Migalhas de Responsabilidade Civil

O crime compensa? A responsabilidade civil concorrencial como agente catalizador da probidade

As normas jurídicas e seus operadores devem buscar que a resposta a tal questionamento seja sempre negativa, de modo a garantir a obediência das leis pelos cidadãos.

24/11/2022

A resposta à pergunta que intitula este artigo define os rumos da política criminal de um país e impacta diretamente no comportamento social de sua nação. As normas jurídicas e seus operadores devem buscar que a resposta a tal questionamento seja sempre negativa, de modo a garantir a obediência das leis pelos cidadãos.

Nesse contexto, surge a lei 14.470/22, com menos de 1 semana de vigência, mas com mais de 5 anos de trajetória legislativa. Fruto do PL 11.275/18, originário do PLS 283/16, a nova lei altera a Lei Brasileira de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/11) para recrudescer a política de combate às violações à ordem econômica.

Importante ressaltar que as infrações à ordem econômica impactam fortemente a população, pois seus efeitos tendem a atingir de milhares a milhões de vítimas, tanto que a proteção à concorrência e ao consumidor está prevista na Constituição Federal e muitas de tais infrações são também consideradas crimes, conforme texto da lei 8.137/90.

E como a nova lei poderá mudar o equilíbrio entre incentivos e desincentivos à prática de infrações concorrenciais? Novamente, devemos retornar à pergunta inicial: o crime compensa? Tratando-se de crimes econômicos no Brasil, a resposta até o momento é: SIM. Isso porque os infratores não devolvem às vítimas os ganhos obtidos ilicitamente.

Apesar de existirem inúmeras demandas individuais e coletivas, além de ações civis públicas, que visam a reparação dos prejudicados por cartéis (pior das infrações à concorrência) e outras condutas de abuso de poder econômico, não há no Brasil ainda uma condenação final em favor das vítimas de qualquer um dos grandes cartéis condenados pelo CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica.

São muitas as dificuldades enfrentadas pelas vítimas na busca pela indenização de seu prejuízo e a lei recém-promulgada auxiliará no enfrentamento de algumas dessas questões. Destacam-se 3 temas principais do texto da lei 14.470/22: a criação do dano em dobro; a harmonização do prazo prescricional e a data inicial de sua contagem; e a vedação expressa à presunção de repasse do dano.

A nova lei determina que todos os prejudicados por infrações à ordem econômica terão direito ao ressarcimento em dobro por seu prejuízo. É o chamado double damage, que tem como paralelo internacional o treble damage, previsto pela legislação americana para as infrações de cartel, entre outras. No ordenamento pátrio também não é novidade, visto que a pena civil ocorre em outras situações, como nos casos do segurador de má-fé, do cobrador de dívida já paga e do construtor invasor de má-fé1.

A importância dessa previsão legal não reside apenas no fato (óbvio) de ressarcir em dobro a vítima das infrações concorrenciais, mas principalmente em gerar grande desincentivo à prática do ilícito. A persecução privada dos danos concorrenciais é essencial para complementar a iniciativa pública de punição dos infratores, pois torna o ilícito financeiramente inviável.

Na medida em que o violador devolve todo o lucro que obteve com sua prática infratora e ainda paga uma multa ao Estado, ele passa a ter prejuízo com o ilícito. Mas ainda há potenciais ganhos derivados do fato de que a taxa de detecção das violações pelo Estado é inferior a 100% e que também são poucas as vítimas que buscam o ressarcimento por seus danos, por diversos motivos. Assim, a implementação do dano em dobro equilibra a situação.

De outro lado, a nova lei também não descuida dos incentivos à própria descoberta dos ilícitos, ao usar o dano em dobro também como medida de aumento do incentivo à confissão das infrações por seus agentes. Tal efeito é obtivo pelo fato de o recente diploma excluir a imposição do dano em dobro para os signatários de acordos de leniência e termos de compromisso de cessação de prática com a autoridade de defesa da concorrência, bem como gerar uma excludente da responsabilização solidárias em benefício dos mesmos.

O segundo ponto de importância da lei é a definição expressa do prazo e termo inicial da prescrição. Antes da promulgação da lei em comento, o prazo prescricional era dúplice, sendo de 5 anos para as vítimas enquadradas no conceito de consumidor do artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e de 3 anos para as demais vítimas, conforme previsão do artigo 206, §3º, V do Código Civil. A partir de agora, todas as vítimas estão sujeitas ao prazo quinquenal.

A nova lei também elimina em definitivo eventual dúvida que ainda houvesse sobre a interpretação legal do prazo inicial para a contagem da prescrição. O Tribunal de Justiça de São Paulo (perante o qual tramita a grande maioria das demandas de indenização por dano concorrencial do país) já havia consolidado o entendimento de que a data da publicação da decisão final do CADE demarca o termo de início da contagem da prescrição2, seguindo o entendimento das normas e decisões internacionais3.

A nova lei, portanto, não inova, mas confirma a interpretação já adotada para a legislação vigente, na medida em que determina que a contagem do prazo prescricional só pode ser iniciada quando ocorre a ciência inequívoca do ilícito pela vítima (em respeito à já consagrada teoria da actio nata) e indica de modo expresso que tal ciência ocorre somente no momento da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo CADE.

Ainda, a nova lei determina expressamente que o repasse do sobrepreço não pode ser presumido e estipula que o ônus da prova de tal alegação é do réu, ou seja, do agente que infringiu a norma concorrencial. Novamente, o tema era objeto de muita discussão nos tribunais brasileiros e a solução podia ser obtida a partir da intepretação das normas já vigentes nos Códigos Civil e de Processo Civil.

Contudo, a inclusão do §4º no artigo 47 da Lei de Defesa da Concorrência é de grande importância para eliminar qualquer dúvida e definir cabalmente a regra processual aplicável. O uso da teoria do repasse dos danos pelos infratores é fonte de grande protelação processual e criava grandes dificuldades às vítimas, que não podiam ter acesso aos dados econômicos de formação de preço de toda a cadeia produtiva. Novamente, a solução trazida pela nova lei se alinha com as legislações americana e europeia, mantendo o Brasil na vanguarda da regulação sobre o tema.

Por fim, vale dizer que o PL 11.275/18 previa em seu texto final a obrigatoriedade da inserção de cláusula arbitral nos acordos celebrados pelo CADE (seja leniência ou termo de cessação de conduta), de modo a delegar à vítima a escolha de qual procedimento utilizar para conduzir sua demanda (judicial ou arbitral), mas foi vetado pela Presidência da República.

Certamente, a arbitragem traria impulso ainda maior às iniciativas de indenização dos danos concorrenciais, em razão da maior celeridade e tecnicidade de tal procedimento em comparação ao processo judicial. Mas tal veto não retira o brilho da lei 14.470, que nasceu vocacionada para mostrar que a partir de agora, no Brasil, o crime econômico certamente não compensa.

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1 Vide artigos 773, 940 e 1.259 do Código Civil.

2 Vide decisões nesse sentido: TJ/SP – Ação nº 1050035-45.2017.8.26.0100; TJ/SP – Ação nº 1050042-37.2017.8.26.0100; TJ/SP – Ação nº 1076912-22.2017.8.26.0100; TJ/SP – Ação nº 1049435-24.2017.8.26.0100; TJ/SP – Ação nº 1050023-31.2017.8.26.0100; TJ/SP – Ação nº 1076734-73.2017.8.26.0100; TJ/SP – AI nº 2103889-09.2018.8.26.0000; TJ/SP – AI nº 2086289-72.2018.8.26.0000; e TJ/SP – Ação nº 1014284-14.2015.8.26.0020.

 

3 Esse é também o entendimento dos tribunais europeus, especialmente aqueles que seguem o mesmo sistema jurídico brasileiro (família romano-germânica), tal como os da Alemanha. Todas as normas existentes no âmbito da Comunidade Europeia (artigo 10º da Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho) e nos EUA (Clayton Act 15 U.S.C. § 16(i)) asseguram que os prejudicados possam iniciar suas ações para indenização por dano concorrencial após a decisão final das autoridades de defesa da concorrência.

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*Bruno Oliveira Maggi é advogado e professor em São Paulo para cursos de graduação e pós-graduação. Doutor, mestre e bacharel pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Sócio fundador de Bruno Maggi Advogados, reconhecido pela Análise Advocacia, pelo Best Lawyers e pela Leaders League como líder no Brasil na área de reparação por danos concorrenciais. Diretor da International Bar Association (IBA). Autor do livro "Cartel: Responsabilidade Civil Concorrencial", além de inúmeros capítulos de livros e artigos no Brasil e no exterior.

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Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

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Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.