1. Introdução: Fundamentos legais, criminalização e dosimetria da pena nos crimes sexuais
Esse artigo dá sequência a uma tríade de artigos que foi iniciada com o texto “Responsabilidade penal do médico e crimes contra a dignidade sexual: Intercâmbio entre Direito Penal, crimes sexuais e Direito Médico (Parte I)” e que busca acompanhar, agora de forma textual, as discussões travadas no encontro do IMKN - Instituto Miguel Kfouri Neto sobre a temática.
Os crimes contra a dignidade sexual têm como núcleo a proteção da liberdade e da autodeterminação sexual do indivíduo, conforme previsto no Título VI do CP brasileiro (arts. 213 a 234-C). Segundo doutrina dominante, o legislador buscou, ao tipificar tais condutas, defender a dignidade da pessoa humana como valor fundamental, assim como preconizado na CF/88. Aqui se tutela à autodeterminação das pessoas, ou seja, a capacidade de uma pessoa poder escolher sua disponibilidade sexual1.
O CP brasileiro descreve vários crimes contra a dignidade sexual, tais como estupro (art. 213), estupro de vulnerável (art. 217-A), assédio sexual (art. 216-A), importunação sexual (art. 215-A) e violação sexual mediante fraude (art. 215). A caracterização desses crimes envolve uma análise de violência, ameaça, fraude ou abuso de autoridade, sempre preservando o respeito à autodeterminação sexual da vítima. A legislação brasileira prevê penas elevadas para tais delitos, considerando-os de elevado potencial ofensivo, sendo que o estupro, por exemplo, é considerado crime hediondo, conforme art. 5º, XLII da CF/88 c/c lei 8.072/90.
Além disso, tais processos tramitam em segredo de justiça, sobretudo para proteção da intimidade e privacidade da vítima. No mesmo sentido, uma característica é o fato de a ação penal ser pública incondicionada, de modo que poderá haver a investigação e denúncia sobre os fatos independentemente de manifestação de vontade da pessoa ofendida. Ademais, tais delitos, em razão da pena elevada que possuem, em regra, não admitem institutos despenalizadores, tais como transação penal, suspensão condicional do processo ou acordo de não persecução penal, que estão previstos, respectivamente, nos arts. 76 e 89 da lei 9.099/95 e no art. 28-A do CPP.
No mesmo sentido, um fator peculiar que envolve tais delitos é justamente a palavra da vítima ter um peso probatório relevante, especialmente quando coerente, firme e compatível com outros elementos elencados nos autos para a formação do convencimento do juiz. Do mesmo modo, nos crimes sexuais, se o juiz entender que houve violência grave, abuso de autoridade ou vulnerabilidade extrema, isso influencia na fixação da pena-base e pode agravar o quantum condenatório, seguindo-se o critério trifásico para dosimetria da pena elencado no art. 68 do CP, que determina que a pena deve ser fixada em três etapas distintas, sempre observando os limites mínimo e máximo previstos no tipo penal2.
2. A evolução do papel da vítima no processo penal
O CP brasileiro, elaborado em 1940, previa que o comportamento da vítima deveria ser analisado primordialmente e poderia interferir no julgamento do acusado da prática de um delito sexual. A ideia advinda da legislação refletia um estigma com a figura da mulher, sendo que as consideradas “desonestas” contribuíam para o delito e, assim, seriam merecedoras do crime cometido3.
Como exemplo, Nelson Hungria4 chegou a afirmar que o estupro praticado pelo marido seria uma excludente de ilicitude, por exercício regular do direito do cônjuge, no sentido de que as mulheres com comportamento sexual “liberal”, como prostitutas ou adúlteras, não seriam dignas de proteção caso alegassem ter sido vítimas de delito contra a dignidade sexual, vejamos:
O dissenso da vítima deve ser sincero e positivo, manifestando-se por inequívoca resistência. Não basta uma platônica ausência de adesão, uma recusa meramente verbal, uma oposição passiva ou inerte. É necessária uma vontade decidida e militantemente contrária, uma oposição que só a violência física ou moral consiga vencer. Sem duas vontades embatendo-se em conflito, não há estupro. Nem é de confundir a efetiva resistência com a instintiva ou convencional relutância do pudor5.
Atualmente, embora ainda haja vieses informais na investigação policial e no Judiciário (como a análise da vestimenta ou da postura da mulher), houve um avanço significativo, sobretudo porque é necessário analisar a conduta do agente que viola a dignidade sexual alheia e viola a norma, e não atribuir a responsabilidade pela prática do delito à vítima.
Mas não vamos longe. Em um artigo interessante denominado “De médico e de monstro: disputas em torno das categorias de violência sexual no caso Abdelmassih”, as autoras fazem uma análise na narrativa da imprensa efetivada à época dos fatos das denúncias formuladas em relação ao médico Roger Abdelmassih, o qual foi acusado de ter cometido mais de trinta e sete estupros dentro de sua clínica de inseminação artificial6.
As narrativas são cruéis e mostraram um sistema penal que não acolhia a vítima. Conforme relatado no artigo mencionado, uma das vítimas, acometida por sequelas ocasionadas por uma infecção generalizada que seria resultado de estupro anal, seguido de estupro vaginal, teria procurado uma delegacia após ter sido violentada na clínica do referido médico. O delegado questionou se ela poderia acusar o “médico das estrelas”, e não levou a investigação adiante, descredibilizando sua palavra.
O CRM - Conselho Regional de Medicina, responsável pela apuração da conduta do médico no plano ético-disciplinar, também não investigou as acusações, sendo que funcionários chegavam a afirmar que a paciente não teria provas contra o profissional de renome. Apenas após a imprensa tomar ciência dos fatos e divulgar as inúmeras vítimas que foram violadas sexualmente pelo médico, as investigações tiveram início e hoje o averiguado cumpre pena pelos crimes cometidos, sem contar que teve o registro profissional no CRM cassado.
3. A palavra da vítima nos crimes de natureza sexual
É importante relevar que delitos de natureza sexual muitas vezes não podem ser comprovados com base em depoimentos de testemunhas presenciais, de modo que a materialidade pode depender de elementos subjetivos e indícios indiretos. Por isso, a jurisprudência consolidada do STJ e do STF reconhecem que a palavra da vítima, quando coerente, firme e harmônica com o conjunto probatório, possui especial relevância e pode, inclusive, ser suficiente para embasar condenação. O STJ já decidiu reiteradamente que, “em crimes de natureza sexual, à palavra da vítima deve ser atribuído especial valor probatório, quando coerente e verossímil, pois, em sua maior parte, são cometidos de forma clandestina, sem testemunhas e sem deixar vestígios”7.
Isso não significa que a garantia fundamental referente à presunção de inocência seja relativizada, mas sim que o sistema reconhece a peculiaridade envolvendo o modus operandi destes delitos e, ainda, a dificuldade probatória que eles englobam. Deve-se garantir a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal ao acusado, preservando o equilíbrio processual e evitando condenações injustas, mas, também, deve ser dada proteção aos direitos da vítima cuja dignidade foi violada, mormente porque tais crimes ocorrem de forma clandestina, sendo que o relato da vítima é, muitas vezes, o único meio de prova.
Neste sentido, é importante ressaltar que os indícios, isoladamente, não são suficientes para comprovar a autoria e a materialidade do crime, sendo necessário que haja um conjunto de elementos que levem à formação da convicção do juiz, sobretudo devido ao sistema acusatório vigente no âmbito processual penal e, ainda, em razão de não existir rainha das provas no sistema da persuasão racional, elencado no art. 155 do CPP.
Vale ressaltar, ainda, que foi promulgada a lei 14.245/21, após o notório julgamento do caso em que a influencer Mariana Ferrer alegou ter sido abusada sexualmente em uma festa. O diploma legal trouxe requisitos e cuidados que devem ser tomados com a vítima no momento da audiência de instrução e julgamento, para fins de não ocorrer a revitimização ou a culpabilização do sujeito passivo do crime.
Isso porque, neste caso em específico, a influenciadora alegou ter sido vítima de estupro em uma festa e, durante o julgamento, que ocorreu de forma virtual e foi gravado, passou por constrangimento grave, pois teve seu estilo de vida questionado pelo advogado de defesa do acusado, sem que o juiz ou o promotor adotassem medidas para coibir os ataques e insultos voltados à vítima.
Tal lei, portanto, foi criada com finalidade de coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas, bem como trouxe uma causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo, elencado no art. 344 do códex criminal. O intuito do legislador foi evitar que a vítima passasse por constrangimentos quando estivesse tentando buscar o mínimo de justiça devido aos atos sofridos.
4. Desqualificação de vítimas em processos criminais envolvendo violência contra a mulher
Em meados de maio de 2024 o STF analisou ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1.1078, proposta pela Procuradoria-Geral da República, em que foi questionada a constitucionalidade da postura de desqualificar mulheres vítimas durante a investigação e o julgamento de processos envolvendo crimes contra a dignidade sexual.
Após o relatório emanado pela ministra Carmem Lúcia, o STF deliberou, por unanimidade, pela inconstitucionalidade da prática de inquirir a vítima acerca de sua vida sexual ou de seu modo de vida durante a fase investigativa ou o julgamento de crimes de violência contra a mulher. Restou decidido pela Corte Constitucional que, se tal conduta ocorrer, haverá a nulidade do processo.
Argumenta-se, aqui, contrariedade aos princípios constitucionais da dignidade humana, liberdade sexual, igualdade de gênero, devido processo legal e dos objetivos previstos no art. 3º da CF/88. Entendeu o STF que questionamentos dessa natureza reproduzem estigmas discriminatórios, perpetuam a violência de gênero e configuram forma de revitimização, especialmente nos casos de crimes sexuais, cuja apuração é sensível.
De acordo com o que restou decidido na ADPF, o magistrado que se omitir em impedir tais práticas poderá ser responsabilizado nas esferas administrativa e penal, sendo-lhe igualmente vedado considerar aspectos da vida sexual da vítima na fixação da pena imposta ao agressor.
O STF também estendeu a incidência desse entendimento a todas as espécies de delitos caracterizadores de violência contra a mulher, não se restringindo, portanto, às infrações de natureza sexual. Tal decisão vem em complemento à lei 14.245/21, para que a vítima não sofra ainda mais com o processo, e não se tolere as tentativas de culpá-la pelo crime, e não o agressor. Além disso verificamos, em tal julgado, um avanço em situações em que o machismo estrutural ainda se apresenta, de forma a impedir um acesso ao Judiciário de forma digna e ampla também à vítima do crime.
5. Crimes contra a dignidade sexual praticados por médicos
No caso de crimes contra a dignidade sexual praticados por médicos, merece especial reprovabilidade social a conduta, sobretudo devido ao fato de ter ocorrido abuso da posição de confiança, do prestígio profissional e da vulnerabilidade do paciente no contexto do atendimento com profissional da saúde.
Esses casos podem ocorrer, por exemplo, durante consultas ginecológicas, urológicas ou exames físicos de rotina, procedimentos invasivos, com uso de sedação ou anestesia, situações em que o médico se vale do conhecimento técnico para criar um ambiente de intimidação ou fraude.
O CEM - Código de Ética Médica é claro ao proibir qualquer prática sexual com pacientes, prevendo infrações éticas gravíssimas, que podem resultar na cassação do registro profissional pelo CRM - Conselho Regional de Medicina9. Além da responsabilização penal e administrativa, o médico também poderá responder civilmente por danos morais e materiais, com indenizações que podem ser expressivas.
6. Considerações finais
Os crimes contra a dignidade sexual atentam contra os valores fundamentais da pessoa humana, exigindo um sistema judicial que promova a justiça e a proteção às vítimas. A valorização da palavra da ofendida, aliada às investigações técnicas e céleres, representa avanços essenciais nesse campo. Contudo, é imperativo manter o equilíbrio para garantir a presunção de inocência e evitar abusos no processo.
O aumento das denúncias de crimes contra a dignidade sexual praticados por médicos e profissionais de saúde deve ser analisado com cautela, porque, mesmo que se considere a vulnerabilidade natural da paciente e às vezes a impossibilidade de prova testemunhal, não podemos esquecer da presunção da inocência e do devido processo legal, direitos fundamentais consagrados na CF/88 como cláusulas pétreas. Assim, tem-se que as garantias fundamentais da vítima e do acusado devem ser preservados em um processo penal democrático.
____________________________
1 SOUZA, Luciano. Violação Sexual Mediante Fraude. In: SOUZA, Luciano. Direito Penal - Vol. 3. Editora Revista dos Tribunais. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 9 de agosto de 2025.
2 Na primeira fase da dosimetria, o juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá a pena-base, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime em questão. Na segunda fase, são aplicadas as agravantes e atenuantes, se existentes. São exemplos de agravantes a reincidência ou a prática do crime com abuso de autoridade ou confiança. É exemplo de atenuante a confissão. Na terceira e última fase, são aplicadas as majorantes e as minorantes.
3 NUCCI, Guilherme Souza. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
4 LAGO, Laurenio. Supremo Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal: dados biográficos 1828-2001. 3. ed. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2001. p. 355-357.
5 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 118.
6 ALMEIDA, Heloisa Buarque de; MARACHINI, Laís Ambiel. De médico e de monstro: disputas em torno das categorias de violência sexual no caso Abdelmassih. Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidade e Violência, 2017. Disponível aqui.
7 STJ - Agravo Regimental em Recurso Especial. Rel. Min. REYNALDO SOARES DA FONSECA, 5ª Turma, julgado em 06/02/2020.
8 STF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1.107 Distrito Federal. Rel. Min. CARMEN LÚCIA. Julgado em 23/05/2024.
9 Estabelece o seguinte o Código de Ética Médica: Art. 23. É vedado ao médico tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto. Art. 30. Usar da profissão para corromper costumes, cometer ou favorecer crime. Art. 38. Desrespeitar o pudor de qualquer pessoa sob seus cuidados profissionais. Art. 40. Aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-paciente para obter vantagem física, emocional, financeira ou de qualquer outra natureza.