As falas de Emerson Leão e Oswaldo de Oliveira em evento realizado na CBF1 sintetizam, sob ângulos distintos, a posição de uma classe; ou, ao menos, a posição de parcela (numerosa) da classe, preterida ou ameaçada pelo influxo de treinadores estrangeiros.
Para além da inoportunidade e da deselegância, que motivaram reações institucionais, jornalísticas e pessoais, as falas podem ser definidas como espécie de defesa intempestiva de uma situação irreversível, causada pelos principais interessados que, até pouco tempo, dividiam determinado mercado de trabalho - e não perceberam as transformações que ocorriam no seu próprio ambiente.
Por tais características, não deveriam surpreender - exceto, como já dito, pelo momento da externalização.
Posicionamentos dessa natureza ocorrem, aliás, com frequência, em planos diversos, como o econômico, o político e, claro, o esportivo, quando algum interesse é ameaçado por novos interessados ou (simplesmente) pelo avanço de técnicas ou tecnologias dominadas pelos entrantes.
A reação, individual ou coletiva - neste caso, por via associativa ou pela formação de agrupamentos não formais -, consiste, ora com argumentos defensivos, ora agressivos, em ato de sobrevivência. Sobrevivência, não raro, sem mudança estrutural, por conta de comodidade ou de custos de investimento e treinamento.
Quando o debate envolve, por exemplo, interesse de Estado, o próprio interessado poderá (ou deverá) prover meios, econômicos ou legislativos, para que agentes privados nacionais se situem no tabuleiro geopolítico, conforme política estabelecida; ou, a depender da relevância estratégica, intervir, direta ou indiretamente, no setor, para assegurar o alcance de políticas estatais (ou governamentais).
O interesse poderá, por outro lado, envolver a desconstrução de estruturas de atraso, impeditivas de adequada concorrência, de melhor atendimento à população ou a consumidores e, não menos importante, de desenvolvimento setorial ou tecnológico. As chamadas aberturas de mercado, de modo geral, intencionam tais resultados.
Apesar da relevância que o futebol tem para o país, o Estado, não o interventor, mas o regulador, jamais o viu como parte de sua estratégia de desenvolvimento interno – social e econômico – ou de afirmação externa (soft power), da forma como os Estados Unidos da América fizeram com o cinema hollywoodiano e seus produtos descartáveis, os italianos com as suas cantinas e pizzarias espalhadas pelo mundo e os sul-coreanos com o k-pop.
Decorre daí, desse desprezo estatal, em grande parte, o individualismo que norteia a indústria futebolística e que provoca o atual atraso estrutural, revelado nas manifestações de Emerson Leão e Oswaldo de Oliveira.
Não se trata, portanto, de ato isolado ou eventual. Expressa preocupação com mudanças, mesmo que sem planejamento, das estruturas dominantes; mas que, apesar da impropriedade de meio e de forma, também desnuda um potencial problema: o influxo desordenado e, eventualmente, inaderente à realidade local, que procura apenas trabalho, e não a transformação ambiental e social.
Nesse contexto, a contratação de Carlos Ancelotti talvez tenha sido um acerto histórico e necessário para o reposicionamento do futebol brasileiro, local e exteriormente. E poderia (ou deveria) contribuir para a introdução do tema da função social e econômica do futebol, na sociedade, e, assim, viabilizar um debate de qualidade em benefício da coletividade – torcedores, investidores, patrocinadores, transmissores etc.
Todo esse caldo se aproveita em outro espaço, ainda mais importante, pois de natureza estrutural e existencial, que integra, porém, o mesmo sistema: a SAF.
A lei da SAF, de autoria do Senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG) pode ser (ou deverá ser) a resposta para clubes - e dirigentes - que precisam de soluções para problemas de estrutura ou de conjuntura; mas também pode ser vista como ameaça para quem se preocupa com posição e interesse, grupal ou pessoal.
Foi assim, desde o seu advento. Clubes desesperados aderiram com rapidez, formando a primeira onda de SAF. Logo vieram os clubes que, apesar de suas dificuldades, puderam aguardar momento futuro para encaminhamento de projetos, compondo a segunda onda.
E quando se imaginava que viria a terceira onda, integrada pelos clubes mais sólidos ou de maior torcida, para evitar o encurtamento da distância em relação às SAFs da primeira e segunda ondas, eis que o reacionarismo (ou os interesses conflitantes) obstaculizam a movimentação, de modo geral, com argumentos retrógrados comparáveis aos da dupla de treinadores.
Tais dirigentes não percebem, ou melhor, percebem e pretendem mascarar, ou, pior, acreditam que mascaram, ora a prevalência de projetos políticos e de dominação, em detrimento do interesse de times e de torcedores, ora a redução de patamar de seus clubes, que perderam a oportunidade de inaugurar a terceira onda e se colocaram como repetidores tardios da primeira e segunda ondas.
Ao invés, assim, de enfrentamento da realidade, que pode ser mais feia do que se apresenta, tenta-se, com argumentos reacionários ou propagandísticos, justificar a prevalência de um modelo associativo incompatível com os desafios existentes.
Pior: projeta-se uma realidade virtual, consistente no suposto trabalho de recuperação de protagonismo, sem recursos financeiros e humanos.
A SAF, enfim, não é e não será uma solução em si, mas, exceto em um ou, no máximo, dois casos no país, já consiste em condição necessária para o evitamento de tragédias anunciadas.
Resta saber se há, como acontece no mercado de treinadores, agentes estrangeiros, de qualidade, interessados em mercado incipiente e ainda hostil.