O Brasil tem sido amplamente reconhecido, desde 1958, como o “País do Futebol”, título impulsionado pelas cinco conquistas da Copa do Mundo FIFA. Para estudiosos, o futebol integra, ao lado da religião católica e do samba, o núcleo das manifestações culturais brasileiras, expressando valores, emoções e a história do país1. A tradição esportiva consolidou o Brasil como “fábrica de talentos”, estimulando clubes a investir na formação de atletas e renovar elencos, mantendo a competitividade esportiva e a atratividade do espetáculo.
No entanto, ao lado da reconhecida tradição futebolística do Brasil, há um aspecto menos louvável que também acompanha a reputação do país: o recorrente amadorismo na forma como se planeja e conduz a gestão esportiva, tanto em nível amador quanto profissional. O Futebol movimenta receitas expressivas e demanda altos custos, sendo grande parte destinada a salários, direitos de imagem, encargos e demais funções essenciais ao clube2. Some-se a isso indenizações, rescisões e litígios trabalhistas, que frequentemente só se materializam anos depois, distorcendo o real quadro financeiro.
A perpetuação do amadorismo na gestão administrativa e financeira das agremiações contribuiu significativamente para a perda de investimentos e o agravamento das crises institucionais. Esse cenário foi marcado por financiamentos onerosos, parcelamentos fiscais descumpridos e passivos trabalhistas crescentes. Conforme estudos da Sports Value, agência especializada na análise da realidade financeira dos clubes de futebol, a prioridade dada a resultados imediatos favorece à adoção de práticas financeiras insustentáveis, desprovidas de planejamento estratégico, acumulando dívidas de difícil solução3.
Diante desse cenário, o presente artigo tem como objetivo analisar o impacto das más administrações no futebol e o agravamento da crise financeira ocasionado pela pandemia de Covid-19. A partir dessa análise, busca-se fomentar a discussão acerca dos mecanismos de reconstrução que as instituições de futebol podem adotar, com fundamento na lei das Sociedades Anônimas do Futebol. Assim, pelo método dedutivo, pretende-se contribuir para a construção de uma base interpretativa que inspire e oriente a reestruturação de clubes em situação de dificuldades financeiras no Brasil.
Os clubes de futebol figuram entre os agentes econômicos mais vulneráveis à insolvência devido ao elevado endividamento. Em 2017, levantamento do Globo Esporte apontou que as 21 principais equipes do Campeonato Brasileiro acumulavam cerca de R$ 6,78 bilhões em dívidas trabalhistas, fiscais e bancárias, sendo rés em 3.037 processos judiciais4. Entretanto, o endividamento dos clubes no futebol brasileiro foi agravado especialmente durante a pandemia de Covid-19, em 2020.
O surto global de coronavírus impactou severamente a economia brasileira. A paralisação de atividades e o elevado número de mortes diárias reduziram drasticamente a demanda por bens e serviços, levando à insolvência e ao fechamento de inúmeras empresas5.
Dessa maneira, a longa trajetória de dificuldades financeiras enfrentadas há décadas pelos clubes foi significativamente intensificada pelos impactos da pandemia de Covid-19. O colapso financeiro decorreu da redução das receitas, sobretudo pela impossibilidade de explorar fontes tradicionais de arrecadação, como a venda de ingressos e a queda no número de adesões ao programa de sócios-torcedores, assim como a suspensão nos valores recebidos de patrocínios e contratos publicitários em razão da retração do mercado6.
Com o objetivo de promover maior profissionalização e amortizar as dívidas dos clubes, a lei 14.193/2021 institucionalizou um novo modelo societário: a Sociedade Anônima de Futebol. A “SAF” foi criada com todas as características de uma S.A. tradicional7, tendo uma finalidade essencialmente empresarial, mas mantendo vinculação intríseca à administração do futebol. A nova legislação buscou introduzir nas organizações esportivas o sistema de gestão, governança e transparência característicos do ambiente corporativo.
Ao ser analisado à luz da lei 14.193/2021 e dos princípios que regem o Direito Empresarial, a SAF revela-se não apenas como um instrumento capaz de atrair novos investimentos, mas também como uma fonte de esperança para os credores dos clubes brasileiros. Isso porque, esse regime societário, por imposição legal, assume obrigatoriamente as dívidas vinculadas às atividades que se relacionam diretamente com o objeto social da associação, estabelecendo um novo paradigma de responsabilidade e gestão financeira no âmbito esportivo.
Ao incorporar a estrutura empresarial da S.A, prevista na lei 6.404/76, a Sociedade Anônima do Futebol instituiu um regime de administração diferenciado, caracterizado pela exigência de regras claras de governança corporativa e boas práticas. Entre as obrigações previstas, destacam-se, a manutenção permanente do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal (art. 5º), e a divulgação, em sítio eletrônico de acesso público, das atas de assembleias e dos relatórios da administração (art. 8º).
Nesse contexto, ao se afastar dos padrões historicamente marcados pela má gestão e pela desorganização das associações, a SAF viabiliza a captação de recursos junto ao mercado, permitindo o financiamento de suas atividades operacionais, a realização de investimentos estruturais e a quitação de seus passivos. A adoção do modelo empresarial confere aos clubes uma estrutura mais sólida e transparente, facultando o acesso a mecanismos formais de reestruturação financeira, como a inserção no mercado de capitais, especialmente por meio da emissão de debêntures.
A lei 6.404/76 já previa expressamente a possibilidade de ofertas de debêntures como instrumento de captação de recursos pelas companhias. Com a adoção da SAF, as agremiações passam a contar com a possibilidade de emitir debêntures-fut, uma modalidade específica voltada ao financiamento da atividade futebolística. Essa ferramenta representa uma alternativa relevante para a obtenção de capital, permitindo que o clube amplie sua capacidade de investimento.
O mercado de capitais se compõe daqueles que precisam captar recursos e dos que possuem recursos a oferecer8. Nesse sentido, conforme observa a doutrina9, a função econômica primordial do mercado de capitais consiste em possibilitar que as sociedades empresárias, por meio da emissão pública de seus valores mobiliários, captem recursos não exigíveis, destinados ao financiamento de projetos ou à reestruturação e prorrogação do prazo de suas dívidas.
Entre os instrumentos disponíveis para essa finalidade, destaca-se a emissão de debêntures, que permite a captação de recursos sem a necessidade de aumento do capital social ou da admissão de novos acionistas. Como explica Tavares Borba10, as debêntures são títulos que conferem aos seus titulares um direito de crédito contra a própria companhia, observadas as condições estabelecidas na escritura de emissão e, se for o caso, no certificado.
A finalidade econômica da debênture consiste na possibilidade de viabilizar o financiamento da companhia emissora por meio da contratação de empréstimos. Essa captação pode ocorrer de forma privada, direcionada a um grupo restrito de investidores, ou por meio de oferta pública voltada ao mercado de capitais, com amplo alcance. Trata-se de uma alternativa eficiente de captação de recursos, que reduz a dependência de crédito bancário, usualmente onerado por taxas de juros elevadas.
Nesse contexto, a lei 14.193/21, disciplina de forma específica a emissão das chamadas debêntures-fut, um tipo especial de valor mobiliário cuja promoção é restrita exclusivamente às sociedades organizadas sob a forma de SAF. Nos termos do art. 26 da referida norma, essas debêntures devem possuir prazo igual ou superior a dois anos e oferecer remuneração com taxa de juros não inferior ao rendimento anual da caderneta de poupança.
A debênture-fut, por ser uma espécie de debênture, deve atender às disposições da lei 14.193/21 e, de forma supletiva, às normas da lei das sociedades por ações (lei 6.404/1976), quando compatíveis com o regime especial da SAF. Além disso, nos casos em que essas debêntures forem ofertadas publicamente ou admitidas à negociação nos mercados de valores mobiliários, a sociedade emissora deverá observar integralmente a regulamentação expedida pela CVM - Comissão de Valores Mobiliários, aplicável às debêntures em geral (CVM 41).
Sob esse enfoque, em 27/9/24, o Clube Atlético Mineiro, por intermédio de sua Sociedade Anônima do Futebol, tornou-se o primeiro clube-empresa do Brasil a realizar uma emissão de debêntures. A operação, registrada junto à CVM - Comissão de Valores Mobiliários, visou à captação de R$105 milhões e representou um marco histórico no processo de modernização da gestão financeira dos times de futebol11. A iniciativa ilustra a crescente adoção de instrumentos do mercado de capitais como alternativa às formas tradicionais de financiamento, especialmente o crédito bancário.
No caso específico do Atlético Mineiro, as debêntures-fut foram utilizadas como ferramenta estratégica para fortalecer a estrutura financeira da entidade sem comprometer seu controle operacional. O objetivo principal da captação foi o reperfilamento da dívida existente, ou seja, a reestruturação dos passivos financeiros, mediante a renegociação de prazos e condições, a fim de torná-los compatíveis com a capacidade de pagamento da instituição. Em termos práticos, tratou-se da substituição de empréstimos bancários vencíveis por uma nova dívida de igual valor, porém com condições mais favoráveis ao equilíbrio econômico-financeiro.
A emissão de debêntures não apenas reforça a confiança do mercado no modelo da SAF, como também consolida uma referência positiva que pode ser replicada por outros clubes, interessados em adotar mecanismos de financiamento mais sustentáveis e alinhados às boas práticas de governança corporativa.
Em síntese conclusiva, destaca-se que, diante do cenário de crise econômica e administrativa enfrentado pelos clubes, a promulgação da lei 14.193/21 foi um marco significativo para o Brasil, introduzindo instrumentos jurídicos capazes de auxiliar na reestruturação das entidades esportivas.
A possibilidade de constituição das Sociedades Anônimas do Futebol e sua inserção no mercado de capitais, de forma juridicamente segura, tem se revelado uma alternativa economicamente vantajosa para a captação de recursos, especialmente em comparação aos tradicionais empréstimos bancários. As exigências de governança, transparência e prestação de contas impostas por esse modelo, contribuem para atrair um número crescente de investidores, especialmente sob a forma de fundos de investimento.
A adoção de instrumentos como a emissão de debêntures-fut, representa um importante marco para a estabilidade financeira das agremiações, e consequentemente, amplia a chance de quitação de suas dívidas e de superação da crise. Entretanto, é essencial que essas ferramentas sejam compreendidas como dispositivos excepcionais de reequilíbrio e não como meio de incentivo à perpetuação de gestões ineficientes.
Entende-se, portanto, que as más administrações e a ausência de planejamento das gestões, intensificadas pela pandemia da Covid-19, conduziram os clubes ao colapso financeiro. Nesse contexto, a lei das Sociedades Anônimas do Futebol, tornou-se uma ferramenta jurídica essencial para a continuidade das atividades dessas entidades, possibilitando a reestruturação administrativa e o adimplemento de suas obrigações financeiras.
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1 CALDAS, Waldenir. O futebol no país do futebol. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 6, p. 5-17, dez. 1986.
2 SANTOS, Edmilson Rodrigues dos; BOTINHA, Reiner Alves; TAROCCO FILHO, José; MARQUES, Silvio Aalves. Endividamento nas entidades desportivas: uma análise das características dos clubes da série “A” da CBF. Contabilometria – Brazilian Journal of Quantitative Methods Applied to Accounting, Monte Carmelo, v. 7, n. 1, p. 1-14, jan./jun. 2020. p. 1-14.
3 SOMOGGI, Amir. Finanças dos clubes brasileiros em 2019. São Paulo: Sports Value, maio 2020. Disponível aqui. Acesso em: 06 out. 2025.
4 MUNDIM, Daniel. Peso do atraso: clubes registram R$ 2 bi em dívidas trabalhistas e 3 mil processos. Globo Esporte, 18 ago. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 06 out. 2025.
5 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Estudo evidencia o impacto devastador da pandemia para micro e pequenas empresas. IPEA, Brasília, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 06 out. 2025.
6 MANTUANO, Marina. O sócio-torcedor é mais uma vítima do coronavírus. Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte – LEME, [s.l.], 04 ago. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 06 out. 2025.
7 FALEIROS, José Luiz de Moura. Sociedades Anônimas do Futebol e compliance criminal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2023, passim.
8 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2024. E-book.
9 EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariadna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas. Mercado de capitais: regime jurídico. 4. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019. E-book.
10 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2024. E-book.
11 DANIEL, Bruno. Atlético anuncia captação de R$ 60 milhões para reperfilamento de dívidas; entenda. O Tempo, Belo Horizonte, 14 abr. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 06 out. 2025.