Direito Privado no Common Law

Princípios europeus sobre a implementação do direito dos trabalhadores à desconexão (R2D)

Os princípios orientadores contidos no documento do ELI procuram delinear os principais alicerces para uma regulamentação comum sobre R2D em toda a Europa.

16/10/2023

O mundo do trabalho está passando por uma revolução digital. A crescente utilização de ferramentas digitais e tecnológicas nas últimas décadas tornou possível trabalhar em qualquer lugar e a qualquer hora. A pandemia de Covid-19 apenas aumentou o ritmo deste desenvolvimento. Embora a digitalização do trabalho e a expansão do teletrabalho apresentem vantagens potenciais em termos de flexibilidade, produtividade e conciliação, estas tendências também podem resultar numa intensificação do trabalho, em longos horários de trabalho, na indefinição dos limites entre trabalho e tempo de descanso ou no aumento do stress resultante desde vigilância contínua e monitoramento de desempenho e produtividade. Esses fatores podem, por sua vez, afetar negativamente a saúde física e psicológica dos colaboradores.

Consequentemente, parece necessário regulamentar alguns aspectos do novo ambiente de trabalho digital com o objetivo de compensar pelo menos alguns dos impactos negativos decorrentes da utilização frequente de ferramentas de trabalho digitais. É neste contexto que o direito à desconexão (R2D) torna-se relevante. Os dez princípios fundamentais (Princípios Orientadores) definidos pelo ELI (European Law Institute) estabelecem uma base regulamentar equilibrada para o R2D na Europa.

Os Princípios Orientadores, que se destinam a todos os sistemas jurídicos europeus, têm um âmbito propositadamente amplo. Na medida em que o problema da conectividade excessiva se estende por toda a Europa, parece restritivo limitar a análise à UE. Tanto a legislação nacional como os documentos legislativos e políticos da UE são importantes fontes de inspiração mundo afora, inclusive para o Brasil. Particularmente desafiador é o nível em que as regras sobre desconexão devem ser aplicadas e as pessoas que devem visar. A subsidiariedade, a articulação das fontes e do âmbito são, portanto, aspectos fundamentais a considerar.

A tensão entre uma regulação aplicável em larga escala e a necessidade de adaptar ao R2D às especificidades de cada país, setor e empresa, a fim de garantir a sua aplicação eficiente e harmoniosa, está refletida nestas Diretrizes. Foi dedicada especial atenção à articulação cuidadosa das fontes reguladoras, a fim de combinar flexibilidade e adaptabilidade com princípios de proteção claros. Assim, embora o R2D se destine a ser aplicado uniformemente em toda a Europa, as regras e modalidades específicas para a sua implementação são deixadas principalmente à negociação coletiva ou, na falta desta opção, a serem regulamentadas a nível da empresa ou dos trabalhadores. A ideia é responder às realidades de cada local de trabalho. Contudo, isto não impede a introdução de regras claras que garantam a implementação eficaz do R2D. O resultado é, um equilíbrio delicado entre princípios e implementação.

No que diz respeito ao âmbito (Princípio Orientador 2), as Diretrizes propõem um R2D que se aplica a todos os trabalhadores, conforme definido na legislação da UE e na legislação nacional. Isto é coerente com os seus objetivos: a proteção da saúde dos trabalhadores e a consecução de um melhor equilíbrio entre vida profissional e pessoal. Isto implica que o R2D não se limita a categorias específicas de trabalhadores: aplica-se a todos aqueles que exercem as suas atividades sob condições de controle e subordinação, o que incluirá, de forma crítica, os falsos trabalhadores autônomos. Por outro lado, são incluídos os quadros dirigentes, na medida em que se encontrem numa posição comparável à dos trabalhadores. Porém, mesmo que um gestor deva usufruir do R2D, em princípio, da mesma forma que os seus subordinados, o âmbito e os termos de tal direito não serão os mesmos. mesmo, devido às peculiaridades de suas responsabilidades e atividades.

Por último, deve ser dada especial atenção à correspondência entre as exigências e expectativas impostas aos empregadores e a realidade econômica. É importante considerar a dimensão das empresas em causa e garantir que as suas obrigações não representam um fardo excessivo. A adaptação das suas obrigações (Princípio Orientador 3), bem como as negociações coletivas sobre o R2D (Princípio Orientador 5) são suscetíveis de salvaguardar os interesses dos empregadores, independentemente da sua dimensão e recursos.

Estes Princípios Orientadores são o resultado de reflexões e discussões coletivas, que conduziram a determinadas propostas e escolhas. O objetivo global é conciliar os interesses de todas as partes e, em particular, os imperativos de proteção e flexibilidade, garantindo ao mesmo tempo uma ampla aplicação do R2D a todos aqueles que dele necessitam.

Nas últimas décadas, os avanços tecnológicos levaram a uma revolução nas tecnologias de TI, abrindo novas oportunidades para o mundo do trabalho. As ferramentas digitais permitem comunicar em qualquer lugar e a qualquer hora, permitindo infinitas possibilidades de teletrabalho e trabalho remoto, contribuindo assim para o desaparecimento do conceito de local de trabalho como espaço físico. Estes desenvolvimentos podem resultar em benefícios e vantagens económicas e sociais, tais como maior flexibilidade e autonomia, potencial para melhorar o equilíbrio entre vida profissional e pessoal e redução dos tempos de deslocação, mas também trazem potenciais problemas e desvantagens, em especial para algumas profissões. Entre estes problemas, destaca-se o potencial das ferramentas digitais que levam à intensificação do trabalho e ao alargamento do horário de trabalho, confundindo as fronteiras entre o trabalho e a vida privada. Quando conduzem a uma cultura “sempre ligada”, a utilização de ferramentas digitais no mundo do trabalho tem efeitos prejudiciais na limitação do tempo de trabalho, com um impacto negativo no equilíbrio entre vida profissional e pessoal, bem como na saúde física e mental dos trabalhadores. Além disso, a cultura “always on” está em contradição com as políticas de sobriedade digital que perseguem objetivos de proteção ambiental. Os problemas acima mencionados foram agravados pelas mudanças resultantes da pandemia de COVID-19 e, em particular, pelo aumento do teletrabalho, que até então era um fenómeno minoritário na UE. A investigação da Eurofound revela alguns resultados reveladores: mais de um terço dos trabalhadores em toda a UE começaram a trabalhar a partir de casa durante a fase de confinamento da pandemia, em comparação com 5% que normalmente trabalhavam a partir de casa, e houve um aumento substancial na utilização de ferramentas digitais para fins de trabalho.

Exige-se, portanto, uma melhor aplicação da legislação existente sobre o tempo de trabalho e/ou intervenção regulamentar, com vista a proteger os trabalhadores dos efeitos negativos da utilização excessiva de ferramentas de trabalho digitais. Na UE, O R2D não está explicitamente regulamentado. Alguns Estados-Membros introduziram disposições legais sobre R2D nas suas ordens jurídicas, outros, baseiam-se principalmente na negociação coletiva para regular a questão, e a maioria não tendo adotado qualquer medida. Um risco desta fragmentação é que a regulamentação equilibrada das relações laborais em toda a Europa esteja ameaçada. Isto acontece apesar de o tempo de trabalho ter sido regulamentado a nível da UE, estabelecendo períodos mínimos de descanso aplicáveis, como regra geral, em toda a União. Dado que o estabelecimento de regras adequadas em matéria de R2D não pode ser suficientemente realizado pelos Estados-Membros individualmente, mas, devido à sua fundamentação, escala e efeitos, ser mais bem alcançado a nível da União, a ação da UE em matéria de R2D parece adequada, estando em conformidade com os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade consagrados no artigo 5.º do Tratado da União Europeia (TUE).

Não surpreendentemente, o Parlamento Europeu apelou a uma proposta de diretiva para garantir que os trabalhadores sejam capazes de exercer eficazmente o R2D. Esta diretiva complementaria a Diretiva 2003/88/CE relativa a certos aspetos da organização do tempo de trabalho, a Diretiva (UE) 2019/1152 relativa a condições de trabalho transparentes e previsíveis, a Diretiva (UE) 2019/1158 sobre o equilíbrio entre vida profissional e familiar para pais e cuidadores, e Diretiva 89/391/CEE do Conselho relativa à segurança e saúde dos trabalhadores.

Uma intervenção regulamentar em nível da UE também está em linha com a Declaração Europeia sobre Direitos Digitais e Princípios para a Década Digital de 2023, emitida pela Comissão, Parlamento e Conselho da UE (Declaração Europeia, 2023). Esta declaração menciona explicitamente o R2D na sua seção sobre condições de trabalho justas e equitativas, onde afirma que a UE está empenhada em “garantir que todos possam desligar-se e beneficiar de salvaguardas para o equilíbrio entre vida profissional e privada num ambiente digital”. O R2D deve ser vista como uma medida concreta para garantir que “todas as pessoas tenham direito a condições de trabalho justas, equitativas, saudáveis e seguras e a uma proteção adequada no ambiente digital, bem como no local de trabalho físico, independentemente do seu estatuto profissional, modalidade ou duração”, como se pode ler na declaração.

Além disso, o R2D, enquanto direito específico, ajuda a definir os limites entre o tempo de trabalho e o tempo de descanso. O respeito pelo tempo de trabalho e a sua previsibilidade é considerado essencial para garantir a saúde e a segurança dos trabalhadores e das suas famílias. Nesse sentido, o R2D visa proteger a saúde e a segurança dos trabalhadores no trabalho, bem como alcançar um melhor equilíbrio entre vida profissional e pessoal, o que, por sua vez, tem um impacto no género.

Uma condição prévia para uma compreensão e aplicação adequadas do R2D implica, portanto, uma regulamentação consistente do tempo de trabalho, incluindo, em particular, o horário máximo de trabalho, períodos mínimos de descanso e definições claras de modalidades de trabalho, como períodos de “prontidão” e “de plantão”. Nos termos da Diretiva 2003/88/CE, os trabalhadores da UE têm direito a requisitos mínimos de segurança e saúde relativos a certos aspectos da organização do tempo de trabalho. Neste contexto, a diretiva prevê o descanso diário, as pausas para descanso, o descanso semanal, a duração máxima do trabalho semanal e as férias anuais remuneradas, e regula certos aspectos do trabalho noturno, do trabalho por turnos e dos padrões de trabalho. De acordo com o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), o tempo de permanência, durante o qual o trabalhador é obrigado a estar fisicamente presente num local especificado pelo empregador, deve ser considerado como “tempo de trabalho integral [...] ], independentemente do fato de, durante os períodos de permanência, o interessado não exercer continuamente qualquer atividade profissional”. Tempo de permanência, no sentido em que o trabalhador é obrigado a estar à disposição do empregador e não têm a possibilidade de dispor livremente do seu tempo, também deve ser considerado como tempo de trabalho. Além disso, o TJUE interpretou os períodos mínimos de descanso como “regras de direito social comunitário de particular importância, das quais todos os trabalhadores devem beneficiar como requisito mínimo necessário para garantir a proteção da sua segurança e saúde”. No entanto, a Diretiva 2003/88/CE não prevê expressamente o R2D de um trabalhador, nem exige que os trabalhadores estejam disponíveis fora do horário de trabalho, durante os períodos de descanso ou outros períodos não laborais, mas prevê o direito a períodos de descanso diário, semanal e anual ininterruptos, durante os quais o trabalhador não deve ser contactado ou contactável.

Os Princípios Orientadores contidos no documento do ELI procuram delinear os principais alicerces para uma regulamentação comum sobre R2D em toda a Europa. Estes Princípios são o resultado de uma análise da regulamentação existente a nível nacional. Em grande medida, correspondem também aos subjacentes à proposta de 2021 do Parlamento Europeu (PE, 2021). No entanto, em aspectos específicos, os Princípios Orientadores fornecem reflexões mais extensas ou análises mais abrangentes, com exemplos nacionais, incluindo de Estados não pertencentes à UE. As jurisdições nacionais ou subnacionais analisadas para este efeito são Bélgica, França, Alemanha, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Espanha, Suécia, Suíça, Polónia e Portugal, algumas das quais não têm regras legais expressas em vigor no R2D. Finalmente, os Princípios Orientadores incorporam ideias e resultados de pesquisas em curso sobre teletrabalho e sua regulamentação. São propostos dez Princípios Orientadores que fornecem o conteúdo básico de um verdadeiro “direito à desconexão”. Cada Princípio é comentado para explicar seu contexto e justificativa.

A íntegra do trabalho com os 10 princípios orientadores se encontra aqui.

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Coordenação

Daniel Dias, professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Pedro Fortes é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Professor no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (UCAM), Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.

Thaís G. Pascoaloto Venturi, tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil – IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.