Migalhas das Civilistas

A doação de órgãos, após a morte, independentemente da objeção familiar: Como deve ser regulada?

O texto trata de uma crítica fundamentada ao PL 4/25, que propõe uma ampla e apressada reforma do Código Civil brasileiro.

21/7/2025

O Código Civil brasileiro, lei 10.406/02, regra geral do cidadão, determina no art. 13, parágrafo único, que a doação de órgãos será regulada na forma estabelecida em lei especial, no caso, a Lei de Transplantes de Órgãos, lei 9.434/1997. Diga-se: em perfeita técnica legislativa, em atenção ao princípio geral de direito,  a regra especial prevalece sobre a regra geral.

A regra especial determina, no art. 4º, que “a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente (...)”. Assim, para garantir a validade da doação de órgãos, após a morte do doador, independente da objeção familiar, é o artigo 4º da Lei de Transplantes de Órgãos que deve ser alterado, e não o artigo 13 do Código Civil.

Considerando esse contexto normativo, dois aspectos causam estranheza: 1) a afirmativa do Presidente da Comissão que elaborou o PL 4/25, ministro Luís Fernando Salomão, de que o Código Civil Brasileiro (regra geral) deve ser alterado para garantir a validade da doação de órgãos após a morte do doador, a despeito da oposição da família, fato que está regulado na regra especial);  e 2) o fato de o PL 4/2025, feito para alterar o Código Civil, em nada alterar o artigo 13 do Código  quanto à necessidade da regulação por regra especial. Aquele Projeto de Lei apenas propõe alterações de linguagem (algumas discutíveis), aparentemente destituídas de propósito.  Então, pergunta-se: qual é a justificativa para a alteração proposta?

Esta pergunta, assim como centenas de outras, está sem resposta. O PL 4/25 propõe profundas alterações em mais da metade do Código Civil, alterando cerca de 1.200 dos seus 2.046 artigos, além do acréscimo de um novo livro, denominado de Direito Digital. O intento de escrever um novo Código Civil de forma açodada, com apenas 120 dias de tramitação na Comissão elaboradora já seria preocupante e inadequado por si. Quando o resultado é um texto recheado de impropriedades técnicas, conceituais, de conteúdo e de linguagem, trata-se de uma temeridade que afeta a segurança jurídica e opera mudanças insustentáveis no sistema de Direito Privado brasileiro.

Como se não bastasse, o PL tramita a passos largos no Senado Federal, sob a relatoria do Senador Rodrigo Pacheco, apesar de ser flagrante a rejeição, exemplificada nos comentários escritos no espaço “Opine sobre esta matéria” do próprio Senado e externada em dezenas de textos doutrinários e em manifestações realizadas por entidades jurídicas. A certeza do Senador Pacheco de que o PL será aprovado sem a devida discussão e reflexão que merece é declarada: “a tendência é que o PL passe sem grandes aventuras e emoções”. Afirmativa foi publicada pelos jornalistas Thais Bilink e José Roberto de Toleto, no Podcast A Hora, #40. 

Talvez por isso, pela imperita pressa, a Comissão tenha olvidado de prevalecer a regra especial sobre a regra geral quando ambas tratam da mesma matéria, princípio geral de direito positivado na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), artigo 2º, § 2o. Este é um princípio essencial para a correta interpretação e aplicação do Direito, orientando a técnica legislativa para a regulação de fatos jurídicos relacionados a uma mesma matéria.

Logo, o correto seria promover a alteração do artigo 4º da Lei de Transplantes de Órgãos, validando os efeitos da manifestação de vontade do doador depois da sua morte, independentemente da outorga familiar. Para além de ser o correto, este é o caminho que, certamente, virá ao encontro da demanda social em prol da doação de órgãos.

O que não podemos aceitar são falsos argumentos para justificar a alteração irrefletida do Código Civil Brasileiro – a lei geral mais importante no ordenamento jurídico para a garantia de direitos e a previsão de deveres de todos nós, em prol da autonomia, do respeito à personalidade e do exercício da cidadania.

O mínimo que a sociedade brasileira espera do Senado Federal é que o PL 4/25 observe e esteja atento às sérias críticas que sofre; dialogue com todos os setores da sociedade, juristas e entidades representativas do sistema de justiça e estabeleça um processo de legiferarão responsável, transparente e que não incida na notória frase de John Godfrey Saxe (1869): "Leis, como salsichas, deixam de inspirar respeito na proporção em que sabemos como são feitas."

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Colunistas

Flávia Alessandra Naves Silva Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Diretora de Diversidade de As Civilistas. Vice-coordenadora da Comissão Nacional de Pesquisas do IBDFAM - Núcleo Sul/Sudeste. Advogada. Professora em cursos de graduação e pós-graduação.

Joyceane Bezerra de Menezes Doutora em Direito pela UFPE. Professora Titular da Unifor e da UFC. Presidente da Associação As Civilistas.

Maria Celina Bodin de Moraes Professora Titular (aposentada) de Direito Civil da PUC-Rio e da UERJ. Editora da Revista eletrônica civilistica.com. Civilista emérita na Associação As Civilistas.

Maria Cristina De Cicco Professora da Università degli Studi di Camerino (Itália). Doutora em Direito pela Università di Camerino. 2ª Vice-presidente e Civilista emérita da Associação As Civilistas.

Silvia Felipe Marzagão Mestre em Direito pela PUC/SP. Presidente da Comissão Especial da Advocacia de Família e Sucessões e Ouvidora da Mulher Advogada da OAB/SP. 1ª Vice-Presidente da Associação As Civilistas.

Thaís Sêco Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Doutora em Direito pela UFMG. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Conselheira Executiva da Associação As Civilistas.