Migalha Trabalhista

O trabalho sob demanda por aplicativos e os direitos sociais na pandemia da covid-19

O trabalho sob demanda por aplicativos e os direitos sociais na pandemia da covid-19

25/2/2022

O trabalho intermediado pelas plataformas digitais cresceu nos últimos anos com as empresas de economia colaborativa de compartilhamento de serviços. Ao intermediarem as relações entre prestadores de serviços e consumidores finais, o modelo de relação trabalhista usado é o contrato de adesão, no qual o prestador de serviços não se enquadra como empregado, mas como prestador de serviços autônomos.

Porém, a classificação conferida a esses trabalhadores não corresponde à realidade vivenciada. Verifica-se a precariedade dessas condições de trabalho, já que a ausência de regulamentação legislativa específica do trabalho sob demanda por meio de aplicativos deixa tais profissionais em uma zona “cinzenta” em face das tradicionais categorias do direito do Trabalho, restando até o momento ao Poder Judiciário a solução desse impasse.

Com a pandemia de covid-19, as condições desfavoráveis de prestação de serviços através das plataformas digitais são evidências da inexistência de garantias mínimas de direitos sociais, apesar desses trabalhadores serem cada vez mais essenciais à sociedade.

A nosso ver o avanço tecnológico beneficia a sociedade como um todo, embora parte dos trabalhadores sejam prejudicados. Por isso, há a necessidade de usar as tecnologias como aliadas como bem preceitua a nova declaração sobre direitos e princípios digitais da comissão europeia que visa dotar todos os cidadãos de um ponto de referência sobre o tipo de transformação digital que a Europa defende visando o respeito dos direitos dos cidadãos relativas às questões on line.

Em razão da crise socioeconômica e índices de desemprego nunca registrados, o número de entregadores aumentou consideravelmente, consolidando a informalidade como única alternativa de sobrevivência para esses profissionais. Ocorre que, apesar das paralisações efetuadas, conhecidas como “breques dos aplicativos” as reivindicações não foram atendidas, como narra um entregador de aplicativo que efetua entregas há mais de quinze anos, mencionando que: “fizemos a paralisação e os caras não cederam em nada. As taxas estão cada vez piores. Esses dias peguei uma corrida por R$ 3,60 para andar um raio enorme. Está pior do que já estava. Fica quem não tem outra opção. A gasolina aumenta, mas as taxas não”1.

A superexploração desses trabalhadores e a exposição constante de contaminação fizeram com que os entregadores continuassem enfrentando condições de trabalho tão ou mais precárias do que no início da primeira onda da pandemia. Como as reivindicações efetuadas não tiveram o efeito de alterar o modus operandi do trabalho desses profissionais, foi promulgada a lei 14.297/22, visando à proteção dos entregadores que trabalham por meio de aplicativos durante a pandemia de covid-19. Porém, destaca-se o caráter temporário da legislação, e, mais, que essas medidas de proteção asseguradas ao entregador nesse período realmente não protegem todo e qualquer trabalhador sob demanda via aplicativo, mas apenas os entregadores que prestam serviços via plataformas digitais.

As medidas previstas visam a higidez do meio ambiente laboral buscando a sadia qualidade de vida e segurança do trabalhador, compreendendo: (i) indenização em caso de acidente; (ii) o dever de assistência da empresa de aplicativo de entrega em razão do afastamento do entregador devido à infecção pelo coronavírus, prevendo assistência financeira pelo período de 15 dias, podendo ser prorrogado por mais dois períodos de 15 dias, mediante apresentação do comprovante ou do laudo médico que justifique o afastamento do entregador, cujo auxílio deve ser calculado de acordo com a média dos três últimos pagamentos mensais recebidos pelo entregador.

Além disso, pela função social da empresa de aplicativo, deve ser fornecido ao entregador informações sobre os riscos do coronavírus e cuidados necessários para se prevenir do contágio e evitar a disseminação da doença. E, de igual sorte, a empresa fornecedora do produto ou do serviço deverá permitir que o entregador utilize as instalações sanitárias de seu estabelecimento, bem como garantir acesso do entregador ao consumo de água potável2.

Embora a lei tenha sido extremamente benéfica, esta não supre as necessidades dos trabalhadores que precisam de proteção contínua. A CF/88 estabelece, em seu art. 7° inciso XXII, que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria da sua condição social, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

Nessa perspectiva, verifica-se que os entregadores não recebem o mesmo tratamento conferido aos empregados, tendo em vista não estarem enquadrados nessa categoria ao prestarem serviços por meio das plataformas digitais. Cita-se como exemplo, o trabalho desses profissionais durante enchentes, sendo negligenciados pelas empresas de delivery.

Ao contrário da cidade de Nova York que editou um conjunto de leis para garantir e melhorar as condições de trabalho de forma perene, além de estabelecer pagamentos mínimos para entregadores de aplicativos de delivery, e na Espanha com a edição da lei rider, no Brasil a proteção desses trabalhadores deveria ser, igualmente, em caráter definitivo, sob pena de afronta aos direitos sociais e de personalidade desses trabalhadores.

Dentre as garantias previstas pela legislação de Nova York estão uma série de prerrogativas que dão maior escolha e flexibilidade aos entregadores. Por exemplo, poderão escolher uma distância máxima por viagem e vetar trajetos que passem por pontes ou túneis.

Além disso, os aplicativos de alimentos não podem mais cobrar dos entregadores os custos financeiros dos repasses, que devem ser feitos pelo menos uma vez por semana; é preciso que os aplicativos informem previamente o tempo de viagem, local de retirada e de entrega dos serviços; há expressa impossibilidade de cobrança dos entregadores por sacolas térmicas; prévia estipulação em contrato efetuado entre os aplicativos e restaurantes de cláusulas estabelecendo que entregadores podem utilizar o banheiro do local em que estiverem entregando comida; as compensações de trabalho, incluindo gorjetas, têm que ser notificadas aos trabalhadores, diariamente; e, por fim, a lei estabelece, ainda, que autoridades públicas realizem estudo de mercado de delivery e estabeleçam uma remuneração mínima aos trabalhadores.

A formalização dessas relações de trabalho prestado a todos que atuam na economia compartilhada deve ser prioridade governamental já que estas pessoas estão colocando suas vidas em risco, ganhando muito pouco e trabalhando intensamente, em uma lógica cada vez mais precária e concorrencial entre si.

De qualquer modo, empresas de plataforma começam a promover melhorias para seus colaboradores. Por exemplo, a empresa iFood vem desenvolvendo uma série de ações para melhorar seus ganhos. Por isso, a fim de minimizar o impacto do custo dos combustíveis para os entregadores, a iFood criou um fundo temporário de R$ 8 milhões. Outra medida adotada pela empresa é o Delivery Vantagens. Este programa oferece pacotes com descontos em serviços de manutenção de motos, como troca de óleo, pneus e conserto, vantagens na compra de alimentos e materiais de educação, além de assistência médica e odontológica a preços subsidiados. Além disso, no final de dezembro, aconteceu o 1º Fórum de Entregadores do Brasil. A iniciativa reuniu o iFood e 23 representantes da categoria. Durante três dias, foram definidas prioridades e estabelecidos compromissos perante os entregadores na busca de melhorias das relações com os entregadores3.

Assim, enquanto o direito do trabalho tenta se adaptar às novas necessidades do mercado, equilibrando o princípio da livre iniciativa com os valores sociais do trabalho, a ausência de qualquer proteção jurídica dá ensejo a abusos por parte dos aplicativos do seu poderio econômico, explorando a mão de obra dessa atividade que hoje é tida como essencial. Por outro lado, em arremate, as plataformas estão conscientizando-se e buscando garantir melhores condições de vida a esses trabalhadores enquanto se aguarda um posicionamento estatal a proteger esses trabalhadores.

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Um ano de pandemia: entregadores de aplicativo relatam piora em condições de trabalho. Disponível aqui

2 Lei 14.297/22. Disponível aqui.

3 IFood desenvolve ações para melhorar os ganhos dos entregadores parceiros. Disponível aqui.

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Colunista

Ricardo Calcini é professor, advogado, parecerista e consultor trabalhista. Estratégica, atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs, TST e STF). Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/SP. Pós-Graduado em Direito Processual Civil (EPM TJ/SP) e em Direito Social (Mackenzie). Professor Convidado de Cursos Jurídicos e de Pós-Graduação (FADI, ESA, IEPREV, Católica de SC, PUC/PR, PUC/RS, Ibmec/RJ, FDV e USP/RP). Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Professor indicado pela Câmara dos Deputados para presidir o grupo de estudos técnicos para a elaboração do PL 5.581/2020 acerca do Teletrabalho. Coordenador Acadêmico do projeto "Migalha Trabalhista" (Migalhas). Palestrante e Instrutor de eventos corporativos pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe. Autor do livro "Prática Trabalhista nos Tribunais: TRT's e TST". Coautor dos livros "Execução Trabalhista na Prática" (2ª Edição) e "Manual de Direito Processual Trabalhista". Organizador das obras coletivas "CLT Comentada: Artigo por Artigo" – Mizuno (2ª Edição), "Estratégias da Advocacia no TST", "ESG – A Referência da Responsabilidade Social Empresarial", "Prática de Processo de Trabalho: Técnica Visual Law", "Reflexões Jurídicas Contemporâneas: Estudos em homenagem ao Ministro Douglas Alencar Rodrigues", "Relações Trabalhista e Sindicais – Teoria e Prática" (2ª Edição), "LGPD e Compliance Trabalhista" e "Reforma Trabalhista na Prática: Anotada e Comentada" (2ª Edição). Coordenador do livro digital "Nova Reforma Trabalhista" (Editora ESA OAB/SP, 2020). Coordenador dos livros "Perguntas e Respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista" (Editora LTr) e "Reforma Trabalhista: Primeiras Impressões" (Editora Eduepb). Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (GETRAB-USP), do GEDTRAB-FDRP/USP e da CIELO LABORAL. Contatos: Instagram ricardo_calcini | Website www.ricardocalcini.com.br