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Plano individual de parto: Autonomia, limites e preparo jurídico do obstetra

A autonomia no parto desafia médicos e leis: entre planos individuais, urgências e limites éticos, nasce a necessidade de diálogo e decisões responsáveis para proteger mãe e bebê.

16/7/2025

A autonomia da paciente, especialmente no contexto obstétrico, constitui expressão concreta de sua dignidade e dos direitos fundamentais à liberdade, à saúde, à autodeterminação e aos direitos sexuais e reprodutivos, consagrados na Constituição Federal de 1988, em dispositivos infraconstitucionais e em diversas resoluções do CFM - Conselho Federal de Medicina.

No campo da saúde, o exercício dessa autonomia se concretiza por meio de deveres atribuídos ao médico, sobretudo o dever de informação, que pressupõe esclarecimentos precisos, em linguagem acessível e compatível com o nível de compreensão do assistido, permitindo-lhe consentir ou recusar, de forma livre e consciente, os procedimentos propostos.

O Código de Ética Médica (resolução CFM 2.217/18) reforça aludido dever em diversos dispositivos (arts. 22, 24, 31, 32 e 34), sendo complementado pela resolução CFM 2.232/19, que dispõe expressamente no art. 1º: “a recusa terapêutica é, nos termos da legislação vigente e na forma desta resolução, um direito do paciente a ser respeitado pelo médico, desde que esse o informe dos riscos e das consequências previsíveis de sua decisão.”

Contudo, é importante destacar que a autonomia da paciente, embora garantida pela legislação e reafirmada pela resolução CFM 2.232/19, não possui caráter absoluto, especialmente em contextos de risco iminente de morte.

Além disso, as diretivas expressas pela gestante devem ser analisadas à luz da autonomia técnica do médico, igualmente respaldada por fundamentos legais e deontológicos. Essa relação (entre os limites da vontade da paciente e a atuação profissional adequada) apresenta desafios recorrentes na prática obstétrica, inclusive quando a parturiente apresenta um plano individual de parto com escolhas que podem ser incompatíveis com a segurança assistencial ou com as melhores evidências científicas disponíveis. O PIP - plano individual de parto é um documento que registra previamente os desejos da gestante em relação ao trabalho de parto, ao parto e ao pós-parto imediato. É uma diretiva antecipada de vontade, em que a mulher expressa preferências sobre procedimentos, intervenções e condutas que afetarão diretamente seu corpo e sua experiência de parto. Representa um instrumento de proteção à integridade física e psíquica da mulher, funcionando como barreira contra condutas de apropriação ou desrespeito ao seu corpo.

Embora não seja condição para a realização do parto, o PIP é um direito da gestante, expressamente reconhecido por diretrizes do Ministério da Saúde1, recomendação do CFM2 e por algumas legislações estaduais3. Cabe ao médico garantir que a paciente seja esclarecida sobre esse direito, em respeito aos princípios elementares da bioética.

Ainda assim, sua aplicação na prática exige cautela, pois envolve decisões clínicas que impactam diretamente a saúde materno-fetal, impondo-se, em razão disso, equilíbrio ético, técnico e jurídico, sem respostas absolutas ou soluções padronizadas.

Plano de parto: elaboração conjunta, balizas técnico-jurídicas e busca de consenso por meio do diálogo

Conquanto o PIP tenha sido concebido para salvaguardar a autonomia, preferências e protagonismo da gestante, é recomendável que sua elaboração conte com a participação técnica do profissional. A efetividade do documento depende de construção colaborativa, pautada na medicina baseada em evidências e nos limites legais da atuação médica. Compete ao obstetra orientar a paciente de forma clara, realista e juridicamente adequada, esclarecendo riscos, benefícios e inviabilidades clínicas ou normativas de determinadas escolhas.

Por exemplo, caso a gestante manifeste o desejo de submeter-se a um parto domiciliar, compete ao médico esclarecer, de forma respeitosa, que o CFM, apesar de não ter editado resolução com caráter proibitivo, orienta que o parto ocorra em ambiente hospitalar, por ser mais seguro para a mãe e o bebê (recomendação CFM 1/12), em razão de riscos de eventos imprevisíveis, como distócias, sofrimento fetal e necessidade de intervenções emergenciais. A depender da circunscrição do médico, todavia, há resoluções em vigor que vedam a participação médica em partos fora do ambiente hospitalar, como é o caso das resoluções CREMESP 111/2004  e CRM-SC 193/19.

O plano de parto deve ser, via de regra, abraçado pela equipe responsável pela assistência. Quando o documento é apresentado apenas no dia do parto, tendo sido elaborado sem a participação do médico plantonista, cabe a ele receber o documento, avaliá-lo e, sempre que possível, seguir suas diretrizes, sem prejuízo de dialogar com a paciente sobre seu conteúdo, à luz das condições clínicas apresentadas, das possibilidades técnicas da unidade de saúde e das evidências científicas disponíveis.

É recomendável conciliar os desejos da paciente e a conduta assistencial adequada, propondo alternativas tecnicamente viáveis. A título de exemplo, diante da recusa de uma cesariana indicada, pode-se propor uma tentativa de parto instrumental com fórceps, se houver viabilidade clínica. Essa abordagem está em conformidade com o art. 2º, parágrafo único, da resolução CFM 2.232/19, que prevê: “o médico, diante da recusa terapêutica do paciente, pode propor outro tratamento quando disponível.” O parecer CFM 5/24 também reforça essa diretriz ao tratar do plano individual de parto, orientando que o profissional ofereça opções seguras diante de impasses.

Impasse entre a vontade da paciente e a conduta médica: Deveres do obstetra em contextos críticos

Se a vontade da gestante representar risco grave à sua saúde ou à do feto, sem consenso possível, o médico deve seguir as diretrizes abaixo:

A modo  exemplificativo, diante de um quadro de eclâmpsia com convulsões e instabilidade hemodinâmica, é lícito (e obrigatório) propor a antecipação do parto por cesariana, ainda que a paciente tenha registrado preferência pelo parto vaginal em seu plano de parto.

Se a paciente estiver lúcida e em condições de compreender, o diálogo deve ser priorizado, esclarecendo-se os riscos envolvidos e a necessidade da conduta proposta. Nos casos em que não há tempo hábil para o consentimento ou a paciente se encontra inconsciente, o médico deverá realizar intervenção médica imediata, desde que tecnicamente fundamentada, proporcional e registrada no prontuário, para salvaguarda da vida da mãe e/ou do feto.

Cumpre dizer que está em trâmite a ação civil pública 5021263-50.2019.4.03.6100 (2ª Vara Cível Federal de São Paulo).

Na referida ação, foi inicialmente concedida tutela de urgência para suspender a eficácia do § 2º do art. 5º da resolução CFM 2.232/20094 (que previa a possibilidade de a recusa terapêutica da gestante ser considerada abuso de direito em relação ao feto) bem como suspender parcialmente os arts. 6º e 10º da mesma norma.

O juízo afastou a prerrogativa conferida ao médico de interpretar livremente o conceito de “abuso de direito” por parte da gestante em relação ao feto, com o objetivo de coibir condutas médicas autoritárias. Ainda assim, reconheceu-se que o risco efetivo à vida ou à saúde da gestante e/ou do feto deverá ser considerado fundamento legítimo para restringir a escolha da paciente.

Convém destacar que a sentença revogou a referida liminar, mas seus efeitos foram restabelecidos por decisão monocrática proferida pelo desembargador Mairan Maia, do TRF da 3ª Região, ao apreciar pedido de atribuição de efeito suspensivo à apelação interposta pelo Ministério Público Federal. O mérito do recurso, até a presente data (30/6/25), permanece pendente de julgamento.

Nessas circunstâncias, o médico deve observar os requisitos previstos no art. 12, parágrafo único, da Resolução CFM 2.232/19, em consonância com o Parecer CFM 2/24:

i) Documentar minuciosamente a conduta indicada, os riscos da recusa e a contraindicação clínica da intervenção pretendida pela paciente;

ii) Formalizar a recusa da paciente por escrito, em vídeo ou áudio, com declaração de ciência dos riscos e assinatura de duas testemunhas, anexando ao prontuário;

iii) Comunicar a direção técnica da instituição para avaliar a substituição do profissional.

Na ausência de outro médico disponível, o obstetra não poderá se afastar, mas também não está obrigado a executar uma intervenção contraindicada, devendo adotar postura expectante e formalizar a recusa da paciente ao tratamento indicado, nos mesmos moldes descritos acima.

Objeção de consciência: quando recusar é legítimo, e quando não é permitido

Nas situações em que a conduta solicitada pela paciente, ainda que lícita e prevista na literatura médica, conflita com valores morais, íntimos ou religiosos do profissional, configurando objeção de consciência, ele poderá se abster de realizá-la, nos termos dos arts. 7º e 8º da Resolução CFM 2.232/19. É o caso, por exemplo, de um obstetra que se nega a realizar laqueadura tubária durante cesariana ou praticar aborto terapêutico, por motivos de foro íntimo. Em tais contextos, o objetor deve:

i)  Manifestar sua objeção à paciente, com urbanidade e clareza, colocando-se à disposição para fornecer as informações necessárias à continuidade da assistência por outro profissional;

ii) Registrar no prontuário a sua objeção, sem juízo de valor sobre a decisão da paciente;

iii) Comunicar formalmente à direção técnica da instituição, para que seja providenciada a substituição imediata por outro médico não objetor.

Em caso de urgência, risco de morte ou ausência de outro obstetra, o médico tem o dever de atuar, independentemente de objeções pessoais.

Planos de parto e judicialização: Entre a escolha da parturiente e a responsabilidade médica

O Judiciário tem reconhecido a legitimidade dos planos de parto. Em recente julgado, o TJ/RS confirmou a condenação de hospital por impedir, sem justificativa válida, a presença do pai na sala de parto, desrespeitando o plano previamente apresentado e gerando indenização por dano moral.5

Por outro lado, o cumprimento do PIP pode ser relativizado diante de intercorrências. Foi o que entendeu o juízo da 2ª Vara Cível de Sorocaba/SP, ao julgar improcedente pedido de indenização por suposto desrespeito ao plano de parto.6

A autora alegava ter sido vítima de “violência obstétrica” porque não houve contato pele a pele na primeira hora de vida da bebê, o clampeamento do cordão umbilical foi precoce e porque a doula não pôde acompanhá-la no centro cirúrgico.

Contudo, o perito esclareceu que houve laceração perineal de 3º grau com rompimento de esfíncter anal, o que exigiu correção cirúrgica urgente e inviabilizou a presença do bebê e da doula na sala operatória. Além disso, o clampeamento precoce foi indicado diante da presença de circular cervical justa no bebê, medida necessária para evitar hipóxia.

O juízo concluiu que as condutas adotadas pela equipe médica estavam alinhadas à boa prática obstétrica e respaldadas por evidências científicas.

Assim, o caso ilustra que o disposto no plano de parto pode ceder frente a situações de risco real para mãe e/ou bebê.

Notas finais: O parto como território de escuta, ciência e confiança

Com o fortalecimento da autonomia da gestante, o plano individual de parto passou a exigir do obstetra uma atuação ainda mais consciente, humana e respaldada. A construção de uma assistência segura depende da compatibilização entre os limites da ciência médica e os desejos expressos pela paciente.

Diante de recusas terapêuticas ou exigências inexequíveis, cabe ao médico  orientar com paciência, registrar adequadamente e manejar a situação com escuta qualificada, em conformidade com as normas éticas e legais.

O plano de parto, embora valioso, não é absoluto. Pode, inclusive, não ser acolhido diante de riscos concretos à saúde ou à vida. Ainda assim, não se admitem condutas médicas arbitrárias, como submeter a gestante, à força, a procedimentos que rejeita, o que violaria sua dignidade. Nessas situações, o diálogo continua sendo o recurso mais eficaz para conduzir decisões em cenários limítrofes.

Enfim, este artigo buscou oferecer algumas balizas jurídicas à prática obstétrica, sem pretensão de respostas definitivas, até porque nem as resoluções do CFM, tampouco decisões como a proferida na ação civil pública 5021263-50.2019.4.03.6100, solucionam plenamente os impasses do parto.

Em todos os casos, o bom senso, uma conversa franca e a precisão técnica devem conduzir as ações médicas. Contar com suporte jurídico especializado é medida estratégica para reduzir riscos e judicializações.

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1 BRASIL. Ministério da Saúde; Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC). Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal. Brasília: Ministério da Saúde, 2017. 51?p. Disponível aqui. Acesso em: 27/6/25.

 

2 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Parecer CFM nº?5/2024. [Parecer sobre Plano Individual de Parto]. Brasília: CFM, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 27 jun. 2025.

3 SÃO PAULO (Estado). Lei nº 17.431, de 14 de outubro de 2021. Dispõe sobre o direito ao plano de parto e pós-parto imediato no âmbito do Estado de São Paulo. Diário Oficial do Estado de São Paulo, Poder Executivo, São Paulo, 15 out. 2021. Disponível aqui. Acesso em 27/6/25

4 Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientese objeção de consciência na relação médico-paciente

5 TJRS. Recurso Inominado n. 5010431-62.2018.8.21.0019, 2ª Turma Recursal da Fazenda Pública, Rel. Daniel Henrique Dummer, j. 19 jun. 2024, publ. 2 jul. 2024.

6 SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça. 3ª Vara Cível de Sorocaba. Processo n. 1031702-86.2020.8.26.0602. Ação de indenização por danos morais. Sentença da Juíza Alessandra Lopes Santana de Mello. Sorocaba, SP, 20 out. 2023.

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CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (Brasil). Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Disponível aqui. Acesso em: 8/6/25.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (Brasil). Resolução CFM nº 2.232/ 2019.  Disponível aqui. Acesso em: 8/6/25.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (Brasil). Parecer CFM nº 5/2024.  Disponível aqui. Acesso em: 8/6/25.

BRASIL. Justiça Federal. São Paulo. 2ª Vara Cível Federal. Ação Civil Pública nº 5021263-50.2019.4.03.6100. Ministério Público Federal x Conselho Federal de Medicina. Classe: Ação Civil Pública Cível. São Paulo, em tramitação. Acesso em 30/6/25.

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Colunistas

Alexandro de Oliveira é doutorando e mestre em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFRJ). Pesquisador, Advogado e Bioeticista. Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) , da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), da Sociedade Brasileira de Bioética (SPP), do Instituto Miguel Kfouri Neto (IMKN), Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federalcis Fluminense (UFF).

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.