Migalhas de Direito das Organizações

A previsão contratual de direitos em sociedades limitadas

A coluna aborda como a falta de precisão nos atos constitutivos enfraquece sociedades; contratos bem estruturados elevam a governança, reduzem conflitos e protegem os interesses dos sócios.

1/12/2025

Em função do princípio da tipicidade, as linhas gerais das organizações jurídicas personalizadas estão dispostas na legislação. Especificamente no que diz respeito às sociedades, simples ou empresárias, esse arrimo mínimo obrigatório está disposto no CC, no alusivo às sociedades por quotas, e na lei 6.404/76, no que toca as sociedades por ações, e na lei 5.764/71, que cuida da sociedade cooperativa. Tais normas, contudo, trazem desenhos mínimos, nomeadamente o que é obrigatório e o que é vedado em cada tipo societário, com destaque a tudo aquilo que os diferencia e, assim, os individualiza. Mas frisamos: trata-se do mínimo e, justamente por isso, as sociedades demandam atos constitutivos. Para além do mínimo, mais se pode dispor, como demonstramos em “Estruturação Jurídica de Empresas” (2.ed. Editora Atlas, 2026). Eis um espaço para o mister advocatício societarista.

Para muitos, a experiência da sociedade são fatos de repelente memória. Não são poucos aqueles que viveram aflições corporativas; gente que optou (ou apenas aceitou) compor o quadro de uma sociedade, simples ou empresária, e por resultado colecionou desgostos, quando não saiu no prejuízo. Além da queda, o coice. Milhões de casos, infelizmente. Em cada um deles, há uma história específica, com suas particularidades. Mas em todos - ou quase todos, para aliviar o peso do absoluto -, ousamos dizer, há um mesmo fator: baixa qualidade da tecnologia jurídica empregada, seja no que se refere à definição de faculdades e obrigações societárias, seja no que diz respeito ao seu efetivo exercício pelos titulares, ou seja, pelos sócios. Assim, força é dizer que não seria uma questão de vícios ou de virtudes mercantis dos sócios ou da empresa, mas de uma pobreza jurídica que, infelizmente, vê-se por toda a parte, inclusive no mercado e entre seus atores.

Essa é a ladainha a que nos entregamos com obstinação, reiterada em livros e artigos. Esse ramerrame traduz nosso empenho em apontar para a indispensabilidade de se alterar a compreensão da função dos atos constitutivos no âmbito das organizações, bem como alterar a prática jurídica correspondente. Um contrato social mínimo, genérico, habitualmente constitui um agir advocatício de cabotino; raramente essa generalidade mínima corresponde a uma estratégia jurídica calculada, medida e concretizada com finalidades específicas, o que pode ocorrer por razões diversas, algumas delas indizíveis em público; evita-se corar uns ou fazer algemar outros. Em poucos casos, revelam engrenagens jurídicas muito bem pensadas, não raro escoradas em pactos parassociais complementares, um tipo de sistema normativo alternativo que tem suas implicações e justificativas bem específicas (em alguns casos - frisamos: alguns! não todos! -, a cair nas primeiras hipóteses: não enrubescer ou acobertar). E, sim, estamos rindo rude.

No mor das vezes, o ato constitutivo mínimo e genérico, em seu resultado pífio e insatisfatório, é vetor para que se definhem direitos e interesses de cada um dos sócios, de alguns ou, mesmo, da inteira coletividade social. E isso tende a ter reflexos diretos sobre a azienda e a empresa. São efeitos colaterais de uma advocacia acomodada, com todas as vênias devidas. Daí o fato de termos dedicado todo um capítulo sobre direitos de quotistas nas sociedades limitadas em nosso “Manual de Redação de Contratos Sociais, Estatutos e Acordos de Sócios” (8.ed. Editora Atlas, 2024). Isso para não falar nos modelos de cláusula para o exercício do direito de voto. Neste pequeno ensaio, pretendemos tratar sobre algumas alternativas ao mínimo e genérico, focando-nos nas sociedades limitadas, tipo societário mais comum no Brasil, superando a proporção de nove em cada dez. Isso mesmo: mais de 90% das sociedades registradas no Brasil são do tipo sociedade limitada.

A cláusula padrão para a proteção dos sócios é a seguinte (ou similar): “A responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social, nos termos do art. 1.052 do CC.” Há algum direito aí? Claro. Justo aquele que torna o tipo societário tão comum: o direito de não responder subsidiariamente pelas obrigações sociais com o patrimônio pessoal. O legislador exige, no art. 997, VIII, do CC que o contrato social estabeleça se os sócios respondem subsidiariamente pelas obrigações sociais, ou não. Essa previsão deverá constar de cláusula expressa no ato constitutivo, embora somente seja legítima e válida se houver previsão legal do limite de responsabilidade para aquele tipo societário. Nos demais casos, a previsão no contrato ou estatuto social não será válida, por falta de suporte legal. É claro que o limite de responsabilidade é uma característica essencial da sociedade limitada; no entanto, tem-se entendido que é indispensável que o contrato traga cláusula afirmando esse limite, interpretação essa que encontra lastro na previsão do art. 997, VIII, do CC.

O que se pode prever para além desse elementar pode se limitar a uma especificação do que está no CC, caso essa seja a opção do advogado e o desejo dos clientes. Em fato, esmiuçar faculdades, dar-lhes detalhes que as tornem de exercício mais concreto é agir advocatício útil. Um exemplo? "Os sócios poderão nomear procuradores para o exercício das faculdades sociais, inclusive se fazer representar nas reuniões/assembleias, desde que lhes atribuam poderes suficientes para tanto, na forma da legislação em vigor." Veja que há corporações cujos atos constitutivos estabelecem obrigações extras, como o prévio arquivamento da procuração na sede da sociedade, notificação prévia do mandato (p.ex.: até 48 horas antes da prática do ato ou realização do evento), etc. O recomendável é expor aos clientes (os sócios) o que está implicado e, ponto a ponto, ver o que se pode tratar para aproximar da realidade daquela (e de cada) corporação. Trabalhar por individualidade e precisão.

Mas é possível (e mesmo recomendável) ir além, evitando que o administrador societário (na maioria dos casos, o sócio majoritário), haja como senhor de baraço e cutelo, tomando como seu o que, a bem da precisão, é da coletividade. Uma medida simples é regrar o acesso à escrituração e documentos; uma cláusula que detalhe a faculdade jurídica trabalha em favor da boa governança corporativa. A cláusula que sugerimos no “Manual de Redação” é a seguinte: “Faculta-se a qualquer sócio o acesso, em qualquer tempo, a toda escrituração e documentação da sociedade, inclusive acompanhado de contador ou auditor, com a possibilidade de fazer apontamentos e retirar cópias, sendo vedada sua retirada.” Eis o que se chama de medida de boa governança, vale dizer, o G do ASG (ambiental, social e governança corporativa, ainda que muitos prefiram ESG, a sigla para a expressão em inglês). É uma regra de transparência que, em pouquíssimos casos, justifica restrição.

Note-se haver casos em que se opta por restringir esse direito, exigindo procedimento específico, momento específico etc. É uma opção, obviamente. Mas criará menor transparência e, assim, é possível que se crie uma zona de atrito e, eventualmente, conflito. Quando o acesso é franco, supõe-se a regularidade e, mais do que isso, facilmente afastam-se suspeitas em sentido contrário, quando infundadas: basta examinar e aferir a conformidade, ou não, do registro contábil e seus lastros. Em nossa prática profissional, temos o hábito de sugerir justo o contrário: ampliar a faculdade e, assim, facilitar o conhecimento da vida corporativa e da atuação da administração societária. Seria o caso dessa previsão: “Faculta-se a qualquer sócio requerer ao administrador societário informações sobre a sociedade, a incluir, sem outros excluir,  atos praticados, negócios e negociações, escrituração contábil. Essa faculdade inclui o requerimento de cópias reprográficas dos documentos corporativos. O administrador societário deve atender ao requerimento, e respondê-lo, em ... (...) dias.”

Sem dificuldade se percebe que tais disposições, assim como as considerações feitas neste ensaio, dizem respeito a sociedades efetivas; vale dizer: conjunções efetivas e não apenas de aparência, o que é infelizmente comum (e que, ainda assim, demandam proteção específica, nomeadamente no que diz respeito à gerência financeira; o sócio de aparência, pouco interessado na condução da empresa e em seus resultados, pode herdar um acervo negativo dependendo do tipo de condução econômica que se dê à corporação). Em sociedades que expressem coletividades efetivas, são úteis normas contratuais sobre acordos de sócios, como: “A sociedade reconhece a eficácia de eventuais acordos de quotistas que sejam celebrados entre seus sócios, desde que seja formalmente notificada sobre sua existência, caso em que o administrador societário deverá acatar seus termos, se lícitos e compatíveis com este contrato social.”

Para evitar problemas com disposições ilícitas, é possível haver cláusula que reconheça a legitimidade de qualquer sócio, em nome próprio, contestar os termos dos acordos: “É lícito a qualquer sócio pedir judicialmente a declaração da ilicitude de disposição de acordo de quotistas apresentado à sociedade, por desrespeito à lei ou a este contrato social, evitando, assim, a sua execução pela administração societária.” Em fato, como tivemos ocasião de desenvolver em “Estruturação Jurídica de Empresas” (2ed. Atlas, 2026), o acordo de sócios (quotistas ou acionistas) é uma plataforma normativa secundária na qual os contratantes negociam seus direitos societários. Assim, existe como espaço de afirmação da lei e do ato constitutivo, não nos parecendo ser lícito contratar contra a coletividade, o que constituiria, no mínimo, abuso de direito. Um campo valioso para um agir advocatício fundado em tecnologia jurídica de projeção e para a construção de empresas com sistemas mais seguros. Aliás, espaço para uma postura societarista proativa.

Outro ponto que, demonstramos no “Manual de Redação de Contratos Sociais, Estatutos e Acordos de Sócios” (8.ed. Editora Atlas, 2024), pode merecer uma definição contratual de faculdades societárias, a bem de toda a comunidade corporativa, diz respeito às reuniões de sócios. Antes de mais nada, facilitando a convocação da reunião de sócios. Basta uma cláusula como essa: “É faculdade de qualquer sócio requerer ao administrador societário a convocação de reunião de sócios, devendo indicar, no requerimento, qual a matéria a ser discutida ou deliberada.” Mas é possível ser ainda mais ousado, ampliando-se a legitimidade para a sua convocação. Sugerimos uma cláusula com a seguinte redação: “É faculdade de qualquer sócio convocar reunião de sócios, devendo indicar, no expediente de convocação, qual a matéria a ser discutida ou deliberada.” Facilmente se percebe que a cláusula vai na mesma direção: garantir boa governança (ou bom governo) corporativa(o); a cláusula facilita a convocação, afastando a sociedade, por disposição de seus sócios, do sistema complicado e dispendioso que está previsto no CC: arts. 1.073, I, e 1.152, § 3º. Pisando nos sítios do truísmo, a sociedade são os sócios e, assim, melhor estará fiando-se na coletividade do que criando dificuldades e embaraços para o encontro societário. Daí os méritos da disposição, cremos.

Também é possível especificar qual meio deverá usar (telegrama, carta registrada, notificação cartorária etc.). Aliás, é possível instituir, utilizando-se de acordo de sócios, de um sistema simplificado de comunicação em ambiente virtual (e-mails), cada qual fazendo constar o endereço eletrônico que usará, é a forma mais simples (e é eficaz) para dar efetiva conexão aos sócios. Firmado por todos, esse acordo não precisa ser levado a registro, preservando o sigilo dos endereços. Poucos advogados e escritórios oferecem a seus clientes a possibilidade de, em acordo de sócios, regulamentar o que está disposto em contrato social, dando-lhe expressão prática. É uma falha. Insistiremos: a decisão de levar a registro, ou não, está diretamente ligada à abrangência desejada para a ciência: se deve ou não alcançar terceiros. Nada impede que se façam dois acordos simultaneamente, um arquivado (para que seja conhecido em seus termos), outro não (já que não diz respeito a ninguém mais que os sócios).

Em todas essas sugestões, vê-se emprego de tecnologia jurídica a bem da corporação. Conhecimento que não se emprega apenas para argumentar razões em processo administrativo, judicial ou de arbitragem (art. 1º, I, da lei 8.906/94), buscando decisão favorável para seu constituinte (art. 2º, § 2º, do mesmo Estatuto da Advocacia), mas que contribuem na estruturação jurídica da corporação e da empresa, valorizando no profissional do Direito as competências de assessoria e consultoria que, embora previstas na mesma norma (art. 1º, II, da lei 8.906/94), habitualmente foram olhadas de soslaio pela própria classe, para não falar pelo mercado em geral, como se advogados só devessem viver encafuados em fóruns e tribunais, tecendo bolodórios que mudam conforme a posição do cliente, bem como esperando a misericórdia de uma audiência, de uma leitura humana (pois as leituras por “IA” já frustram, cansam, frustram e distorcem), além de implorar por deferimento. Esse momento se supera com velocidade: a improdutividade das demandas já é clara; as vantagens do planejamento jurídico vão ficando mais e mais óbvias. É um processo e levará tempo para se consolidar. Afinal, Roma não se fez em um dia.

Uma última observação deve ser feita sobre o “Manual de Redação”. Cuidado: o  livro é um banco de cláusulas. É preciso escolher quais se quer e quais não se quer. Muitas podem simplesmente não atender ao que os clientes, em cada caso, desejam. Há cláusulas com previsões radicais, entre as quais podemos citar: “Reconhece-se a legitimidade de qualquer sócio para exigir, judicial ou extrajudicialmente, em nome próprio, mas no benefício da sociedade, o cumprimento de norma constitucional ou legal, bem como as disposições deste contrato social.” Com efeito, a sociedade não se confunde com seus sócios, mas eles a compõem. A existência e o funcionamento da sociedade resultam das deliberações dos sócios. Há direitos e deveres que surgem do contrato social, sendo válidos e eficazes a partir da assinatura do instrumento, mesmo antes do registro, salvo estipulação em sentido contrário. Esses direitos e deveres perduram até uma eventual saída do sócio, com resolução do contrato social em relação a si (dissolução parcial), ou extinção da sociedade (dissolução total), embora haja relações pós-executórias que se estendam mesmo além. Como se trata de um contrato (relação jurídica plurilateral), nossa posição é no sentido de que as cláusulas ajustadas são exigíveis por cada sócio e de cada sócio, contratantes que são. Quando digam respeito diretamente a um dos contratantes, ele as poderá exigir - até judicialmente - em nome próprio e para benefício próprio. Contudo, quando digam respeito à sociedade (pessoa jurídica que é, com direitos e deveres próprios), tais direitos e deveres devem ser exigidos pela sociedade ou da sociedade, conforme o caso. Essa regra exige atenção e cuidado para impedir que o poder dos controladores da sociedade acabe por prejudicar os direitos e os interesses legítimos da sociedade e dos sócios minoritários. Eis por que, creio, é recomendável reconhecer a legitimidade de qualquer sócio, por menor que seja a sua participação no capital social para exigir, em nome próprio, mas a favor da sociedade, o cumprimento do contrato social, certo que os sócios se obrigaram mutuamente. Não se deve aceitar que a maioria exerça seu poder para lesar direitos e interesses legítimos da minoria ou de terceiros.

Este ensaio vai longo, quase se postula um artigo, o que trai a proposta. Dar cabo é necessário, até por educação com o leitor. Ensaios devem provocar; são instigadores. Artigos cumprem outra função, livros uma terceira. Cada um com seu cada qual, diz-se por aí: a coerência enriquece os trabalhos, inclusive acadêmicos ou, se preferirem, técnico-profissionais. Então, estamos acabando; ou quase; é de bom estilo dar arremate. Fechamos com afirmações repetidas; é o nosso manifesto, nosso panfleto (e a motivadora da escritura de nossos livros): melhor será o contrato social se conta verdades sobre a sociedade, que a traduza, que identifique a corporação em suas particularidades. Afinal, a plataforma normativa primária (contrato ou estatuto social) funda a pessoa jurídica, enuncia suas bases. É um instrumento essencial para que se possa definir a estruturação jurídica corporativa. Uma oportunidade para o agir advocatício de qualidade, um espaço para a excelência profissional.

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Colunistas

Fabrício de Souza Oliveira é professor associado de Direito Empresarial na UFJF. Pós-doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Visiting researcher em Berkeley.

José Luiz de Moura Faleiros Júnior é doutor em Direito Civil pela USP. Doutor em Direito, Tecnologia e Inovação pela UFMG. Mestre e bacharel em Direito pela UFU. Especialista em Direito Digital e Direito Civil. Advogado e professor.

Kelly Cristine Baião Sampaio é graduada em Direito pela Universidade Federal de Viçosa (1997), mestre em Direito pela UERJ (2001) e doutora pela UERJ (2008). Atualmente é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Civil.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Renato Chaves Ferreira é graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1997) e mestre em Direito pela UnB (2002). Atualmente é professor assistente da Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público. Atua principalmente nos temas Direito constitucional, Controle de constitucionalidade, Direitos fundamentais.