Migalhas de Responsabilidade Civil

O recente marco legal das startups e a limitação de responsabilidade do investidor

O recente marco legal das startups e a limitação de responsabilidade do investidor.

2/9/2021

A lei complementar 182, de 1º de junho de 2021, que "institui o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador", trouxe à tona temas de grande relevância para o ecossistema de investimentos e de alavancagem empresarial no Brasil, pois, "diante de um novo empreendimento econômico, uma questão que sempre se coloca diz respeito às fontes de recursos necessárias para que a atividade da empresa nascente seja colocada em marcha".1 Referida lei, dentre outros temas, tratou dessa questão.

E, de fato, embora reformas importantes já tivessem sido realizadas anteriormente, a exemplo da criação da figura do investidor-anjo pela lei complementar 155, de 27/10/2016, que inseriu o artigo 61-A e seus respectivos parágrafos na lei complementar 123, de 14/12/2006, somente agora o legislador delineou um rol de instrumentos para a formalização de aportes de capital a empresas enquadradas como startups.

Antes de mencioná-los, convém lembrar que o próprio conceito de startup – que remete aos emblemáticos textos de Eric Ries2 –, agora, está definido no texto da lei. São consideradas startups "as organizações empresariais ou societárias, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados" (art. 4º, caput), desde que observados os critérios de elegibilidade (natureza jurídica, faturamento, tempo de constituição etc.) e de prazo dos §§1º e 2º do art. 4º da LC 182/2021.3

Dois meses antes, curiosamente, o legislador havia delineado um conceito um pouco diverso – mas não incompatível –, na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (lei 14.133, de 1º de abril de 2021), ao tratar do Procedimento de Manifestação de Interesse. Referida norma, em seu artigo 81, §4º, prevê que "o procedimento previsto no caput deste artigo poderá ser restrito a startups, assim considerados os microempreendedores individuais, as microempresas e as empresas de pequeno porte, de natureza emergente e com grande potencial, que se dediquem à pesquisa, ao desenvolvimento e à implementação de novos produtos ou serviços baseados em soluções tecnológicas inovadoras que possam causar alto impacto, exigida, na seleção definitiva da inovação, validação prévia fundamentada em métricas objetivas, de modo a demonstrar o atendimento das necessidades da Administração."

Não há dúvidas do escopo mais restritivo da descrição contida na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que se limita a mencionar microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte, ao passo que o conceito trazido pelo Marco Legal das Startups considera, além dessas figuras, o empresário individual (não necessariamente enquadrado como MEI, para os fins da lei complementar 128, de 19/12/2008), a empresa individual de responsabilidade limitada (sobre a qual se deve ter em vista a recentíssima previsão do art. 41 da lei 14.195, de 26/08/20214), as sociedades empresárias, as sociedades cooperativas e as sociedades simples. O rol, portanto, é amplo.

Voltando aos investimentos, prevê o art. 5º, §1º, do Marco Legal das Startups os seguintes instrumentos: (i) contrato de opção de subscrição de ações ou de quotas celebrado entre o investidor e a empresa (inc. I); (ii) contrato de opção de compra de ações ou de quotas celebrado entre o investidor e os acionistas ou sócios da empresa (inc. II); debênture conversível emitida pela empresa nos termos da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (inc. III); contrato de mútuo conversível em participação societária celebrado entre o investidor e a empresa (inc. IV); estruturação de sociedade em conta de participação celebrada entre o investidor e a empresa (inc. V); o já citado contrato de investimento-anjo do art. 61-A da lei complementar 123/2006 (inc. VI); outros instrumentos5 de aporte de capital em que o investidor, pessoa física ou jurídica, não integre formalmente o quadro de sócios da startup e/ou não tenha subscrito qualquer participação representativa do capital social da empresa (inc. VII).6

Para o fomento às startups, já era usual, em anos recentes, a utilização da maioria dos instrumentos acima listados. A grande dúvida, como ressalta Éderson Garin Porto, sempre envolveu a avaliação de uma startup e do consequente risco de nela investir, além, é claro, da dificuldade de seleção do melhor instrumento para isso.7

De fato, os chamados pitchs – eventos realizados para a apresentação de ideias ou negócios inovadores8 – se tornaram frequentes no Brasil. Rodadas de investimentos também já eram uma realidade antes do advento da lei e, sem dúvidas, a pujança da inovação no país, especialmente no contexto do empreendedorismo de base tecnológica, já havia se tornado verdadeira força-motriz de um novo modo de empreender. Como consequência, a formalização de pactos estruturados das mais diversas maneiras – nem sempre adequadas –, com o objetivo precípuo de permitir investimentos, demandava resposta legislativa.

O resguardo dos investidores, como se sabe, nunca foi absoluto. Riscos são inerentes a qualquer negócio, em especial aos que ainda estão em estágios muito iniciais, pouco maduros, ou que dependam de ideias inovadoras, mas carentes de testagem. Por isso, conflitos de interesse entre investidores e empreendedores sempre assombraram o ecossistema de inovação brasileiro. Além disso, soluções adaptadas, como mútuos feneratícios pouco claros e mal estruturados, ou até mesmo a constituição de sociedades em comandita simples, serviam como expedientes alternativos para tentativas vãs de “blindagem” contra o insucesso. Porém, outras formas de investimento, como mútuos conversíveis e stock options, propiciavam resultados mais satisfatórios e melhor segurança jurídica.

Naturalmente, eventual falência e suas nefastas consequências sempre foram e continuarão sendo abominadas por investidores que desejam investir, lucrar e fomentar a inovação disruptiva. Para criar um ambiente de maior segurança e incentivo, a própria figura do investidor-anjo já havia sido salvaguardada por previsão legal expressa de não responsabilização e não contemplação pela desconsideração da personalidade jurídica, como se lê na própria legislação: "o investidor-anjo (...) não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, não se aplicando a ele o art. 50 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil" (art. 61-A, §4º, II, LC 155/2016).

O mesmo se fez, agora, quanto aos demais instrumentos definidos no Marco Legal, cujo artigo 8º prevê, em seu inciso I, que o investidor "não será considerado sócio ou acionista nem possuirá direito a gerência ou a voto na administração da empresa, conforme pactuação contratual”; além disso, também prevê, em seu inciso II, que “não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, e a ele não se estenderá o disposto no art. 50 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), no art. 855-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo decreto-lei 5.452, de 1º de maio de 1943, nos arts. 124, 134 e 135 da lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), e em outras disposições atinentes à desconsideração da personalidade jurídica existentes na legislação vigente".

Tais previsões estão plenamente alinhadas ao que já se esperava da nova lei e ao que já existia para a figura do investidor-anjo, e revelam o incremento da segurança jurídica para o investidor que deseje se valer de algum dos instrumentos listados no artigo 5º da lei. Não o responsabilizar, por não ter ele qualquer ingerência sobre a administração empresarial, é medida coerente e lógica; da mesma forma, impedir que se lhe atinja eventual desconsideração da personalidade jurídica da startup na qual investiu é medida que produz equilíbrio no ecossistema brasileiro de inovação.

Como alerta Leonardo Parentoni, "não há que se falar em desconsideração da personalidade jurídica, qualquer que seja a modalidade, quando não se está diante de ao menos dois centros autônomos de imputação, cada qual dotado de patrimônio próprio, ao qual se limita a responsabilidade de seus membros, pois a função desta teoria é justamente responsabilizar um deles por dívida formalmente contraída pelo outro".9

Porém, há uma regra excepcional. Pelo que consta do parágrafo único do artigo 8º, "as disposições do inciso II do caput (...) não se aplicam às hipóteses de dolo, de fraude ou de simulação com o envolvimento do investidor."

Tais situações conduzirão à responsabilização do investidor e, naturalmente, dependerão de provas robustas do elemento subjetivo descrito na norma para que as garantias definidas sejam afastadas. Nota-se, nessa exceção, a preocupação do legislador com a garantia da higidez das relações jurídicas e da responsabilidade contratual nos instrumentos de investimento e fomento à inovação e ao empreendedorismo.

Um rol claro de instrumentos, com garantias explícitas que equilibram o referido ecossistema e geram incentivos, certamente produzirá bons efeitos, pois a lei não estabelece um "salvo-conduto" ao investidor. Ao contrário, o que se espera – inclusive em desejável atuação cooperativa e direcionada à consecução das finalidades contratuais – é que haja constante fiscalização do bom desempenho da startup, com vistas à constituição de ambientes favoráveis ao seu florescimento e à sua alavancagem no mercado. Para tanto, a valorização da segurança jurídica e da liberdade contratual atuam como premissas para a promoção do investimento e do aumento da oferta de capital direcionado a iniciativas inovadoras, que conectam investidores e empreendedores nesse irrefreável ecossistema.

A nova lei, apesar de omissa quanto a alguns temas que poderia ter abordado melhor, tem muitos méritos, pois traz clareza a assuntos que já haviam se tornado comuns na práxis contratual e não perde de vista a complexidade da matéria, uma vez que não cria contextos de absoluta irresponsabilidade para investidores. 

*José Luiz de Moura Faleiros Júnior é doutorando em Direito pela USP e pela UFMG. Mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFU. Especialista em Direito Processual Civil, Direito Civil e Empresarial, Direito Digital e Compliance. Membro do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Advogado e professor.

__________

1 OIOLI, Erik Frederico; RIBEIRO JR., José Alves; LISBOA, Henrique. Financiamento da startup. In: OIOLI, Erik Frederico. Manual de direito para startups. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 99.

2 RIES, Eric. The lean startup: how today's entrepreneurs use continuous innovation to create radically successful businesses. Nova Iorque: Crown, 2011, p. 24. Em seu clássico conceito, uma startup pode ser definida como "(...) an organization dedicated to creating something new under conditions of extreme uncertainty."

3 "Art. 4º São enquadradas como startups as organizações empresariais ou societárias, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados.

§ 1º Para fins de aplicação desta Lei Complementar, são elegíveis para o enquadramento na modalidade de tratamento especial destinada ao fomento de startup o empresário individual, a empresa individual de responsabilidade limitada, as sociedades empresárias, as sociedades cooperativas e as sociedades simples:

I - com receita bruta de até R$ 16.000.000,00 (dezesseis milhões de reais) no ano-calendário anterior ou de R$ 1.333.334,00 (um milhão, trezentos e trinta e três mil trezentos e trinta e quatro reais) multiplicado pelo número de meses de atividade no ano-calendário anterior, quando inferior a 12 (doze) meses, independentemente da forma societária adotada;

II - com até 10 (dez) anos de inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia; e

III - que atendam a um dos seguintes requisitos, no mínimo:

a) declaração em seu ato constitutivo ou alterador e utilização de modelos de negócios inovadores para a geração de produtos ou serviços, nos termos do inciso IV do caput do art. 2º da Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004; ou

b) enquadramento no regime especial Inova Simples, nos termos do art. 65-A da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006.

§ 2º Para fins de contagem do prazo estabelecido no inciso II do § 1º deste artigo, deverá ser observado o seguinte:

I - para as empresas decorrentes de incorporação, será considerado o tempo de inscrição da empresa incorporadora;

II - para as empresas decorrentes de fusão, será considerado o maior tempo de inscrição entre as empresas fundidas; e

III - para as empresas decorrentes de cisão, será considerado o tempo de inscrição da empresa cindida, na hipótese de criação de nova sociedade, ou da empresa que a absorver, na hipótese de transferência de patrimônio para a empresa existente."

4 "Art. 41. As empresas individuais de responsabilidade limitada existentes na data da entrada em vigor desta Lei serão transformadas em sociedades limitadas unipessoais independentemente de qualquer alteração em seu ato constitutivo. Parágrafo único. Ato do Drei disciplinará a transformação referida neste artigo."

5 Nesse conceito aberto, pode-se enquadrar o vesting empresarial, omitido na lei, embora houvesse grande expectativa de que alguns delineamentos conceituais sobre sua aplicabilidade fossem nela inseridos. Acerca do tema e de suas peculiaridades, cf. FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Vesting empresarial: aspectos jurídicos relevantes à luz da teoria dos contratos relacionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

6 Para uma averiguação mais detalhada de cada um desses instrumentos, cf. MICHILES, Saulo. Marco Legal das Startups. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 31-84.

7 PORTO, Éderson Garin. Manual jurídico da startup. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020, p. 65-69.

8 CREMADES, Alejandro. The art of startup fundraising: pitching investors, negotiating the deal, and everything else. Nova Jersey: John Wiley & Sons, 2016, p. 26.

9 PARENTONI, Leonardo Netto. Desconsideração contemporânea da personalidade jurídica: dogmática e análise científica da jurisprudência brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 195.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

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Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.