Migalhas de Responsabilidade Civil

O afeto se tornou dever jurídico? - A nova face da responsabilidade civil na lei 15.240/25

A coluna analisa a lei 15.240/25, que trouxe o abandono afetivo como ilícito civil.

13/11/2025

Em 28 de outubro deste ano, foi sancionada a lei 15.240, que, segundo a ementa, objetiva “caracterizar o abandono afetivo como ilícito civil”. Com ela, mais uma vez um questionamento volta ao Direito Civil: o afeto pode ser caracterizado como dever jurídico? A violação do afeto acarreta responsabilidade civil?

O vocábulo afeto deriva da forma latina affectus, no sentido de algo que está afetado, perturbado no ânimo. Daí decorreram, ainda no latim antigo, as ideias de desejado, comovido. No português, Houaiss e Villar descrevem a acepção de “sentimento terno”, de “sentimento ou emoção em diferentes graus de complexidade”. (2001, p. 102)

Freud (2010), no texto “O inconsciente”, de 1915, coloca o afeto como expressão consciente de uma pulsão, exteriorizando estados internos da vida psíquica. A pulsão é um representante no corpo de um estado psíquico, uma força interna que nasce das nossas necessidades biológicas. O afeto é uma expressão pulsional, que faz o caminho entre o estado interno e a exteriorização. Por isso, o afeto é caracterizado como a energia, a carga emocional, o sentimento bruto.

Trata-se, pois, de uma expressão de um sentimento e, como tal, um valor que o Direito deseja nas relações familiares. Um ambiente familiar saudável é um lugar em que o afeto envolve as pessoas, de forma a permitir o melhor desenvolvimento da própria personalidade. É um valor de suma importância para que haja um ambiente saudável.

Não há imperatividade jurídica nesse elemento, mas diretriz moral de grande relevância. Ninguém tem obrigação de amar e o Direito não tem como impor que, na exposição freudiana, o representante de um estado psíquico atue no corpo.

Por isso não há como transformar o afeto em dever. Mas o que fez a lei 15.240/25 não foi transformar o afeto em dever jurídico?

Não. A resposta definitivamente é não, até porque não tem como o Direito promover essa pulsão. O que a lei 15.240/25 fez foi tentar impor objetivamente assistência afetiva dos pais em relação aos filhos. Ela não alcança a subjetividade do afeto, mas poderia compelir os pais a prestar assistência, uma assistência que exige exteriorização, mas não necessariamente afeto.

A lei, em sua tentativa de objetivação, considerou como assistência afetiva a atuação dos pais na orientação e formação dos filhos menores como seres humanos que se desenvolvem rumo à autonomia. Por isso, o §3º do art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente tem a seguinte redação na delimitação da assistência afetiva:

I - orientação quanto às principais escolhas e oportunidades profissionais, educacionais e culturais;

II - solidariedade e apoio nos momentos de intenso sofrimento ou de dificuldade;

III - presença física espontaneamente solicitada pela criança ou adolescente quando possível de ser atendida.

Em verdade, esse parágrafo, com suas limitações linguísticas, procura explicitar funções de acompanhamento e apoio que, de forma ampla, já compunham a autoridade parental, ou o poder familiar, na expressão do CC. No entanto, seus incisos, ao tentarem minuciar como a assistência afetiva se concretizaria, acabam criando categorizações de difícil mensuração. Como avaliar ou obrigar alguém a realizar “solidariedade e apoio em momentos de intenso sofrimento ou dificuldade”? Há dificuldade até mesmo em se avaliar o sofrimento psíquico próprio imagine o sofrimento psíquico alheio! Ou como avaliar a pertinência ou qualidade da “orientação quanto às principais escolhas e oportunidades profissionais”?

Embora sejam atuações parentais eticamente desejáveis, esbarram em dois grandes desafios jurídicos: a inexequibilidade afetiva e o risco de violação à alteridade.

De um lado, a afetividade, como já explorado, não seria imperativo jurídico, mas um valor moral e psíquico de expressão subjetiva. Não há técnica probatória capaz de aferir sua presença ou ausência de forma objetiva e universal.

De outro lado, a tentativa de normatizar condutas relacionais que tocam a dimensão íntima do sujeito pode colidir com o princípio do livre desenvolvimento da personalidade, constitucionalmente assegurado como núcleo essencial da dignidade humana.

Nesse ponto, importa distinguir a afetividade (como expressão da pulsão psíquica, como em Freud) da solidariedade, que sim, é um princípio jurídico dotado de força impositiva. Como destacam Almeida e Rodrigues Júnior (2023, p. 88), “a solidariedade é exigível, a afetividade, não”.

Por isso, se faz necessário interpretar o parágrafo não como imposição de sentimento, mas como reforço da dimensão objetiva do poder familiar, isto é, como dever de presença, orientação e suporte, sem pretensão de alcançar o conteúdo emocional da relação.

A tentativa de obrigar alguém a “amar”, a “sentir empatia”, a “cuidar com afeto”, ainda que motivada pelo melhor interesse da criança e do adolescente, infringe a lógica da alteridade e o princípio do livre desenvolvimento da personalidade. A ideia de que o outro não é extensão do eu, mas sujeito de si mesmo, com direito de não sentir, de não corresponder, de não se vincular emocionalmente. Exigir afeto como dever é, paradoxalmente, uma forma de violar a liberdade de ser e de não ser, fundamento do próprio livre desenvolvimento da personalidade.

Além disso, impõe-se uma reflexão sobre a patrimonialização das relações humanas. Ao prever no parágrafo único que “constitui conduta ilícita, sujeita a reparação de danos [...] a ação ou a omissão que ofenda direito fundamental da criança ou do adolescente, incluídos os casos de abandono afetivo”, a nova lei retoma a lógica reparatória civil clássica, numa infrutífera tentativa de levá-la ao campo das emoções e dos vínculos, em uma operação que pode transformar experiências humanas falhas ou imperfeitas em passivos indenizáveis.

Como proposta de mudança para uma nova perspectiva, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto põem em foco um novo aspecto que a responsabilidade civil pode assumir: a desmonetização da reparação de danos extrapatrimoniais, que pode propiciar “ao ofensor uma reflexão crítica sobre o comportamento que deu origem ao dano injusto” e imprimir uma função social à responsabilidade civil. (2024, p. 782)

Nesse sentido, uma opção ao descumprimento do poder familiar seria a condenação a prestação de serviços em instituição de acolhimento a crianças e adolescentes ou a participação compulsória em grupos de reeducação e tenham acompanhamento psicossocial de maneira obrigatória, assim como já ocorre na lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, art. 22, VI e VII, conhecida como Maria da Penha.

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

[...] VI - comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e

VII - acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.

Para além do aspecto patrimonial, Judith Butler (2004) ainda adverte que o reconhecimento do outro deve passar pelo respeito à precariedade da vida humana, e isso inclui aceitar que as relações familiares nem sempre se constroem no molde idealizado pelo legislador ou pela moral social dominante.

Ao converter toda ausência em dano e todo dano em valor patrimonial, corre-se o risco de reduzir a complexidade das relações humanas a um código binário de culpa e compensação financeira, sem abrir espaço para reparações simbólicas, transformações relacionais ou reconstruções familiares mediadas por afeto genuíno.

Sobre a precariedade da vida humana em Butler, Pombo e Birman explicam:

Precariedade implica viver socialmente, isto é, o fato de que a vida de alguém está sempre, de alguma forma, nas mãos do outro” (Butler, 2015, p. 31). O conceito de precariedade em Butler se aproxima ao de desamparo em Freud: estado original e constituinte do sujeito, que o coloca, desde o nascimento, em relação com o outro e em dependência dele. (2022, p. 7)

Com esses argumentos, não se descarta, todavia, a possibilidade de responsabilização civil no Direito de Família. Mas o dano que juridicamente deve ser provado não se faz pela falta de afeto, mas por falha no cumprimento dos deveres jurídicos do poder familiar.

O poder familiar é uma situação subjetiva com características interessantes, pois exprime um poder-dever. Todo poder-dever concede a alguém uma competência que deverá ser exercida em função de outrem. Logo, quando o CC estabelece que cabe aos pais dirigir a criação e a educação dos filhos (art. 1.634, I), o faz no sentido de que aos pais cabem algumas escolhas, mas sempre vinculadas ao melhor interesse da criança e do adolescente, no intuito de proporcionar instrumentos que colaborem para o livre desenvolvimento do filho.

Antes mesmo da nova lei, Maria Berenice Dias já colocava que “A missão constitucional dos pais, pautada nos deveres de assistir, criar e educar os filhos menores, não se limita a encargos de natureza patrimonial.” (2015, p. 466)

Enfim, sabe-se de antemão que os deveres dos pais - na esteira do princípio do livre desenvolvimento da pessoa e do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente - não poderiam mesmo se circunscrever à esfera patrimonial, sob pena de não efetivar esses mesmos princípios.

Não há, todavia, como incluir um dever de afeto, no sentido próprio da palavra. É possível se exigir algumas exteriorizações, como o dever de visitação.

Como Bruno Torquato de Oliveira Naves e Iara Antunes de Souza alertavam já em 2012:

[...] os casos levados a julgamento [naquela época] sob o fundamento do “abandono afetivo” não devem ser considerados sob o enfoque do afeto, mas do descumprimento de uma norma jurídica, em especial aquela que determina os poderes-deveres constituintes do poder familiar e funcionalizados em prol do filho menor. (2012, p. 415)

Enfim há a possibilidade de se reclamar indenização na relação paterno-filial, não por falta de afeto, algo impossível de ser avaliado do ponto de vista da psykhé humana, mas pelo descumprimento ou mau cumprimento dos deveres inerentes ao poder parental.

Não se desconhece que o afeto pode produzir efeito jurídico, na medida em que se espera que ele esteja presente nas relações familiares. No mesmo sentido, Almeida e Rodrigues Júnior afimam que “o caráter de juridicidade [...] está relacionado às consequências que a presença do afeto, na construção das relações familiares, pode gerar.” (2023, p. 80) E é o que se pretende com o reconhecimento da filiação socioafetiva. A filiação socioafetiva se comprova pelo afeto, dentre outras coisas. No entanto, não há como estabelecer um dever de afeto.

Enfim, embora louvável na intenção, a lei 15.240/25 exige leitura crítica, prudente e constitucionalmente sensível, de modo que a solidariedade possa ser cobrada sem invadir a liberdade subjetiva. O afeto continua não sendo dever. E não deve ser. Mas a presença, o cuidado e a orientação, estes sim podem e devem ser exigidos. Que o Direito saiba respeitar essa tênue, porém essencial, linha de fronteira.

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Referências

ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito civil: famílias. 3. ed. Belo Horizonte: Expert, 2023.

BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona: Paidós, 2004.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

FREUD, Sigmund. O inconsciente. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. v. 12: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 74-112.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SOUZA, Iara Antunes de. Da afetividade à responsabilidade: o pretenso “princípio jurídico da afetividade” no Direito de Família frente ao princípio da reparação integral. Revista Pensar (Revista de Ciência Jurídica da Universidade de Fortaleza), v. 17, n. 2, p. 398-419, jul.-dez. 2012. Disponível aqui.

POMBO, Mariana; BIRMAN, Joel. Psicanálise, precariedade e identidade na atualidade. Psicologia em estudo, v. 27, e49067, 2022. Disponível aqui.

ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Responsabilidade civil: teoria geral. Indaiatuba: Foco, 2024.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.