Migalhas de Direito Médico e Bioética

A reforma do Código Civil e o critério de filiação na gestação de substituição

Esse texto trata da gestação de substituição (também conhecida como "barriga de aluguel") sob a ótica jurídica, médica e bioética.

4/8/2025

A gestação de substituição, como o próprio nome sugere, é um fenômeno reprodutivo caracterizado pela “procriação para outrem”1. Com os avanços da Medicina Reprodutiva e o desenvolvimento das técnicas de reprodução humana assistida (RHA), como a conhecida fertilização in vitro (FIV), esses arranjos tornaram-se consideravelmente mais complexos, dada a multiplicidade de possíveis participantes no processo reprodutivo.

Costumo citar, por seu valor ilustrativo, o caso Buzzanca v. Buzzanca2, julgado nos EUA: a aplicação da FIV permitiu um cenário em que o embrião foi formado a partir de gametas de doadores, fertilizado em laboratório e implantado em uma gestante de substituição, que daria à luz a uma criança destinada a beneficiar terceiros. Se a reprodução humana costuma ser vista como um projeto íntimo, restrito ao casal, aqui ela se distribui entre diferentes indivíduos, tornando-se um processo técnico, fragmentado e compartilhado.

É justamente nesta dissociação entre material genético, gestação e intenção parental que emergem os desafios na determinação da filiação.

O título paradoxal proposto pelo jurista português Guilherme de Oliveira, em 1992 – “Mãe há só uma (duas)!”3 – parece provocativo, mas ainda é pouco ambicioso. Talvez pudéssemos dizer “Mãe há só três”4: a mulher que forneceu o material genético, a que gestou a criança e a beneficiária do procedimento.

No caso da paternidade, o alcance do brocardo pater semper incertus est é ainda mais ampliado: pode-se considerar o próprio marido da gestante de substituição, com base na presunção legal de que o pai é o marido da mãe (caso se adote a ideia de que a maternidade decorre necessariamente do parto), o doador de esperma e o beneficiário do procedimento.

Afinal, quem é, de fato, pai e mãe na gestação de substituição?

Na atualidade, embora não exista regulamentação legal específica no Brasil, a gestação de substituição tem sido admitida com fundamento no direito ao livre planejamento familiar, ex vi art. 226, § 7º, da Constituição Federal, regulamentado pela lei 9.263/1996 (conhecida como Lei do Planejamento Familiar), cujo art. 9º assegura o acesso a métodos de concepção cientificamente aceitos5. Complementarmente, a resolução nº 2.320/2022, do Conselho Federal de Medicina (CFM), estabelece diretrizes para a prática médica no âmbito das técnicas de RHA, incluindo a gestação de substituição, e, embora não possua força de lei, essa orientação tem, na prática, determinado a forma como esses procedimentos são realizados no país6. No campo registral, diante da necessidade de afastamento da presunção de maternidade decorrente do parto7, o Provimento nº 149/2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), prevê que o nome da mulher que deu à luz não constará no registro de nascimento, conforme indicado na declaração de nascido vivo, sendo necessária, ainda, a assinatura de um termo de compromisso pela gestante de substituição para esclarecer a filiação (art. 513, § 1º). Assim, apenas os responsáveis pelo projeto parental constarão no registro, mesmo que o material genético provenha de terceiros8.

Observe que, até aqui, o ordenamento jurídico brasileiro, mesmo na ausência de regulamentação legal específica, tem privilegiado o critério volitivo na definição do vínculo jurídico de filiação na gestação substitutiva, em detrimento dos critérios exclusivamente gestacional ou genético. Ou seja, na gestação de substituição, o parto deixa de ser o marco definidor da maternidade9 e, embora a gestante e os demais envolvidos desempenhem papéis fundamentais para viabilizar o nascimento, é a intenção inicial dos pais pretendidos que fundamenta e dá sentido a todo o processo10.

Esse entendimento, aliás, reflete o conteúdo normativo do art. 1.597, inciso V, do atual Código Civil, que presume a paternidade dos filhos “havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”. Trata-se de uma exceção ao princípio do biologismo11, fundamentado na vontade dos intervenientes na constituição do estatuto parental e inerentes responsabilidades.

Aliás, se analisada com a devida atenção, é precisamente na gestação de substituição que a mulher beneficiária pode ser equiparada ao pai que não contribuiu com seu material genético no processo heterólogo: ambos se revelam progenitores sociais12.

Já no contexto do Projeto de revisão e atualização do Código Civil – atualmente tratado no âmbito do PL 4/25 –, percebe-se, igualmente, a valorização do elemento volitivo, atribuindo-se a parentalidade em favor dos beneficiários. Isso se reflete na previsão de que “[a] cessão temporária de útero deve ser formalizada em documento escrito, público ou particular, firmado antes do início dos procedimentos médicos de implantação, no qual deverá constar, obrigatoriamente, a quem se atribuirá o vínculo de filiação” (art. 1.629-O), bem como na determinação de que “[o] registro de nascimento da criança nascida em gestação de substituição será levado a efeito em nome dos autores do projeto parental, assim reconhecidos pelo oficial do Registro Civil” (art. 1.629-P).

Pode-se afirmar, assim, que o Projeto do CC atribui a condição de pais, no contexto da gestação de substituição, aos beneficiários – os autores do projeto parental. Ainda que o elemento volitivo possa, eventualmente, entrelaçar-se com o vínculo genético, nos casos em que haja contribuição genética de um ou de ambos os beneficiários, o texto não exige a utilização dos gametas dos respectivos beneficiários.

Ademais, a definição prévia em favor dos beneficiários, configura um critério legal que derroga a regra geral de estabelecimento da filiação prevista no Código Civil, afastando, nesse contexto específico, a atribuição da maternidade à mulher que deu à luz.

Ainda sobre a gestante de substituição, alguns doutrinadores têm manifestado preocupação com a ausência, no Projeto do CC, de um dispositivo que afaste expressamente a possibilidade de arrependimento por parte desta, caso manifeste desejo de permanecer com a criança após o nascimento. Nesse sentido, tem-se sugerido a inclusão de um parágrafo único ao art. 1.629-L – que atualmente dispõe, em seu caput, que “[a] gestação por substituição é permitida para casos em que a gestação não seja possível em razão de causa natural ou em casos de contraindicação médica”. A proposta doutrinária prevê que esse parágrafo único contenha a seguinte redação: “Não é reconhecido à gestante o direito de arrependimento após o nascimento da criança que foi gerada por esta técnica”13.

Embora se compartilhe do entendimento de que não se deve reconhecer à gestante de substituição uma espécie de “direito ao arrependimento” (assunto desenvolvido na obra sobre gestação de substituição14), e até mesmo se entenda as preocupações daqueles autores, a necessidade de um dispositivo como esse me parece desnecessária, pois trata-se de afirmar o óbvio. Se o próprio legislador, ao disciplinar a gestação de substituição, excepciona a regra geral de filiação para atribuí-la aos beneficiários, é logicamente incompatível que a gestante possa, após o parto, reivindicar a condição de mãe em termos jurídicos. Caso se recuse a entregar a criança após o parto, a resposta já se encontra prevista no ordenamento jurídico: a gestante de substituição estaria sujeita aos mesmos crimes aplicáveis a qualquer pessoa que retire os filhos de seus pais legais, como sonegação de estado de filiação e subtração de incapaz, nos termos dos arts. 243 e 249, do Código Penal15.

De outro lado, relativamente à intervenção dos doadores de gametas no processo reprodutivo, o art. 1.629-K, § 2º, do Projeto, estabelece expressamente que “[n]enhum vínculo de filiação será estabelecido entre o concebido com material genético doado e o respectivo doador”.

Por fim, no que se refere ao marido da gestante, o Projeto do CC não reproduz a exigência prevista no item VII/3/f), da resolução n.º 2.320/2022, do CFM, que exige a “aprovação do(a) cônjuge ou companheiro(a), apresentada por escrito, se a cedente temporária do útero for casada ou viver em união estável”. Embora sem força de lei, tal exigência busca, forçando muito a nota, “afastar” a presunção de que o pai é aquele que o casamento indica (art. 1.597, do CC). No entanto, à luz do próprio Projeto do CC, essa exigência não se sustenta, pois não há qualquer incerteza jurídica quanto à definição da filiação: pai e mãe, na gestação de substituição, são apenas os beneficiários. E só.

__________

1 CORTE-REAL, Carlos Pamplona. Os efeitos familiares e sucessórios da procriação medicamente assistida (P.M.A.). ASCENSÃO, José de Oliveira (coord.). In: Estudos de Direito da Bioética. Coimbra: Almedina, 2005, p. 93-112, p. 104.

2 Buzzanca v. Buzzanca, 72 Cal. Rptr. 2d 280 (1998).

3 OLIVEIRA, Guilherme de. Mãe há só uma (duas)! Contrato de gestação. Coimbra: Coimbra Editora.

4 Como provocou ASCENSÃO, José de Oliveira. Procriação Assistida e Direito. In: Estudos em homenagem ao Professor Doutor Pedro Soares Martínez. Coimbra: Almedina, 1998, p. 645-676, vol. 1, p. 667.

5 SCHETTINI, Beatriz. Vácuo legal em matéria de reprodução humana assistida. MASCARENHAS, Igor; DADALTO, Luciana (coords.). In: Direitos Reprodutivos e Planejamento Familiar. Indaiatuba: Editora Foco, 2024, p. 17-35, p. 22.

6 RETTORE, Anna Cristina de Carvalho; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Patrimonialidade na gestação de substituição. MASCARENHAS, Igor; DADALTO, Luciana (coords.). In: Direitos Reprodutivos e Planejamento Familiar. Indaiatuba: Editora Foco, 2024, p. 283-305, p. 283

7 ARAÚJO, Ana Thereza Meirelles; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Compêndio biojurídico sobre reprodução humana assistida. Indaiatuba: Editora Foco, 2024, pp. 221-222.

8 ROSA, Conrado Paulino da. Direito de família contemporâneo. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2023, p. 499.

9 RAPOSO, Vera Lúcia. De mãe para mãe: Questões legais e éticas suscitadas pela maternidade de substituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 60.

10 HILL, John Lawrence. What does it mean to be a ‘parent’? The claims of biology as the basis for parental rights. New York University Law Review, n.º 66, mai. 1991, p. 353-420, p. 415.

11 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003, p. 882.

12 SÁ, Mafalda de. O estabelecimento da filiação na gestação de substituição: à procura de um critério. Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, ano 15, n.º 30, 2018, p. 67-89, p. 74.

13 Nomeadamente VALADARES, Amanda de Oliveira; FONSECA, Gabriel Carvalho. A gestante pode mudar de ideia? A (im) possibilidade de reconhecer o arrependimento da gestante de substituição no anteprojeto de reforma do código civil brasileiro. OLIVEIRA, Lucas Costa de; GUIMARÃES, Luíza Resende (orgs.). In: Anais do X Congresso Mineiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Editora Expert. 2024, p. 527-549, p. 543.

14 DE BONE, Leonardo Castro. Gestação de substituição: do fenômeno reprodutivo aos problemas do contrato. Londrina: Thoth, 2025, pp. 135-141.

15 MELO, Diogo Leonardo Machado de. Uma lei federal para reprodução assistida no Brasil? Consultor Jurídico, nov. 2022, n.p.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Alexandro de Oliveira é doutorando e mestre em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFRJ). Pesquisador, Advogado e Bioeticista. Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) , da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), da Sociedade Brasileira de Bioética (SPP), do Instituto Miguel Kfouri Neto (IMKN), Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federalcis Fluminense (UFF).

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.