Gramatigalhas

Jus sanguinis ou jure sanguinis?

Jus sanguinis ou jure sanguinis? O professor esclarece.

27/10/2022
O leitor Felipe Ticom envia à coluna Gramatigalhas a seguinte mensagem:

"Prezado professor, há um tempo reconheci, na Itália, a minha segunda cidadania, com base no princípio jurídico resumido pelo brocardo jus sanguinis. Eis, pois, a fonte da minha dúvida: se o latim admite tanto o jus quanto o jure, o brocardo mais adequado à expressão 'direito de/pelo/em razão do sangue' seria jus sanguinis ou jure sanguinis? Obrigado!"

1) Um leitor indaga: se o latim admite tanto o jus quanto o jure, o brocardo mais adequado à expressão "direito de/pelo/em razão do sangue" é jus sanguinis ou jure sanguinis?

2) O leitor traz à baila o polêmico e tormentoso problema de variação das palavras e expressões latinas utilizadas em nosso idioma, para o que não há regramento específico emanado dos órgãos competentes, de modo que o que se tenta aqui é solucionar a questão por um raciocínio cientificamente correto, com o acompanhamento do bom-senso que deve nortear soluções dessa natureza.

3) Esclareça-se, desde logo, que, no latim, as palavras, além do gênero (masculino, feminino e neutro) e número (singular e plural), também têm os casos (o que significa que, conforme a função sintática, a palavra deve ir para um caso específico). E se anota, em acréscimo, que as terminações dos casos são diferentes para o singular e para o plural.

4) Além disso, deve-se partir do princípio de que palavras e expressões vindas do latim podem-se cristalizar em português de maneiras diversas: a) campus veio na forma do nominativo (caso latino que serve para desempenhar a função sintática de sujeito); b) quorum sedimentou-se aqui na forma do genitivo (caso que serve para exercer a função do antigo complemento restritivo, hoje adjunto adnominal na maioria dos casos); c) a quo veio na forma do ablativo por influência da preposição antecedente (caso que normalmente serve para desempenhar a função de complemento circunstancial, hoje adjunto adverbial); d) ad quem, de igual modo por influência da preposição antecedente, veio no acusativo (que normalmente serve para a função de objeto direto).

5) Como não é difícil compreender, essa cristalização do vocábulo estrangeiro em nosso idioma e seu emprego em estruturas sintáticas vernáculas ocorrem (i) sem preocupação de qual seja sua função sintática na oração em português e (ii) sem vínculo com a estrutura sintática do latim. Exs.: a) "O jus sanguinis serve para embasar determinadas decisões" (sujeito); b) "A decisão exigiu o jus sanguinis como embasamento" (objeto direto); c) "A decisão precisava do jus sanguinis para embasamento" (objeto indireto); d) "A solução é o jus sanguinis" (predicativo do sujeito); e) "A decisão de jus sanguinis é a melhor para esta questão" (adjunto adnominal); f) "A decisão foi dada pelo jus sanguinis" (agente da passiva).

6) Ora, se alguém quer levar em conta essa preocupação de qual seja a função sintática do vocábulo na oração em português e proceder à correspondente adaptação em latim, então os exemplos acima deverão obedecer à função sintática específica e aos respectivos casos em latim, inclusive já considerando a variação para os plurais (o que, como se verá, se mostra um verdadeiro pandemônio). Exs.: a) "O jus sanguinis serve para embasar determinadas decisões" (sujeito); b) "A decisão precisava de juri sanguinis para embasamento" (objeto indireto); c) "A decisão de juris sanguinis é a melhor para esta questão" (adjunto adnominal); d) "A decisão foi dada pelo jure sanguinis" (adjunto adverbial); e) "Os jura sanguinis servem para embasar determinadas decisões" (sujeito); f) "A decisão precisava dos juribus sanguinis para embasamento" (objeto indireto); g) "A decisão dos jurium sanguinis é a melhor para esta questão" (adjunto adnominal).

7) Ante esse quadro, com o devido respeito por aqueles que pensam de modo diverso, a melhor síntese e solução para o emprego das palavras e expressões latinas em nosso idioma, quer no singular, quer no plural, parecem obedecer aos seguintes parâmetros: a) as palavras estrangeiras não devem ter acentos gráficos, já que estes não existiam em latim (caso contrário se deveria escrever sânguinis, que é proparoxítona, e toda proparoxítona deve ser acentuada em português); b) as palavras ou expressões estrangeiras devem ser grafadas em itálico, negrito, com sublinha ou entre aspas, para diferenciar das palavras vernáculas; c) as palavras citadas devem desvincular-se de sua função sintática de origem para efeito de suas flexões em português, seja de gênero (masculino e feminino), seja de número (singular e plural); d) a pluralização em português deve dar-se pela forma tradicional em nosso idioma, a saber, mediante a adição de um s, com eventuais adaptações, como é o caso da mudança de m em ns (essa observação é desnecessária no caso, uma vez que jus já tem s.

8) Respondendo diretamente à indagação do leitor, a expressão deve ser jus sanguinis, tanto no singular, como no plural, já que foi essa a forma com que a expressão se cristalizou em nosso idioma. Seguem idêntico caminho outras expressões similares: jus puniendi, jus soli.

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Colunista

José Maria da Costa é graduado em Direito, Letras e Pedagogia. Primeiro colocado no concurso de ingresso da Magistratura paulista. Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ex-Professor de Língua Latina, de Português do Curso Anglo-Latino de São Paulo, de Linguagem Forense na Escola Paulista de Magistratura, de Direito Civil na Universidade de Ribeirão Preto e na ESA da OAB/SP. Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras Jurídicas. Sócio-fundador do escritório Abrahão Issa Neto e José Maria da Costa Sociedade de Advogados.