos para formar uma coalizão partidária que o permita governar. Essa complexa equação política entre os Poderes de Estado também é relevante para explicar como os processos de impeachment são mais comuns no cenário político da América do Sul do que noutros países presidencialistas, tal como os Estados Unidos.4

No âmbito da concepção de Estado de Direito e do controle jurídico da atividade política, ao longo das últimas décadas, ocorreu uma mudança significativa no papel do Poder Judiciário e das Supremas Cortes nas dinâmicas de poder, funcionando, não raro, como um mediador ou um árbitro nos conflitos políticos.5 Um outro mecanismo institucional relevante para controle jurídico da atividade política consistia no estabelecimento de cortes eleitorais, uma inovação pioneira do constitucionalismo chileno em 1823,  e que também teve um enorme impacto positivo para melhoria da qualidade institucional do processo eleitoral brasileiro.6 Por outro lado, o Brasil é a notável exceção na América do Sul, sendo o caso excepcional em que não existe uma regulação da organização interna dos partidos políticos, de modo a evitar uma estrutura oligárquica e a garantir a sua democracia interna, especialmente na seleção dos candidatos a cargos políticos.7

Um dos sérios problemas nas sociedades contemporâneas na América do Sul diz respeito justamente à falta de ‘cola social’, isto é, a falta de uma integração social que facilite o desenvolvimento socioeconômico, encontrando-se um cenário de polarização entre direita e esquerda que se tratam como ‘amigos’ e ‘inimigos’, tal como na formulação do teórico constitucionalista alemão Carl Schmitt.8 Uma outra dificuldade dos países sul-americanos consiste na sua fragilidade institucional, caracterizada pela baixa qualidade na provisão de serviços públicos, sendo necessário um processo de construção estatal que melhore a qualidade das organizações, do treinamento dos agentes públicos e  das regras do jogo para o funcionamento das instituições do mercado, da política e da sociedade.9 Finalmente, todas essas questões passam pela compreensão do papel da Constituição, que habilita os governos, empodera instituições, colabora para a promoção do bem estar social. A Constituição também funciona como expressão de valor, manifestação de poder e mecanismo de coordenação social.10

 Considerações finais

A ideia de crise democrática na América do Sul deve ser colocada em perspectiva, na medida em que o continente nunca experimentou um período tão longo de alternância de poder, processos eleitorais maduros, respeito pelas regras do jogo democrático. Apesar dos ataques ao sistema eleitoral, do antagonismo político partidário e da escassez de liderança, existe uma oportunidade para o aprofundamento dos debates e para reformas constitucionais capazes de enfrentamento dos problemas atuais e de aprimoramento da democracia nos países da América do Sul.

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1 REID, Michael. Forgotten continent: The battle for Latin America's soul. Yale University Press, 2010.

2 GARGARELLA, Roberto. Latin American constitutionalism, 1810-2010: the engine room of the Constitution. Oxford University Press, 2013; NINO, Carlos Santiago. Hyperpresidentialism and constitutional reform in Argentina. In: Institutional design in new democracies. Routledge, 2018. p. 161-174.

3 ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro. Editora Companhia das Letras, 2018.

4 BROSSARD, Paulo. O Impeachment: aspectos da responsabilidade política do Presidente da República. Saraiva, 1992; TRIBE, Laurence; MATZ, Joshua. To end a presidency: the power of impeachment. Hachette UK, 2018.

5 VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional. Editora Companhia das Letras, 2018; VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, v. 4, p. 441-463, 2008.

6 MENDES, Conrado Hübner; GARGARELLA, Roberto; GUIDI, Sebastián (Ed.). The Oxford Handbook of Constitutional Law in Latin America. Oxford University Press, 2021; LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. Editora Companhia das Letras, 2012.

7 MICHELS, Robert. Political parties: A sociological study of the oligarchical tendencies of modern democracy. Hearst's International Library Company, 1915; DUVERGER, Maurice. Political parties: Their organization and activity in the modern state. Metheun & Co. Ltd., 1959.

8 STIGLITZ, Joseph E. Formal and informal institutions. Social capital: A multifaceted perspective, v. 2000, p. 59-68, 2000; SCHMITT, Carl. The concept of the political: Expanded edition. University of Chicago Press, 2008; MOUFFE, Chantal. Agonistics: Thinking the world politically. Verso Books, 2013.

9 NORTH, Douglass C. Institutional change and economic growth. The Journal of Economic History, v. 31, n. 1, p. 118-125, 1971; FUKUYAMA, Francis. State-building: governance and world order in the 21st century. Cornell University Press, 2019.

10 GALLIGAN, Denis J.; VERSTEEG, Mila (Ed.). Social and political foundations of Constitutions. Cambridge University Press, 2013.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.