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O direito (autônomo) da criança e do adolescente a se vacinarem: quando os seus interesses se chocam com a autoridade parental

O direito (autônomo) da criança e do adolescente a se vacinarem: quando os seus interesses se chocam com a autoridade parental.

29/6/2021

O último texto publicado nessa coluna, de autoria de Angélica Ramos de Frias Sigollo, analisou o dever de pais e/ou mães de vacinarem seus filhos e filhas. A autora usou o recente debate sobre vacinação para Covid-19 como ponto de partida da discussão e explicou que a vacinação é sim obrigatória porque as liberdades individuais encontram limites no respeito às liberdades de outras pessoas, mas, apesar da obrigatoriedade, não se está diante de caso de vacinação forçada mediante o uso, por exemplo, de busca e apreensão de crianças e adolescentes para a aplicação de vacinas. Angélica também chamou a atenção para a possibilidade de aplicação de medidas de proteção contra os pais e/ou mães como multa, restrição ao exercício de atividades, impedimento de frequentar lugares, proibição de matrícula em escolas, dentre outras previstas em lei se houver situação de risco, pois prevalece o interesse de crianças e adolescentes e a necessidade de se observar a sua proteção integral, na forma do art. 227 da Constituição da República.

O mesmo tema, vacinação, dá origem a um outro debate: é obrigatório o consentimento parental para a vacinação de crianças e adolescentes? Ou, ainda, crianças e adolescentes têm direito próprio à vacinação, ainda que seus pais e/ou mães se oponham?

Em relação à Covid-19 esse debate ainda não surgiu porque a quantidade de vacinas disponíveis mundialmente ainda não atende a todas as pessoas, mas com a autorização da ANVISA para aplicação da vacina Pfizer a partir dos 12 anos de idade e a iminência da decisão europeia para autorizar ou não a Moderna entre os 12 e 17 anos de idade esse tema poderá ser levantado.

O ponto central para o debate sobre a escolha de adolescentes e crianças em temas de saúde está na proteção integral. Esse princípio foi incluído no art. 227 da Constituição da República e sua conceituação costuma ser feita referindo-se à condição da criança ou do adolescente como pessoa em desenvolvimento e titular de direitos (sujeito de direitos) a serem assegurados pela família, pela sociedade e pelo Estado. Em complemento a ele, o princípio do melhor interesse determina que as decisões que envolvam interesses de crianças e adolescentes devem ser orientados pelos seus melhores interesses.

Esse conceito, repetido à exaustão na doutrina e jurisprudência brasileiras, não consegue, contudo, esclarecer como ocorre a efetivação desses princípios, verificando-se que a proteção e o melhor interesse são definidos ou determinados pela visão da pessoa adulta que irá tomar a decisão. No caso de pais e/ou mães, porque se pressupõem que eles e/ou elas sabem o que melhor para seus filhos e filhas, ou, no caso do Poder Judiciário ou de órgãos da rede de assistência infantojuvenil, porque estão mais capacitados para essa finalidade.

Infelizmente no país ainda é baixa a compreensão e aplicação do art. 12 da Convenção sobre Direitos da Criança, que exige que os Estados Partes criem instrumentos que assegurem "à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser consideradas, em função da idade e da maturidade da criança".

A escuta ou oitiva a que se refere o art. 12 da Convenção e que se relaciona com o art. 227 da Constituição e com o art. 3o do ECA não significa uma oitiva desorganizada nem desimportante. Ela é um procedimento de incentiva o acolhimento da criança e do adolescente e a sua inclusão em processos decisórios sobre si, em que as pessoas adultas têm o dever de ouvir e de entender os medos, ansiedades e escolhas manifestadas pela criança ou adolescente e tomarem a decisão levando essas informações em consideração.

Ao lado do direito de escuta da criança e do adolescente, há também que desmistificar a extensão da autoridade parental, que não torna corpos de crianças como propriedade de seus pais e/ou mães. Veja-se: a transformação do pátrio poder em poder familiar e, em seguida, autoridade parental, não fez com se desenvolvesse uma teoria crítica sobre a extensão do poder-dever de pais. Apesar de nessa transformação ter ocorrido uma funcionalização desse encargo para atender os interesses da criança, a doutrina, tanto em direito civil como em infância, não perceberem que crianças não podem ser consideradas nem posse nem propriedade dos pais e/ou mães, de modo que a possibilidade jurídica de interferência de pais e/ou mães sobre o corpo, a autonomia existencial e, também, sobre aspectos de saúde dos filhos e filhas é, hoje, limitada.

Dito de outra forma, a autoridade parental permaneceu vinculada ao papel tutelar e protetivo, enquanto o paradigma constitucional passou a reconhecer que crianças e adolescentes são, simultaneamente, titulares de direito e destinatários de proteção.

O debate entre o exercício de liberdades civis por adolescente e a autoridade parental já foi objeto de debate na Inglaterra e País de Gales e criou um importante precedente que pode nos servir para responder à proposta desse artigo. O caso foi julgado em 1986 e é conhecido como Gillick vs West Norfolk and Wisbech Area Health Authority.

No caso, Victoria Gillick ajuizou ação questionando orientação do departamento de saúde que autorizava a prescrição de métodos contraceptivos para pessoas com menos de 16 anos de idade sem a autorização dos pais. O recurso foi decidido pela House of Lords que tomou uma decisão a partir da capacidade da criança ou adolescente fornecer consentimento, o que pressupõe a sua escuta. De acordo com a decisão, o consentimento da criança ou do adolescente irá prevalecer sobre a decisão dos pais e/ou mães quando se verificar que (a) a criança ou adolescente apresente maturidade e capacidade mental; (b) entenda as vantagens, desvantagens e potencial de impactos no longo prazo; (c) entenda os riscos, implicações e consequências que podem surgir com a decisão; (d) a forma como a criança ou adolescente entende as informações e aconselhamento oferecidos, bem como as alternativas existentes; (e) a sua capacidade de explicar racionalmente sua decisão.

O Parecer 25/2013 do CFM orienta-se nesse sentido, reconhecendo o direito ao atendimento de adolescentes entre 12 e 18 anos de idade, aqui chamados de "adolescentes maduros",assim como o Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem, ambos reconhecendo a prevalência da decisão do adolescente.

Como conclusão, retorno à pergunta inicial já para respondê-la: sim, crianças e adolescentes têm o direito de se vacinarem, se essa for a sua decisão e ainda que não seja o desejo de seus pais e/ou mães, e quando essa decisão for possível de ser realizada pelas diretrizes das autoridades em vigilância sanitária. Cuida-se de efetivação da proteção integral e do direito de escuta, temas que estão exigindo uma reformulação teórica para que se reconheça a real posição jurídica de adolescentes enquanto sujeitos de direito.

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Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.