Direitos Humanos em pauta

A violência institucional cresce e a advocacia que ignora o racismo perde espaço (e dinheiro)

O combate ao racismo é urgente e estratégico na advocacia. Além do impacto social, representa um campo promissor com retorno financeiro, exigindo qualificação e visão antirracista para quem quer se destacar no mercado jurídico.

12/8/2025

A ideia de que o enfrentamento ao racismo seria apenas uma pauta de “engajamento” perdeu validade. O cenário atual mostra o contrário: o racismo é recorrente e denunciado cada vez mais. Quem ignora esse dado está não só cometendo erro estratégico, como também ficando para trás. A advocacia precisa compreender que atuar com perspectiva antirracista é, sim, um campo promissor de especialização - inclusive com potencial econômico concreto.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, divulgado recentemente, o Brasil registrou mais de 44 mil mortes violentas intencionais em 2024. Desse total, 79% das vítimas eram negras e 91,1 % eram homens. Embora tenha havido uma queda geral de 5,4% nos índices de violência letal, os números reafirmam que a violência institucional permanece racializada: a juventude negra continua sendo o principal alvo, morta em sua maioria por armas de fogo e em espaços públicos.

Além disso, o país registrou cerca de 82 mil desaparecimentos, um aumento de 4,9%. Em 14% dos casos de mortes violentas intencionais, os autores foram agentes do Estado. Destaque para estados como Amapá e Bahia, onde a letalidade policial supera, respectivamente, 17 e 10 mortes por 100 mil habitantes. Esses dados revelam um padrão de atuação estatal marcado pela seletividade racial.

Diante dessa realidade, torna-se imperativo que a advocacia se atualize. O racismo institucional, a violência de Estado e os crimes de injúria racial e discriminação não são apenas temas de militância. São também objeto de demandas jurídicas que exigem qualificação técnica, atualização doutrinária e domínio dos protocolos de julgamento com perspectiva racial - cuja adoção pelo Judiciário, a exemplo do que já ocorre com a perspectiva de gênero, tende a se expandir.

Mais do que isso: advogar em causas raciais dá retorno financeiro. A CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem fixado parâmetros objetivos para a reparação de danos morais em casos de racismo. Essas decisões criam jurisprudência internacional e abrem caminho para pedidos robustos de indenização, inclusive no plano interno. Isso demonstra que há uma economia da reparação racial em construção, que precisa ser compreendida por toda a advocacia, e não apenas por advogados e advogadas negras.

Dados do Anuário 2025 e do TJ/SP mostram que mais de 37 mil boletins de ocorrência por racismo foram registrados em 2024, o que representa um crescimento de quase 40% em relação a 2023. Se esses casos fossem também desdobrados na esfera cível, utilizando-se o parâmetro de R$ 30 mil de indenização por dano moral - já adotado em decisões judiciais - o montante passaria de 1 bilhão de reais em reparações. Deste total, R$ 222 milhões seriam destinados a honorários advocatícios. Esses números revelam que o antirracismo, além de um compromisso ético, representa um campo jurídico estratégico e com potencial financeiro concreto.

É também uma questão de diferencial competitivo. Escritórios que saibam como formular petições, pareceres e sustentações com base no protocolo de julgamento com perspectiva racial estarão um passo à frente. Infelizmente, grande parte da advocacia ainda trata o racismo como uma pauta alheia ao “jurídico sério”. Mas a prática tem demonstrado o oposto. Enquanto muitos seguem presos a modelos tradicionais de atuação, há um campo em crescimento para quem domina as interseções entre Direito, raça, segurança pública e reparação histórica.

O Judiciário está sendo pressionado por dentro e por fora a se transformar. A sociedade cobra respostas. E quem estiver preparado para responder com técnica, fundamento e compromisso vai ocupar esse espaço - com visibilidade, autoridade e faturamento.

Não se trata apenas de estar do lado certo da história. Trata-se de entender que, na prática forense, quem ignora a cor da violência pode acabar perdendo clientes, ações e oportunidades reais de atuação jurídica. A advocacia que despreza o racismo como problema jurídico está abrindo mão de espaço. E de dinheiro.

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Colunista

Silvia Souza é advogada, conselheira Federal da OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB. Pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e violência pela Universidade Federal do ABC. Mestranda em Direito pela UnB.