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O direito (autônomo) da criança e do adolescente a se vacinarem: quando os seus interesses se chocam com a autoridade parental

terça-feira, 29 de junho de 2021

Atualizado às 08:48

O último texto publicado nessa coluna, de autoria de Angélica Ramos de Frias Sigollo, analisou o dever de pais e/ou mães de vacinarem seus filhos e filhas. A autora usou o recente debate sobre vacinação para Covid-19 como ponto de partida da discussão e explicou que a vacinação é sim obrigatória porque as liberdades individuais encontram limites no respeito às liberdades de outras pessoas, mas, apesar da obrigatoriedade, não se está diante de caso de vacinação forçada mediante o uso, por exemplo, de busca e apreensão de crianças e adolescentes para a aplicação de vacinas. Angélica também chamou a atenção para a possibilidade de aplicação de medidas de proteção contra os pais e/ou mães como multa, restrição ao exercício de atividades, impedimento de frequentar lugares, proibição de matrícula em escolas, dentre outras previstas em lei se houver situação de risco, pois prevalece o interesse de crianças e adolescentes e a necessidade de se observar a sua proteção integral, na forma do art. 227 da Constituição da República.

O mesmo tema, vacinação, dá origem a um outro debate: é obrigatório o consentimento parental para a vacinação de crianças e adolescentes? Ou, ainda, crianças e adolescentes têm direito próprio à vacinação, ainda que seus pais e/ou mães se oponham?

Em relação à Covid-19 esse debate ainda não surgiu porque a quantidade de vacinas disponíveis mundialmente ainda não atende a todas as pessoas, mas com a autorização da ANVISA para aplicação da vacina Pfizer a partir dos 12 anos de idade e a iminência da decisão europeia para autorizar ou não a Moderna entre os 12 e 17 anos de idade esse tema poderá ser levantado.

O ponto central para o debate sobre a escolha de adolescentes e crianças em temas de saúde está na proteção integral. Esse princípio foi incluído no art. 227 da Constituição da República e sua conceituação costuma ser feita referindo-se à condição da criança ou do adolescente como pessoa em desenvolvimento e titular de direitos (sujeito de direitos) a serem assegurados pela família, pela sociedade e pelo Estado. Em complemento a ele, o princípio do melhor interesse determina que as decisões que envolvam interesses de crianças e adolescentes devem ser orientados pelos seus melhores interesses.

Esse conceito, repetido à exaustão na doutrina e jurisprudência brasileiras, não consegue, contudo, esclarecer como ocorre a efetivação desses princípios, verificando-se que a proteção e o melhor interesse são definidos ou determinados pela visão da pessoa adulta que irá tomar a decisão. No caso de pais e/ou mães, porque se pressupõem que eles e/ou elas sabem o que melhor para seus filhos e filhas, ou, no caso do Poder Judiciário ou de órgãos da rede de assistência infantojuvenil, porque estão mais capacitados para essa finalidade.

Infelizmente no país ainda é baixa a compreensão e aplicação do art. 12 da Convenção sobre Direitos da Criança, que exige que os Estados Partes criem instrumentos que assegurem "à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser consideradas, em função da idade e da maturidade da criança".

A escuta ou oitiva a que se refere o art. 12 da Convenção e que se relaciona com o art. 227 da Constituição e com o art. 3o do ECA não significa uma oitiva desorganizada nem desimportante. Ela é um procedimento de incentiva o acolhimento da criança e do adolescente e a sua inclusão em processos decisórios sobre si, em que as pessoas adultas têm o dever de ouvir e de entender os medos, ansiedades e escolhas manifestadas pela criança ou adolescente e tomarem a decisão levando essas informações em consideração.

Ao lado do direito de escuta da criança e do adolescente, há também que desmistificar a extensão da autoridade parental, que não torna corpos de crianças como propriedade de seus pais e/ou mães. Veja-se: a transformação do pátrio poder em poder familiar e, em seguida, autoridade parental, não fez com se desenvolvesse uma teoria crítica sobre a extensão do poder-dever de pais. Apesar de nessa transformação ter ocorrido uma funcionalização desse encargo para atender os interesses da criança, a doutrina, tanto em direito civil como em infância, não perceberem que crianças não podem ser consideradas nem posse nem propriedade dos pais e/ou mães, de modo que a possibilidade jurídica de interferência de pais e/ou mães sobre o corpo, a autonomia existencial e, também, sobre aspectos de saúde dos filhos e filhas é, hoje, limitada.

Dito de outra forma, a autoridade parental permaneceu vinculada ao papel tutelar e protetivo, enquanto o paradigma constitucional passou a reconhecer que crianças e adolescentes são, simultaneamente, titulares de direito e destinatários de proteção.

O debate entre o exercício de liberdades civis por adolescente e a autoridade parental já foi objeto de debate na Inglaterra e País de Gales e criou um importante precedente que pode nos servir para responder à proposta desse artigo. O caso foi julgado em 1986 e é conhecido como Gillick vs West Norfolk and Wisbech Area Health Authority.

No caso, Victoria Gillick ajuizou ação questionando orientação do departamento de saúde que autorizava a prescrição de métodos contraceptivos para pessoas com menos de 16 anos de idade sem a autorização dos pais. O recurso foi decidido pela House of Lords que tomou uma decisão a partir da capacidade da criança ou adolescente fornecer consentimento, o que pressupõe a sua escuta. De acordo com a decisão, o consentimento da criança ou do adolescente irá prevalecer sobre a decisão dos pais e/ou mães quando se verificar que (a) a criança ou adolescente apresente maturidade e capacidade mental; (b) entenda as vantagens, desvantagens e potencial de impactos no longo prazo; (c) entenda os riscos, implicações e consequências que podem surgir com a decisão; (d) a forma como a criança ou adolescente entende as informações e aconselhamento oferecidos, bem como as alternativas existentes; (e) a sua capacidade de explicar racionalmente sua decisão.

O Parecer 25/2013 do CFM orienta-se nesse sentido, reconhecendo o direito ao atendimento de adolescentes entre 12 e 18 anos de idade, aqui chamados de "adolescentes maduros",assim como o Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem, ambos reconhecendo a prevalência da decisão do adolescente.

Como conclusão, retorno à pergunta inicial já para respondê-la: sim, crianças e adolescentes têm o direito de se vacinarem, se essa for a sua decisão e ainda que não seja o desejo de seus pais e/ou mães, e quando essa decisão for possível de ser realizada pelas diretrizes das autoridades em vigilância sanitária. Cuida-se de efetivação da proteção integral e do direito de escuta, temas que estão exigindo uma reformulação teórica para que se reconheça a real posição jurídica de adolescentes enquanto sujeitos de direito.