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Pegar comida em container de lixo de supermercado é crime, diz Tribunal Constitucional alemão

Pegar comida em container de lixo de supermercado é crime, diz Tribunal Constitucional alemão.

8/9/2020

Pegar alimento em containers de lixo pode ser considerado furto em determinadas circunstâncias. Foi o que decidiu o Tribunal Constitucional alemão recentemente em processo movido contra duas estudantes que retiraram alimentos de containers de um supermercado.

O caso

O caso aconteceu na pequena cidade de Olching, perto de Munique, na Bavária. Em junho de 2018, por volta das 23h, as duas estudantes arrebentaram a fechadura de um container de lixo e retiraram diversos alimentos (verduras e iogurtes) com validade vencida ou imprestáveis para venda ao consumidor devido à aparência ruim.

Elas não pegaram os alimentos por necessidade, mas para protestar contra a forma como a sociedade alemã tem lidado com o desperdício de alimentos e contra a criminalização da conduta como furto, tipificado no § 242 do Código Penal (Strafgesetzbuch).

Os alimentos haviam sido colocados em containers de lixo lacrados na área de carga e descarga de mercadorias do estacionamento do supermercado a fim de serem retirados por empresa contratada para realizar a coleta dos produtos.

Segundo o supermercado, os containers eram lacrados a fim de impedir o acesso indevido de terceiros, prevenindo a empresa contra eventuais ações indenizatórias em decorrência do consumo dos alimentos.

O gerente do supermercado chegou a registrar queixa contra as duas estudantes por furto dos produtos, avaliados em 200 euros, mas a queixa foi posteriormente retirada. A Polícia e a Promotoria, porém, estimaram os produtos furtados em 100 euros.

O processo 

As estudantes foram processadas por furto de containers de lixo perante o juízo da comarca de Fürstenfeldbruck, nos termos do § 242 do Strafgesetzbuch (StGB).

O juiz e o Ministério Público chegaram a propor a suspensão do processo em troca da prestação de oito horas de serviço comunitário, mas as rés recusaram o acordo.

Em decisão de 30/1/2019, as acusadas foram condenadas à prestação de oito horas de serviços comunitários e multa de 225 euros, decisão confirmada pelo Tribunal da Bavária – Bayerisches Oberstes Landesgericht – nos processos BayObLG Az. 206 StRR 1013/19 e Az. 206 StRR 1015/19, julgados em 2/10/2019.   

As estudantes, então, moveram reclamação constitucional (Verfassungsbeschwerde) perante o Tribunal Constitucional alegando ofensa ao direito geral de personalidade, previsto no art. 2º, inc. 1 c/c art. 1º, inc. 1, bem como violação da liberdade geral de ação do art. 2º, inc. 1, todos da Lei Fundamental (Grundgesetz).

Paralelamente, deram início a campanha na internet que coletou mais de 160 mil assinaturas em favor da descriminalização do furto de comida em containers de lixo de supermercados e congêneres e da proibição de desperdício de alimentos – problema, aliás, que aflige também o Brasil.

Com a campanha, elas conseguiram chamar atenção não apenas ao problema da rígida persecução penal de delitos de baixa monta, chamados no vernáculo alemão de Bagatelldelikten, mas também para o problema do desperdício de comida e, em última análise, para o problema da justiça distributiva que a questão do desperdício de alimentos envolve, disse o advogado de ambas, Max Malkus, aos jornais1.

De fato, o problema do desperdício de alimentos não envolve apenas custos financeiros. Ele gera ainda custos ambientais, pois o desperdício implica perda de recursos naturais na medida em que mais alimento precisa ser produzido para repor aquele jogado fora, provocando impactos ambientais negativos e custos sociais, pois joga-se comida no lixo enquanto milhares de pessoas no mundo sofrem de desnutrição.

Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (Food and Agricultural Organisation - FAO), 821 milhões de pessoas passam fome no mundo enquanto um terço dos alimentos produzidos são desperdiçados diariamente2.

Ou seja, trata-se de um problema dramático, mas complexo, pois não se pode olvidar que, a despeito dos aspectos negativos, o excesso de produção de alimentos interessa ao mercado agrário e também à sociedade, que se beneficia com preços menores.

De qualquer forma, retirar alimentos de containers de lixo de mercados como forma de combate à necessidade e ao desperdício tem sido uma prática frequente na Alemanha e já virou até verbo específico: containern, sem tradução literal no vernáculo português. 

A reclamação constitucional

Nas queixas constitucionais apresentadas, as estudantes alegaram violação ao direito geral de personalidade (art. 2º, inc. 1 c/c art. 1º, inc. 1 GG) e à liberdade geral de ação (art. 2º, inc. 1 GG).

Segundo a defesa, a aplicação da norma do § 242 StGB ao fato concreto (pegar alimentos que não se prestam à venda de containers de lixo de mercados) viola um direito constitucional da liberdade geral de ação e, em última análise, a proibição de excesso.

A questão discutida não era se no caso concreto a norma penal teria sido corretamente aplicada ou não, mas se a norma em si, in abstracto, violaria um direito fundamental. Dito em outras palavras: se a conduta de retirar coisas sem (ou de pequeno) valor econômico de container de lixo de mercados pode configurar caso de furto. Atente-se que não se trata de pegar algo do lixo de rua, mas de containers de terceiros.

As rés argumentaram ainda que não restou configurado o delito de furto, porque o supermercado teria renunciado ao domínio ao jogar os produtos nos containers para serem levados para o lixo.

Dessa forma, os alimentos não seriam mais propriedade do supermercado, mas sim coisa sem dono. Logo, não sendo "coisa alheia", afastada restava a incidência do § 242 StGB.

Para a defesa, diante da função social da propriedade (art. 14, inc. 2) e da proteção do fundamento natural da vida (art. 20a) pela Lei Fundamental, falta à conduta praticada um conteúdo injusto, sendo incompreensível por que a simples retirada de iogurtes, peras e maçãs de depósitos de lixo poderia ameaçar a integridade da ordem jurídica. Em outras palavras: por que a propriedade de um iogurte vencido precisa ser tutelada penalmente?

As acusadas salientaram que o supermercado não teria interesse digno de proteção em relação a alimentos jogados fora, até porque a responsabilidade da empresa seria afastada pela autoresponsabilidade daquele que retira para si os produtos.

Diante da insignificante intensidade delitiva da conduta, o direito penal só deveria ser aplicado como ultima ratio, vez que por força do princípio da intervenção mínima o Estado só deve utilizar a lei penal como último recurso, como o Bundesverfassungsgericht já reconheceu em precedente.

Por fim, não se pode esquecer – aduziram as estudantes – que à luz do interesse ao bem-estar público, tutelado pelo art. 20a da Lei Fundamental, o desperdício em massa de alimentos é nocivo à sociedade.

Por isso, concluíram, ser necessária uma interpretação restritiva do suporte fático do tipo penal do § 242 StGB, o que, segundo a defesa, não iria ao encontro nem da literalidade da norma, nem da vontade do legislador.

A decisão do Bundesverfassungsgericht

Nenhum desses argumentos, porém, ajudaram as acusadas a obter êxito no Tribunal Constitucional, que julgou improcedente os processos BVerfG 2 BvR 1985/19 e 2 BvR 1986/19 no último dia 18/8/2020.

Em suma, o 2º. Senado do Tribunal Constitucional considerou improcedente as reclamações constitucionais interpostas sob os seguintes argumentos: (i) os alimentos jogados em containers são propriedade do supermercado e, portanto, coisa alheia, elemento do suporte fático do crime de furto; (ii) a norma do § 242 StGB não aniquila a liberdade de ação geral consagrada no art. art. 2º, inc. 1 da GG ; (iii) a garantia constitucional da propriedade compreende o poder do titular de dispor da coisa e de afastar a interferência de terceiros, ainda quando o bem não possua valor econômico; (iv) enquanto o Legislador não descriminalizar a conduta de subtração de alimentos de containers, impondo limites ao poder de disposição do proprietário, a lei penal pode tutelar, através do delito de furto, a propriedade dos produtos. 

De início, o BVerfG salientou que, ao contrário do alegado pelas rés, a interpretação do § 242 StGB não foi arbitrária ou excessiva, pois orientada pelo conceito de "coisa alheia" estabelecido no direito civil e que a valoração das provas pelas instâncias inferiores fora adequada.

Para a Corte de Karlsruhe, cabe ao juiz do fato apurar se a retirada de alimentos do container de lixo do supermercado representa ou não subtração punível de coisa alheia, nos termos do § 242 StGB.

Para tanto, ele precisa verificar – valorando as circunstâncias concretas do caso – se a coisa jogada no lixo foi abandonada ou se, ao contrário, ainda permaneceu sob o domínio do proprietário.

A Corte acolheu nesse ponto o entendimento do Tribunal a quo no sentido de que "coisa alheia" é, segundo o direito civil, a pertencente a outra pessoa e que para a configuração do abandono é necessário que o proprietário tenha o ânimo de se desafazer da coisa sem qualquer finalidade.

Isso não ocorreu no caso concreto, vez que o supermercado colocou os alimentos nos containers para serem retirados pela empresa contratada, de forma que a destinação que seria dada aos produtos tinha importância para o proprietário.

Tanto é assim que os alimentos foram colocados em containers lacrados e em área da própria empresa, e não abandonados em área pública. Ao jogar os alimentos em containers fechados em seu estacionamento, o supermercado dava claramente a entender que os produtos não estavam disponíveis para retirada por qualquer pessoa, mas apenas pela empresa autorizada.

E isso permite concluir, como fizeram as instâncias inferiores, que havia a intenção do supermercado de continuar na propriedade dos alimentos até a retirada pela empresa de coleta.

Logo, terceiros só poderiam retirar as mercadorias sob expressa autorização do proprietário, sob pena de configuração do tipo penal do furto, que consiste na subtração de coisa alheia móvel para si ou para outrem, de acordo com o § 242 StGB, à semelhança do art. 155 do Código Penal brasileiro.

Dessa forma, os alimentos subtraídos pelas duas rés não eram coisa sem dono ou abandonada (res derelicta, nos termos do § 959 BGB) no momento do ato, mas ainda estavam sob o domínio do supermercado, pois estavam trancados em containers e se destinavam exclusivamente a coleta por empresa especializada.

Para a Corte Constitucional, o supermercado tem interesse legítimo em que os alimentos descartados não sejam pegos por terceiros, pois isso lhe imporia deveres adicionais de cuidado com a conservação dos produtos, aumentando, consequentemente, os riscos de responsabilidade por danos à saúde das pessoas que consumissem as mercadorias.

A tese das rés, de que quem retira e consome alimentos de containers assume uma responsabilidade que afasta automaticamente a responsabilidade do supermercado, não é pacífica no direito vigente, disse o Tribunal, que também ressaltou que o § 242 StGB confere proteção ao patrimônio de coisa móvel independentemente de seu valor econômico.

Com base nesses argumentos, o Tribunal rechaçou o argumento das estudantes de que não houve subtração de coisa alheia (alimentos), nos termos do § 242 do Código Penal alemão.

A Suprema Corte salientou, ainda, que nem o princípio da proporcionalidade, nem o princípio da intervenção mínima (ultima ratio) ordenam uma restrição da punibilidade no direito penal, nem mesmo a punibilidade de furtos a containers de lixo.

É inegável que a Lei Fundamental tutela a liberdade geral de ação, mas desde que ela seja exercida nos limites da ordem constitucional, que inclui todas as normas jurídicas que se encontram formal e materialmente em harmonia com a Constituição. Logo, todas as restrições à liberdade de ação, estabelecidas com base nessas normas, não violam, em princípio, o art. 2º, inc. 1 da Grundgesetz, disse a Corte. 

Cabe ao Legislador regular a questão

Segundo a Corte de Karlsruhe, cabe ao Legislador, democraticamente legitimado, decidir se o ato de pegar alimentos de containers de lixo de mercados deve ser conduta punível penalmente ou não.

Não cabe ao BVerfG decidir se o Legislador adotou a solução mais adequada, a mais racional ou a mais justa (em outras palavras: se ele poderia fazer uma lei melhor), mas tão só verificar se a norma penal está em conformidade material com a Constituição e com as decisões fundamentais da Grundgesetz.

A garantia da propriedade, prevista no art. 14, inc. 1 da Lei Fundamental, tem significado especial no Estado Social de Direito, disse o BVerfG, servindo de base para a iniciativa privada e para o uso responsável da propriedade pelos particulares, vez que seu uso também deve servir ao bem-estar da coletividade, nos termos do art. 14, inc. 2 da Grundgesetz.

E a propriedade goza de especial proteção quando tem por fim assegurar a liberdade pessoal do individuo. A proteção constitucional da propriedade engloba principalmente a propriedade das coisas no plano civil, de forma que o art. 14, inc. 1 GG garante ao titular o direito de possuir, usar, gozar e dispor da coisa.

O § 242 StGB, por seu turno, em harmonia com o direito constitucional, confere proteção à propriedade enquanto posição jurídica privada formal, sendo certo que essa tutela independe do valor econômico do bem. Isso equivale dizer: o delito do furto protege a propriedade de coisas sem – ou de baixo – valor econômico.

Dessa forma, a subtração de coisa alheia, ainda quando destituída de valor econômico, fere interesses de terceiros protegidos constitucionalmente, afirmou a Corte.

E como o legislador não descriminalizou até agora a conduta de pegar alimentos de containers, o domínio de coisas – mesmo sem valor econômico – continua a ser protegido através do direito penal, afirmou o Bundesverfassungsgericht.

No caso concreto, disse a Suprema Corte, a punibilidade da conduta das estudantes serve para proteger a liberdade de disposição do proprietário e, dessa forma, a tutelar o direito de propriedade como bem jurídico de status constitucional.

O supermercado, proprietário dos alimentos, tinha a clara intenção de destruí-los, através da empresa encarregada da coleta, a fim de evitar eventual responsabilidade decorrente do consumo de produtos vencidos ou talvez estragados.

E esse interesse do proprietário (afastar a assunção de deveres adicionais de cuidado em relação à segurança dos alimentos e/ou a responsabilidade durante a eliminação de alimentos) deve ser, em princípio, aceito e respeitado no âmbito da garantia da propriedade do art. 14, inc. 1 da Lei Fundamental, pelo menos enquanto o Legislador não restringir o poder de disposição do titular.

Dessa forma, não se trata no caso concreto de proteger uma posição de domínio formal e vazia de conteúdo, mas de tutelar o poder legítimo de disposição e de exclusão de terceiros, conferido ao titular do direito de propriedade.

As repercussões da decisão

Em suma, pode ser dizer que o Tribunal Constitucional alemão reconheceu o problema, mas disse que cabe ao Legislador decidir pela descriminalização da coleta de lixo de containers de mercados e semelhantes.  

Como se vê, a discussão em torno da legalidade ou não de pegar alimentos em containers de mercados é tudo, menos simples, daí a necessidade do problema ser enfrentado pelo Legislador. Enquanto isso não acontece, algumas pessoas ficaram com a sensação de que o direito alemão vigente deveria oferecer solução diversa à questão da criminalização da conduta.

Até porque outros países, como França e República Checa, têm lei proibindo mercados e demais estabelecimentos de produtos alimentícios de jogar fora alimentos ainda consumíveis a fim de combater o desperdício e a fome3. A França, por sinal, foi o primeiro país no mundo a criminalizar o desperdício de alimentos4.

No fundo, foi o que disse a Corte de Karlsruhe: o Legislador precisa legislar, não o Tribunal Constitucional. Mas, apesar disso, a decisão restou impalatável para muitos críticos.

__________

1 BVerfG zu Strafe wegen Containerns: Auch Müll ist geschützt. LTO, 18.08.2020.

2 O que o Brasil está fazendo contra o desperdício de alimentos. Acesso: 03.03.2020.

3 Loi n° 2016-138 du 11 février 2016 relative à la lutte contre le gaspillage alimentaire.

4 Wie Frankreich gegen den achtlosen Umgang mit Essen kämpft. Süddeutsche Zeitung, 17.02.2019. Veja ainda: Lei que proíbe jogar alimentos fora vira exemplo mundial. Gazeta do Povo, 7/1/2018.

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Colunista

Karina Nunes Fritz é doutora (summa cum laude) pela Humboldt Universität de Berlim (Alemanha). Prêmio Humboldt de melhor tese de doutorado na área de Direito Civil (2018). LL.M na Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Secretária-Geral da Deutsch-lusitanische Juristenvereinigung (Associação Luso-alemã de Juristas), sediada em Berlim. Diretora Científica da Revista do Instituto Brasileiro de Estudos sobre Responsabilidade Civil (IBERC). Foi pesquisadora-visitante no Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Alemão) e bolsista do Max-Planck Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Professora, Advogada e Consultora. Facebook: Karina Nunes Fritz. Instagram: @karinanfritz15