German Report

Webinar debate a revisão contratual sob a perspectiva do STJ e do BGH

O legislador alemão fechou a porta, mas o judiciário abriu a janela para a revisão contratual com a crise socioeconômica provocada pela 1ª Guerra Mundial.

13/7/2022

O legislador alemão fechou a porta, mas o judiciário abriu a janela para a revisão contratual
com a crise socioeconômica provocada pela 1ª Guerra Mundial.

No último dia 29/6/2022, a Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ), presidida pela Des. Cristina Gaulia, realizou Webinar sobre o tema mais controvertido do direito contratual desde o início da pandemia: as alterações supervenientes das circunstâncias e a revisão contratual. 

O evento foi organizado pelo Fórum Permanente de Direito Comparado da EMERJ, que tenho o prazer de presidir juntamente com o e. Des. Eduardo Gusmão (TJ/RJ). Para debater tão candente temática, a EMERJ recebeu a ilustre presença da Min. Nancy Andrighi (Superior Tribunal de Justiça) e do Prof. Dr. Jan Dirk Harke, Desembargador do Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Jena, na Alemanha, além da Profa. Dra. Viviane Ferreira (FGVSP), que fez instigantes provocações nos debates.

Enquanto a Min. Nancy Andrighi apresentou um panorama geral da jurisprudência do STJ sobre revisão contratual, Jan Dirk Harke falou sobre a teoria alemã da quebra da base do negócio, que fundamenta e justifica a revisão judicial dos contratos na Alemanha e nos demais países que recepcionaram – direta ou indiretamente – a teoria, a exemplo de Portugal.

O ponto de partida comum foi a pergunta: o que fazer quando, após a conclusão do contrato, ocorrem eventos graves e extraordinários que alteram profundamente as circunstâncias iniciais (base) do negócio, tornando o cumprimento extremamente difícil para o devedor ou frustrando o fim do contrato? Se as partes não chegam a uma solução consensual, deve-se exigir o cumprimento tal como acordado, reajustar ou extinguir o contrato?

A revisão contratual na ótica do STJ

A Min. Nancy Andrighi apresentou o estado da arte da revisão judicial dos contratos por alterações supervenientes das circunstâncias na jurisprudência da Corte, considerando os julgados proferidos nos últimos cinco anos, entre 2017 e 2022.

De início, a Ministra fez uma constatação, evidenciada com o estopim da pandemia de Covid-19: é inegável a incompletude do sistema jurídico do Código Civil para revisar os contratos.  

Segundo ela, os juízes devem ter um “novo olhar” para as questões jurídicas geradas pela pandemia, as quais estão aportando paulatinamente no Poder Judiciário. É dever do juiz não manter a mente aprisionada, incapaz de fazer mudanças. Ele deve aplicar a lei com um “toque de altruísmo e equidade, o que significa ler a lei e aplicá-la de forma humanizada”.

Revisar ou rescindir contratos com fundamento nas alterações produzidas pela pandemia, é uma atividade judicial que exige estudo, reflexão e a utilização de regras legais, muitas vezes insuficientes, mas que – calcadas nos princípios, nas lições e nas experiências de outros países – produzirão uma “sentença que devote o olhar adequado e com equidade para ambas as partes”, disse Nancy Andrighi.

Essa fala introdutória da Ministra é importante, porque mostra a importância do direito comparado para a aplicação e o aperfeiçoamento do próprio direito e, também, porque afasta a ideia, sustentada por abalizada doutrina, de que pandemia teria provocado apenas uma “dificuldade financeira” para o devedor, o que não autorizaria o reajuste do contrato.

Recorde-se que muito se discutiu se a pandemia seria ou não causa, em tese, para a revisão dos contratos. O art. 7º da Lei 14.010/2020 (RJET) tentou até separar a crise pandêmica da crise econômica, efeito colateral do coronavírus, ao afirmar que “não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário”.

Mas Nancy Andrighi não hesitou ao afirmar: “É evidente que a pandemia provocou profundos impactos nas relações contratuais, de forma que as obrigações assumidas anteriormente tornaram-se insustentáveis. Surge nesse contexto o interesse da parte prejudicar de revisar o contrato a fim de alcançar um equilíbrio mínimo que permita o prosseguimento do negócio pactuado”.

E deu como exemplo os contratos de locação de lojas de shoppings centers: embora as lojas tenham sido fechadas por causa da pandemia, fazendo com que os locatários ficassem impedidos de auferir renda, esses permaneceram obrigados a arcar com o aluguel da loja, surgindo aqui o conflito.

A primeira solução, disse a magistrada, reside no âmbito negocial, com uma alteração consensual do contrato. Mas o problema efetivamente se põe quando uma das partes quer a revisão e a outra não, pretendendo a manutenção do contrato nos exatos termos em que pactuado. Quid iudis?

Nancy Andrighi relembrou que a revisão contratual por alterações superveniente nas circunstâncias presentes na celebração – trocando em miúdos: por quebra da base do negócio – já foi objeto de várias teorias, como a imprevisão, a onerosidade excessiva e a quebra da base objetiva do negocio.

No Brasil, observou, por força do principio da legalidade (vigente, aliás, em todos os sistemas de civil law), as possibilidades e os limites da revisão contratual devem observar os contornos previstos pela lei, de modo que é a partir da interpretação legal que se deve identificar a teoria adotada.

Segundo a doutra magistrada, os limites da revisão judicial dos contratos foram intensificados pela Lei de Liberdade Econômica que, acrescentando o Parágrafo único ao art. 421 e o art. 421-A III ao Código Civil, estabeleceu o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.

Dessa forma, afirmou, o Brasil caminha no sentido de privilegiar os contratos nos limites pactuados pelas partes, permitindo apenas o controle judicial de forma absolutamente restrita e em hipóteses excepcionais – entendimento, aliás, deve-se repisar, que não destoa da regra geral no direito alemão, no qual vigora o princípio do pacta sunt servanda e a excepcionalidade da revisão contratual.

Nancy Andrighi lembrou que a base legal para a revisão contratual por alteração superveniente das circunstâncias encontra-se principalmente nos arts. 317 e 478 CC e no art. 6 V CDC. Enquanto no Código Civil estão previstos os requisitos oriundos das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, a lei do consumidor exige apenas que os fatos sejam supervenientes e as prestações se tornem excessivamente onerosas.

O art. 6 V CDC recepciona – ou, pelo menos, teve como inspiração – a teoria da base objetiva do negócio, muito embora, acrescentou a Ministra, muitos sustentem que a teoria da base é perfeitamente compatível com o Código Civil, a partir da aplicação do princípio da boa-fé objetiva do art. 422 CC.

A fim de identificar as teorias mais utilizadas pelo STJ para justificar a revisão contratual, Nancy Andrighi fez meticuloso apanhado das decisões da Corte Especial e das duas Turmas que compõem a Seção de Direito Privado.

Com a pesquisa, foram obtidos 464 acórdãos: 314 tratam da onerosidade excessiva, 129 mencionam a teoria da imprevisão, 12 aludem à teoria da base objetiva e 09 reportam-se ao termo genérico da alteração superveniente das circunstâncias. Restringindo a busca aos últimos cinco anos, chega-se a um total de 123 acórdãos, sendo 86 sobre onerosidade excessiva, 27 sobre a teoria da imprevisão, 04 sobre base objetiva e 06 sobre alterações das circunstâncias.

No entanto, Nancy Andrighi explicou que parte dos 123 acórdãos se limita a analisar a admissibilidade dos recursos e só menciona as teorias nos relatórios, por constarem das alegações das partes e/ou nos acórdãos recorridos. Alguns julgados até analisam o mérito, mas, por afastar a revisão contratual no caso concreto, não aprofundam a discussão sobre as teorias revisionistas.

Em apenas 15 decisões, o STJ analisou o mérito das teorias, admitindo a possibilidade da revisão contratual. Dessas, 10 referem-se à onerosidade excessiva, 03 à teoria da imprevisão e 02 à alteração das circunstâncias. Dos 10 acórdãos que mencionam a onerosidade excessiva, nem todos dizem respeito efetivamente à teoria: 06 deles são julgados sobre contratos de consumo e mencionam o termo não por causa da teoria, mas pela previsão expressa do requisito da onerosidade excessiva no art. 6 V CDC. Ou seja, apenas 04 julgados da Corte tratam abordam a teoria!

O grande precedente que norteou os demais foi o REsp. 1.321.614/SP, julgado pela 3a Turma em 16/12/2014. O caso trata de ação de revisão contratual pleiteada em decorrência da maxidesvalorização do real frente ao dólar em 1999.

O Relator, Min. Paulo de Tarso Sanseverino, fundamentou seu voto na teoria da base objetiva do negócio, afirmando que ela se aplicaria não somente às relações de consumo, mas ainda às relações privadas regidas pelo Código Civil. Para afastar o argumento de que a desvalorização da moeda era evento previsível, o Relator defendeu a aplicação da teoria da base, que não exigiria a imprevisibilidade do fato superveniente que alterou a base do negócio.

Contudo, o voto vencedor, capitaneado pelo e. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, concluiu que o Código Civil adotou apenas as teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, ao passo que a teoria da base objetiva do negócio só teria sido recepcionada na lei consumerista, que permite a revisão por onerosidade excessiva decorrente de fatos supervenientes, independente destes serem ou não imprevisíveis, disse a painelista.

A decisão, em apertada síntese, centrou-se na ideia de que a teoria da base do negócio dispensaria o requisito da imprevisibilidade e, por isso, só fora se aplicaria às relações de consumo. Outra preocupação clara do julgado foi afastar a aplicação da teoria do diálogo das fontes para estender a todo o direito das obrigações uma regra incidente apenas no microssistema do direito do consumidor.

E, assim, no caso concreto, a 3a Turma do STJ negou a revisão do contrato por considerar que, na época dos fatos, a maxidesvalorização do real era um evento previsível.

Da análise jurisprudencial feita, Nancy Andrighi concluiu que poucos são, na verdade, os julgados em que há efetivamente a revisão judicial dos contratos, o que se explica pela estreiteza das teorias adotadas, mas também pelas Súmulas 5 e 7 do STJ, que impedem a Corte de reanalisar fatos e interpretar as cláusulas contratuais.

A segunda conclusão extraída pela Ministra é que o STJ nunca fez uma diferenciação dogmática precisa entre as teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva. A Corte está em falta, disse.

Uma terceira conclusão importante, também ressaltada, é que nenhum acordão versou sobre a eventual possibilidade do ordenamento jurídico exigir requisitos semelhantes, mas não necessariamente iguais às teorias clássicas, para a revisão dos contratos, concluindo, por fim, que a alteração superveniente das circunstâncias está a reclamar um estudo cauteloso da Corte.

A Ministra fez menção ainda às duas primeiras decisões do Tribunal sobre a pandemia. A primeira, o REsp. 1.971.304/SP, julgado pela 3a Turma em 14/6/2022 sob sua relatoria, não trata de revisão contratual, mas de ação questionando a legalidade da decisão de síndico que, a pretexto de evitar o contágio, impediu o proprietário de adentrar em sua unidade condominial.

A segunda decisão foi proferida pela 4a Turma no REsp. 1.998.206/DF, julgado em 14/6/2022 sob relatoria do e. Min. Luís Felipe Salomão. O caso diz respeito à revisão de contrato de consumo, em que o consumidor pleiteava a redução do valor das mensalidades escolares durante a pandemia, tendo em vista que as aulas passaram a ser ministradas de forma online.

No acórdão, ainda não publicado, ficou assentado que a situação decorrente da pandemia “não constitui fato superveniente apto a justificar a redução das mensalidades em contratos de prestação de serviços educacionais”.

Quer isto dizer que no caso concreto não restou evidenciado o desequilíbrio excessivo autorizador da redução do valor das mensalidade. Em outras palavras: o consumidor não logrou demonstrar a excessiva dificuldade de continuar cumprindo as prestações (pagamento da mensalidade integral).

A Min. Nancy Andrighi alertou, porém, que o judiciário precisa ter muito cuidado para não aplicar a decisão de maneira equivocada, como se a pandemia não fosse uma causa autorizadora de revisão contratual, pois dúvida não há quanto aos efeitos nefastos causados pela pandemia na economia mundial e nas relações privadas.

Em sínteses conclusiva, dois pontos da fala da Min. Nancy Andrighi merecem destaque: primeiro, o STJ ainda não fez uma análise dogmática aprofundada das teorias revisionistas e, segundo, o regime revisional criado pelo legislador no Código Civil não soluciona todos os casos de alterações supervenientes das circunstâncias.

O direito alemão partiu de um cenário pior que o nosso, pois o legislador do séc. 19 – ao contrário do legislador brasileiro de 1975 – rejeitou expressamente a revisão judicial dos contratos. Mas a jurisprudência resolveu o imbróglio provocado pelas alterações supervenientes das circunstâncias através da teoria da quebra da base do negócio.

A revisão contratual no direito alemão

O Prof. Jan Dirk Harke iniciou sua fala fazendo uma retrospectiva histórica muito ilustrativa para a discussão atual no Brasil. Ele lembrou que o legislador histórico – responsável pela elaboração do Código Civil alemão, o Bürgerliches Gesetzbuch (BGB) – rejeitou expressamente a possibilidade do juiz intervir nos contratos.

Na época da elaboração do BGB, Bernard Windscheid já havia desenvolvido, à partir da ideia medieval da cláusula rebus sic stantibus, a chamada teoria da pressuposição (Lehre der Voraussetzung).

Ele dizia que nos contratos havia uma condição não expressa de que a vontade negocial só teria validade diante da existência, ocorrência ou permanência de determinadas circunstâncias (pressuposição). Por isso, afirmava que a pressuposição era uma “condição não desenvolvida” (unentwickelte Bedingung).

Apesar do prestígio e da influência de Windscheid, a teoria não foi incorporada ao BGB sob o argumento – utilizado atualmente pelo discurso da análise econômica do direito – de que a intervenção do juiz nos contratos provocava grave insegurança jurídica e que o legislador não poderia flexibilizar o “sagrado” princípio do pacta sunt servanda, o que naquele tempo se justificava, ressaltou Harke, porque vivia-se uma época de estabilidade.

Porém, o mundo da estabilidade começou a ruir logo nas primeiras décadas do séc. 20. Com efeito, a 1ª Guerra Mundial trouxe, além de destruição e morte, profundas alterações nas condições-quadro gerais (ex: sociais, econômicas, políticas, etc.). Sobretudo os embargos à exportação de produtos alemães e a elevada alta dos preços dificultavam enormemente o cumprimento dos contratos tal como inicialmente pactuado.

A hiperinflação, disse Harke, só viria a se instalar nos anos 20, mas a realidade da vida já se impunha ao direito de forma inexorável, fazendo com que, embora o legislador tenha rejeitado deliberadamente a teoria windscheidiana, o judiciário passasse a reajustar os contratos.

Ou seja, o legislador fechou as portas, mas o judiciário abriu as janelas à revisão judicial dos contratos impelido pela realidade implacável dos acontecimentos.

Os tribunais alemães passaram, então, a readaptar os contratos apoiados, inicialmente, na ideia de “impossibilidade econômica” e, em seguida, na teoria da pressuposição, à época há aperfeiçoada por Paul Oertmann, genro de Windscheid, e denominada de teoria da base do negócio.

Segundo o painelista, renomado romanista contemporâneo, a teoria de Oertmann foi imediatamente adotada pelo Tribunal Imperial (Reichsgericht) para lidar com os casos de aumento exagerado de preços em decorrência do conflito bélico e com a hiperinflação de 1923, fazendo com que a antiga ideia de impossibilidade econômica fosse totalmente abandonada.

Cabe aqui abrir um parêntese e notar como soa, no mínimo, anacrônica a tentativa de “ressuscitar”, em pleno séc. 21, as teorias da impossibilidade econômica e da pressuposição, abandonadas em seu país de origem devido às suas deficiências, para solucionar os problemas causados pela pandemia, como tem sido feito por aqui e em outras latitudes.

Na Itália, nomes como Vincenzo Roppo chegaram a propor o recurso all’istituto della presupposizione para justificar a revisão dos contratos desequilibrados pela pandemia e, dessa forma, contornar as dificuldades da teoria da onerosidade excessiva, como dá notícia o Prof. Claudio Scognamiglio em entrevista ao German Report (no prelo).

Fechando o parêntese e retornando à exposição do Prof. Jan Dirk Harke, ele falou que após essas décadas turbulentas, tornou-se incontroverso na Alemanha o poder do juiz de estabilizar os contratos em decorrência de gravosas superveniências. A teoria da base do negócio, porém, continuou sofrendo aperfeiçoamentos teóricos, sobretudo após sua vinculação ao princípio da boa-fé objetiva, previsto no § 242 BGB.

E assim, a teoria deixa de ter fundamento na vontade (fictícia) dos contraentes, que teriam acordado uma condição não desenvolvida de que as situações decisivas para a conclusão do negócio permaneceriam hígidas, e passa a embasar-se na ideia de retidão e consideração pelos interesses da contraparte, núcleo duro do mandamento da boa-fé ética.

A teoria da base do negócio acaba, por fim, aperfeiçoada por Karl Larenz, que demonstra, em 1951, que se pode identificar não apenas uma base subjetiva do negócio (representações das partes), como faziam Windscheid e Oertmann, mas ainda uma base objetiva do negócio, aquelas condições-quadro gerais (políticas, sociais, econômicas, etc.), presentes no momento da celebração, sobre as quais os contratantes formam a vontade negocial. Ambas podem sofrer alterações em decorrência de eventos supervenientes.

Segundo Larenz, o juiz dever reajustar o contrato sempre que as circunstâncias presentes no momento da celebração (base do negócio) sofrerem profundas alterações não antevistas pelas partes (e, portanto, não reguladas no contrato), tornando excessivamente difícil o cumprimento do contrato tal como inicialmente pactuado ou frustrando definitivamente o alcance do fim último do negócio.

Embora não prevista no BGB/1900, a teoria da quebra da base do negócio encontrou amparo legal no § 242 BGB, cuja tacanha redação diz apenas que o devedor deve cumprir a prestação de boa-fé, observando os usos do tráfego.

Apesar da estreita literalidade da norma, doutrina e jurisprudência alemãs viram ali uma cláusula geral da boa-fé ética, que passou a fundamentar a teoria da base do negócio, pois, afinal, nada pode ser mais desleal do que o credor exigir o cumprimento inalterado de um contrato desequilibrado por acontecimentos não imputáveis à esfera de risco e responsabilidade do devedor.

Revelando-se profundo conhecedor do direito brasileiro, Harke afirmou que o § 242 BGB encontra equivalência no art. 422 CC2002, embora seja muito mais limitado em seu conteúdo do que o dispositivo brasileiro, pois manda apenas o devedor observar a boa-fé durante a execução, enquanto o art. 422 CC exige a boa-fé nos momentos da conclusão (pré-contratual) e da execução do contrato.

O Professor da Universidade de Jena chamou atenção para o fato de que a teoria da base do negócio foi aplicada pelo judiciário alemão por mais de um século sem qualquer previsão legal, com base apenas no princípio da boa-fé objetiva do § 242 BGB.

Segundo ele, os tribunais só não aplicaram a teoria com mais frequência devido à estabilidade econômica experimentada na Alemanha após a 2ª Guerra Mundial e porque o legislador alemão – em vários momentos extraordinários – interveio para reequilibrar os contratos através de leis especiais transitórias, como ocorreu após a 2ª Guerra Mundial, com a mudança da moeda em 1948, por ocasião da reunificação alemã, e, por último, com a pandemia de Covid-19, o que tornou desnecessário o recurso ao poder judiciário.

E após um século de aplicação sem previsão legal e contra a “vontade” do legislador histórico, o legislador da reforma de modernização do direito das obrigações do Código Civil alemão (2001/2002) finalmente positivou a teoria da quebra da base do negócio no § 313 BGB.

Não houve qualquer mudança teórica, mas apenas a recepção e incorporação de um instituto jurídico desenvolvido pela doutrina e jurisprudência contra a vontade inicial do legislador, mas em conformidade com o necessário aperfeiçoamento e adaptação do direito aos novos tempos.

Harke explicou que o § 313 BGB exige, em suma, três pressupostos indispensáveis para autorizar a revisão – ou, excepcionalmente, a extinção – do contrato por alterações supervenientes das circunstâncias.

Primeiro, um elemento factual, qual seja, a superveniência de uma profunda alteração nas circunstâncias iniciais do negócio, base da decisão de contratar das partes.

Segundo, um elemento hipotético, ou seja, a demonstração de que as partes não teriam celebrado o contrato – ou o teriam feito com outro conteúdo – se tivessem previsto a alteração das circunstâncias, o que mostra que a teoria da base não dispensa o caráter da imprevisibilidade dos efeitos (alteração das circunstâncias) do evento, pois se os contratantes anteviram a superveniência e distribuíram os riscos no contrato, prevalece o pactuado.

Atente-se, porém, que, conquanto importante, o elemento da imprevisibilidade da alteração das circunstâncias não tem na teoria da base do negócio o papel decisivo e o caráter absoluto que ocupa na (antiga) teoria francesa da imprevisão.

Terceiro, um elemento normativo, ou seja, a prova da irrazoabilidade da manutenção inalterada do contrato. Em outras palavras: a prova de que o devedor está com excessiva dificuldade de cumprir a prestação ou que a superveniência frustrou o fim útil do contrato.

E falando especificamente sobre a crise pandêmica, o renomado historiador afirmou que sempre reinou consenso na comunidade jurídica alemã de que a pandemia de Covid-19 foi um evento extraordinário e imprevisível que provocou profundas alterações nas condições sociais e macroeconômicas que davam sustentação a muitos contratos. Daí falar-se que a pandemia provocou a perturbação da grande base do negócio (Störung der großen Geschäftsgrundlage).

Dessa forma, foi até redundante o legislador alemão, por meio de lei emergencial de 22/12/2020, acrescentar o § 7 ao art. 240 da Lei de Introdução ao BGB para estabelecer a presunção de que pandemia provocara a quebra da base dos contratos de locação comercial, pois doutrina e jurisprudência eram unânimes em reconhecer que as medidas de combate à pandemia abalaram gravemente as circunstâncias de muitos negócios.

Ademais, a profunda alteração na base do negócio é apenas um dos três requisitos legitimadores da revisão contratual e não autoriza por si só a readaptação, sendo imprescindível que o contratante prejudicado demonstre ainda a presença dos demais pressupostos, disse Harke.

É bem verdade que a prova do segundo pressuposto (elemento hipotético) – i.e., a demonstração de que as partes não teriam celebrado o contrato ou o teriam celebrado com outro conteúdo se tivessem antevisto a alteração das circunstâncias – não gerou grandes dificuldades, pois para todos era óbvio que uma catástrofe da dimensão da Covid-19 foi um problema não antevisto por nenhum dos contratantes.

Ninguém esperava – pelo menos, antes de 2020 – as medidas adotadas pelo Estado para contenção da pandemia, como a paralização das atividades econômicas, o fechamento de lojas e o distanciamento social. Ou seja, na Alemanha, ao contrário do Brasil, não houve controvérsias acerca da imprevisibilidade da pandemia e de seus efeitos catastróficos.

Da mesma forma, era evidente que as partes, se tivessem antevisto a pandemia e seus graves efeitos colaterais, teriam celebrado o contrato com outros termos ou desistido da celebração, disse Harke ecoando a (sensata) opinião generalizada no meio jurídico germânico.

Dessa forma, o maior obstáculo na prática tem sido demonstrar a excessiva dificuldade de prestar ou a frustração do fim do contrato. Vale dizer: a prova do elemento normativo, que é o mais difícil, porque só pode ser avaliado caso a caso.

E na Alemanha há um ingrediente a mais a ser levado em conta nessa avaliação: o auxílio emergencial fornecido pelo Estado. Com efeito, como noticiado nessa coluna, o governo alemão forneceu milhões de euros em auxílio emergencial para pessoas físicas e empresas de pequeno, médio e grande porte atingidas duramente pelas medidas de combate à pandemia.

Esse subsídio era fornecido de forma diferenciada, mas tinha por fim ajudar essas pessoas a suportar o período de perda ou forte redução do faturamento, funcionando como compensação pelo fechamento dos estabelecimentos.

Por isso, na análise do caso concreto, o juiz tem observado se houve perda ou redução substancial na renda, i.e., a redução concreta do volume de negócios, mas também se o locatário recebeu – ou poderia ter recebido – auxilio do governo ou eventual seguro pela interrupção das atividades.

E a razão é evidente: o locatário que recebeu auxilio financeiro do governo tem maior dificuldade de fazer a prova de que o cumprimento tornou-se excessivamente difícil e, por isso, na prática, o recebimento do auxílio estatal tem impedido a revisão de muitos contratos.

Harke ressaltou que cabe ao locatário o ônus de provar detalhadamente sua situação econômica, i. e., a dificuldade econômica provocada pela pandemia, não podendo o judiciário presumir que a pandemia provocou perdas generalizadas, como têm feito alguns julgados aqui no Brasil.

Recorde-se, à guisa de exemplo, recente decisão do TJ/SP, de 31/5/2022, que reduziu pela metade o valor do aluguel de posto de gasolina sem prova concreta da perda substancial de faturamento e, o que é mais esdrúxulo, determinou que a redução perdure até que o PIB retorne ao patamar anterior à pandemia (clique aqui).

Harke ressaltou, porém, que o contratante não precisa provar estar à beira da ruina financeira (risco da ruina), ou seja, que sua existência está ameaçada, mas deve demonstrar detalhadamente o impacto da pandemia sobre sua renda.

O painelista explicou ainda que há consenso doutrinário e jurisprudencial de que o fechamento das lojas não configura impossibilidade, nem cumprimento defeituoso pelo locador ou vício da coisa. E não é defeito da coisa, a uma, porque não foi afetada a adequação (substância) do bem ao uso previsto no contrato e, a duas, porque o locatário não foi impedido de exercer seu direito ao uso por um problema imputável à esfera do locador.

Há unanimidade, ainda, de que o risco da pandemia não pode ser atribuído somente ao locatário, pois trata-se de um risco geral da vida que já não se enquadra no risco normal de utilização do bem, suportado pelo locatário.

A única controvérsia é saber se o juiz deve reduzir o valor do aluguel pela metade, distribuindo os custos da pandemia equitativamente entre os contratantes, já que o flagelo é um risco geral da vida que atinge a grande base do negócio e que deve, portanto, ser suportado em igual medida por ambas partes ou se a redução deve ser analisada caso a caso.

Enquanto vários tribunais de segunda instância entenderam que o aluguel deveria ser reduzido em 50%, a Corte infraconstitucional, Bundesgerichtshof (BGH), em julgado comentado nessa coluna, afirmou que não cabe uma solução padronizada, vale dizer, uma redução fifty-fifty da prestação, pois todas as circunstâncias do caso concreto devem ser ponderadas adequadamente.

Resumo da ópera

A partir das duas exposições, conclui-se que as comunidades jurídicas brasileira e alemã adotaram posturas diversas perante a pandemia.

Enquanto no Brasil houve intensa discussão sobre se os impactos da Covid-19 nos contratos autorizariam ou não a revisão, na Alemanha ninguém duvidou que a peste foi uma catástrofe que alterou profundamente as circunstâncias (base) de vários contratos, dificultando seu cumprimento nos termos inicialmente pactuados e que, por isso, os contratos deveriam ser reajustados sempre que o contratante prejudicado provasse a excessiva dificuldade de prestar e que, se tivesse antevisto a superveniência, teria celebrado o contrato sob outras condições. 

A exposição do Prof. Jan Dirk Harke nos convida a refletir acerca da real concepção da teoria da base do negócio, principalmente sobre o papel que a imprevisibilidade dos efeitos (alterações das circunstâncias) do fato superveniente exerce na análise dos pressupostos autorizadores da revisão contratual.

Afinal, a imprevisibilidade da alteração das circunstâncias não é irrelevante para a teoria da base do negócio, pois se as partes anteviram a superveniência e distribuíram seu risco no contrato, vale o pactuado. Mas esse elemento não assume papel central como na vetusta teoria da imprevisão, não positivada sequer em seu país de origem, com a nova redação do art. 1.195 do Code Napoleon, introduzida com a reforma de 2016.

Ouve-se com frequência, ainda, que o legislador brasileiro conhecia a teoria da base do negócio e não a positivou. Para além de questionável à partir de uma interpretação histórica do material legislativo, o argumento não se sustenta tendo em vista que a lei não é um produto pronto e acabado, mas precisa ser permanentemente aperfeiçoada e atualizada à nova realidade social pela doutrina e jurisprudência.

E aqui o direito alemão dá novamente um bom exemplo, pois, quando o legislador fechou as portas, o judiciário abriu, com cautela e prudência, as janelas para a revisão dos contratos, premido pela realidade dos fatos e pela necessidade de adaptar o direito aos novos tempos de instabilidade.

A seguir esse raciocínio, a jurisprudência brasileira estaria tolhida de fazer inúmeros avanços realizados no direito patrimonial e existencial nas últimas décadas. Com efeito, a própria concepção de obrigação como processo não poderia ser adotada no direito brasileiro, pois o Código Civil parte claramente da concepção romana estática de crédito-débito.

Não poderia haver o reconhecimento da responsabilidade pré-contratual, da responsabilidade pós-contratual, da violação positiva do contrato, nem do venire contra factum proprium, supressio e surrectio, pois o legislador não regulou os suportes fáticos e os efeitos jurídicos de nenhuma dessas figuras.

No campo existencial, os efeitos desse pensamento exegético seriam ainda mais catastróficos, pois ficariam sem tutela as múltiplas formas de famílias não previstas na Codex, nem se poderia reconhecer a autonomia do gênero não-binário e das uniões homoafetivas, porque o art. 1.514 CC e próprio art. 226 § 3º da CF1988 partem literalmente da união entre homem e mulher.

Dessa forma, não é a falta de previsão legal de um instituto jurídico que vai impedir seu reconhecimento doutrinário e jurisprudencial em pleno séc. 21, como bem o demonstra a robusta metodologia jurídica ocidental.

Aguarda-se, assim, com expectativa, como o STJ solucionará os pleitos de revisão dos contratos de locação comercial vez que o valor do aluguel não foi alterado com a pandemia e, portanto, sua redução não se deixa justificar nem pelo art. 317 CC, que exige manifesta desproporção das prestações, nem pelo art. 478 CC, que exige a onerosidade excessiva da prestação e extrema vantagem para a contraparte.

A Corte debate-se entre duas teorias deficientes: a da imprevisão (art. 317 CC) e da onerosidade excessiva (art. 478 CC), que não dialogam adequadamente entre si, vez que, enquanto uma manda readaptar, a outra manda extinguir um contrato, cuja prestação ainda pode ser executada, revelando a ineficiência econômica da solução.

Uma coisa é certa: o regime revisional dos arts. 317 e 478 não soluciona todas as hipóteses de alterações supervenientes das circunstâncias, como deixam claro os casos de frustração do fim do contrato e de excessiva dificuldade de prestar em decorrência da perda considerável de renda provocada pelas medidas de combate à pandemia.

É chegada a hora do STJ fazer uma análise dogmática das diversas teorias revisionistas existentes e corrigir a deficiência legal. E aqui deve-se recordar as sábias palavras da Min. Nancy Andrighi ao afirmar que a boa-fé é a regra cardinal da interpretação do negócio jurídico e que, por meio dela, pode-se fazer uma leitura humanizada da lei e trazer de volta o equilíbrio aos contratos.

“As leis e as instituições são como relógios: é preciso de tempos em tempos pará-las, limpá-las, inserir óleo e recolocá-las na hora certa. É tempo de parar e ajustar a doutrina e jurisprudência para que a prestação jurisdicional atenda, com efetividade, os anseios da sociedade.”. Sem dúvida!

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Colunista

Karina Nunes Fritz é doutora (summa cum laude) pela Humboldt Universität de Berlim (Alemanha). Prêmio Humboldt de melhor tese de doutorado na área de Direito Civil (2018). LL.M na Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Secretária-Geral da Deutsch-lusitanische Juristenvereinigung (Associação Luso-alemã de Juristas), sediada em Berlim. Diretora Científica da Revista do Instituto Brasileiro de Estudos sobre Responsabilidade Civil (IBERC). Foi pesquisadora-visitante no Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Alemão) e bolsista do Max-Planck Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Professora, Advogada e Consultora. Facebook: Karina Nunes Fritz. Instagram: @karinanfritz15