Em novembro de 2024, o presidente do Real Madrid Florentino Pérez anunciou que irá submeter aos associados proposta para que o futebol do Clube deixe de ser gerido como associação e passe a ser administrado por uma sociedade empresarial, uma SAD - Sociedad Anónima Deportiva, instrumento similar que inspirou o texto da lei da SAF brasileira.
Fundado em 1902, o Real Madrid consolidou-se ao longo do século XX e início do XXI como principal exemplo mundial de clube de futebol associativo bem-sucedido, seja pelas suas conquistas nas principais competições europeias e mundiais, seja pelo seu patrimônio ou pelos resultados financeiros. Mesmo adotando o modelo de associação, ou seja, entidade sem finalidade econômica e cujo poder é exercido pelos associados que elegem o presidente, dados sobre as finanças do Clube Merengue impressionam: em 2024, tornou-se o primeiro clube de futebol a ultrapassar € 1 bilhão de receita anual e sua marca é a mais valiosa do mundo dentre os clubes de futebol, atingindo a soma de US$ 6 bilhões.
Mesmo do alto do Olimpo, a direção atual do Real Madrid enxerga a necessidade de mudança do modelo associativo para o modelo empresarial, reconhecendo que a concorrência financeira ficou mais acirrada: clubes apoiados por fundos soberanos e bilionários (como Manchester City e PSG) inflacionaram investimentos em elenco e infraestrutura. Florentino Pérez diz acreditar que abrir o Real Madrid ao capital privado pode ser a única forma de seguir competindo com seus concorrentes europeus e vencê-los em campo, como acontece com frequência.
Financeiramente, a venda de uma fatia do futebol, mesmo que minoritária, traria uma injeção imediata de bilhões de euros, recursos para quitar dívidas de obras, como a reforma do seu estádio Santiago Bernabéu, além de reforçar o elenco e até expandir globalmente a marca. O Real Madrid, que já figura entre os clubes de maior receita do mundo, ganharia fôlego extra para investimentos de longo prazo sem depender apenas de receitas tradicionais - ingressos, direitos de transmissão e patrocínios.
Em resumo, manter-se no topo esportivo e comercial exige fontes adicionais de recursos, que não são possíveis para associações, mas sim para sociedades anônimas abertas ao recebimento de investimentos, em um cenário cada vez mais profissionalizado e globalizado.
A proposta de Pérez, apresentada na assembleia de novembro de 2024, prevê converter os sócios em acionistas e possibilitar aportes externos, mas garantindo que o Real Madrid “continue a pertencer aos seus associados”. Do ponto de vista jurídico, o Real Madrid adentraria um regime híbrido. A associação (entidade sem fins lucrativos) coexistiria com a SAD (empresa de capital privado). Contratos de transferência de jogadores, por exemplo, passariam a ser feitos via CNPJ da SAD, e não mais diretamente pela associação. A governança dual demandará acordos claros: o estatuto da SAD deverá definir quais poderes seguem nas mãos dos sócios (possivelmente uma golden share ou veto em decisões estratégicas) e quais ficam a cargo da empresa e seus acionistas minoritários. Direitos e obrigações diante das leis espanholas de sociedades anônimas também vigerão - desde a prestação de contas até a possibilidade de abertura de capital em bolsa futuramente.
Como só poderia ser, a mudança do modelo secular gera discussões e debates acalorados e somente será implementada se aprovada pelo corpo associativo. Estima-se que no mundo todo o Real Madrid possa chegar a ter 500 milhões de torcedores, que dão audiência às suas transmissões, consomem seus produtos, geram engajamento em suas redes sociais, ou seja, geram as receitas que sustentam o clube. Porém, a decisão sobre a mudança, assim como a eleição de dirigentes, é restrita a um número estimado em 100 mil associados locais com direito a voto.
Impossível não notar que todo o contexto que envolve a proposta de mudança do modelo de associação para o de sociedade anônima do Real Madrid dialoga profundamente com o momento das SAFs no Brasil. Desde a aprovação da lei da SAF em 2021, 117 clubes brasileiros optaram pelo modelo de sociedade anônima. Lá, como cá, também se está diante de um modelo associativo arraigado e secular, no qual todo o poder de decisão está concentrado nas mãos de, quando muito, milhares de associados, sem que a vontade de, muitas vezes, milhões de torcedores que sustentam as receitas do clube seja levada em consideração. Da mesma forma, a busca pelo modelo das sociedades anônimas – aqui, do futebol, e lá, deportiva – justifica-se pela busca de novos recursos, novos investimentos, que poderão advir pela compra de ações da companhia, o que não é possível nos clubes associativos, que não têm seu capital dividido em ações que podem ser vendidas.
Uma diferença fundamental está no fato de o Real Madrid ser o paradigma do modelo associativo com sucesso esportivo e financeiro, ao passo que, no Brasil, muitos clubes recorreram à SAF como única e última alternativa para o enfrentamento de situação financeira gravíssima com reflexos claros nos resultados de campo. E, como tal, o Real Madrid propõe o modelo por meio do qual o clube associativo ainda exerceria o comando da gestão, ao passo que, até ironicamente, alguns clubes brasileiros que estão muito perto do estado de calamidade total ainda cogitam a hipótese de constituir a SAF mantendo o controle da gestão nas mãos dos dirigentes da associação, acreditando, quase que ingenuamente, que algum investidor irá aportar recursos para que aqueles que “faliram” o clube continuem a comandá-lo.
Fora do mundo dos sonhos, a realidade predominante é outra. Nas SAFs brasileiras, daquelas mais conhecidas, houve realmente a ruptura completa do controle associativo tradicional, com investidores condicionando a compra de ações e o aporte dos recursos “salvadores” para pagamento das dívidas e manutenção dos custos do futebol do clube à aquisição de participações majoritárias, de 70% a 90% das ações, e ao exercício do controle efetivo da gestão ratificado nos acordos de acionistas.
A lei da SAF brasileira reconheceu a força irresistível do mercado. Se a associação pretende constituir SAF e se manter no controle da gestão, que seja uma associação bem-sucedida, especialmente do ponto de vista das finanças e receba o aporte financeiro como forma de aumentar sua capacidade de investir e melhorar os resultados esportivos. O Real Madrid, ao que parece, pode fazer essa exigência. Alguns pouquíssimos clubes brasileiros também poderiam. A maioria, certamente, não.
Dos maiores clubes de futebol do mundo, apenas 3 (Real Madrid, Barcelona e Flamengo) ainda se mantêm no modelo associativo e os merengues, com toda Justiça, sempre foram apontados como modelo associativo de sucesso. A proposta de constituição da Sociedad Anónima Deportiva no Real Madrid representa, sem dúvida, uma quebra de paradigma relevantíssima no contexto da discussão sobre o melhor modelo para gestão de futebol e mostra que sua direção não se acomodou nos “píncaros da glória” e sabe que mudar também é um meio de se manter no topo.
Serve de exemplo para muitos clubes no Brasil, tanto para aqueles que acreditam que “como que por milagre” aparecerá a salvação de uma situação absolutamente calamitosa, quanto para os clubes de futebol brasileiros do modelo associativo que têm tido sucesso esportivo e financeiro nos últimos anos, mas que ainda têm muito espaço para evoluir e conquistar protagonismo mundial.