Migalhas Infância e Juventude

32 anos do estatuto da criança e do adolescente: proteção integral em risco?

Enquanto Estado, sociedade e família, devemos assegurar que crianças, já na primeira infância, tenham acesso e prioridade absoluta aos direitos fundamentais apontados nos arts. 227 da CF e 4º do ECA, além dos cuidados que possibilitem seu desenvolvimento saudável

19/7/2022

Trinta e dois anos se passaram desde a promulgação do estatuto da criança e do adolescente e, na atual conjectura em que o país se encontra, cabe-nos um questionamento: O paradigma da proteção integral está em risco?

Os dados abaixo demonstram tamanho temor.

Hoje no Brasil, temos mais de 33 milhões de pessoas que passam fome, como aponta o 2º inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil1, publicado no último dia 8 de junho.

De acordo com o referido inquérito, o número de crianças em situação de insegurança alimentar, quase dobrou entre os anos de 2020 e 2022, de 9,4% para 18,1%. Cerca de 74% de crianças de 2 a 9 anos, não tem acesso a três refeições diárias. Em função do quadro pandêmico e a deflagração da crise sanitária, que resultou no fechamento das escolas, 13% das crianças brasileiras deixaram de comer na pandemia.

Não obstante à ausência de proteção aos direitos à alimentação, observamos o crescente número de crianças em situação de rua e em exploração de trabalho infantil.

No ano de 2020, pesquisa feita pela UNICEF2, indicou um aumento de 26% no número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. Conforme relatório da Fundação Abrinq3, cerca de 1,7 milhão de crianças e adolescentes estão ocupados com trabalho.

Referente à educação, no final de 2020, cerca de 5 milhões de crianças e adolescentes encontravam-se fora da rede escolar, agravando ainda mais a situação de exploração de trabalho infantil (dados Unicef). No ano de 2021, dados do relatório da Fundação Abrinq, aponta que cerca de 25,3% de crianças deixaram de ser matriculadas no ensino infantil, o que compromete seu desenvolvimento, ainda na primeira infância.

Além destes dados alarmantes, outros são ainda mais assustadores. No ano de 2021, mais de 35 mil crianças e adolescentes foram vítimas de estupro, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ainda mais grave é o fato de que a cada vinte minutos, uma criança dá à luz4. Casos de maus-tratos contra crianças, nestes dois anos, subiram 21,3%5.

Diante destes dados, não resta dúvidas quanto a ausência de proteção aos direitos de crianças e adolescentes.

Mais do que isso, explicita violação de direitos assegurados constitucionalmente, sendo-nos necessário lembrar os ditames do art. 227 da CF/88, que traz em seu escopo que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada pela EC 65/10), que é reforçado pelo art. 4º do ECA, reforça “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Há falhas. E por isso, reforço meu questionamento inicial: o paradigma da proteção integral está em risco?

O Brasil é signatário da convenção sobre os direitos da Criança, ratificada em 1990 e assumiu o compromisso em assegurar os direitos de crianças e adolescentes. Contudo, os dados não mentem e a negligência a estes sujeitos de direitos é a cada dia mais notória, colocando o paradigma da Proteção Integral em risco.

Desta feita, compete-nos reforçar que enquanto Estado, sociedade e família, devemos assegurar que crianças, já na primeira infância, tenham acesso e prioridade absoluta aos direitos fundamentais apontados nos arts. 227 da CF e 4º do ECA, além dos cuidados que possibilitem seu desenvolvimento saudável, tal como disposto também no marco da primeira infância, através dalei 13.257/16, haja vista que, cerceada destes cuidados e direitos, poderá, consequentemente, permanecer em situação de vulnerabilidade e violação.

Cabe investimento em prol da infância e juventude (e não redução de investimentos, como vem ocorrendo desde o final do governo Temer e persistido no atual governo), implementação de políticas públicas, fiscalização e monitoramento das ações já iniciadas, pois somente deste modo, poderemos dar um futuro digno às crianças e adolescentes no país.

Por fim, embora haja poucas pessoas que nos sugiram haver motivos para celebrar o aniversário de promulgação do ECA ocorrido no último 13 de julho, o que nos denota tamanha incoerência diante de todos os fatos aqui brevemente mencionados, e mesmo sendo esta lei um feito histórico e de suma importância à proteção e defesa de crianças e adolescentes em nosso país, ainda há muito que ser feito para que tenhamos reais motivos para comemorar o fato de termos uma lei progressista e garantista como o Estatuto da Criança e do Adolescente, principalmente nos últimos tempos em que, ao invés de garantia de direitos, temos nos deparado com constantes violações de direitos.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Rede feminista de saúde.

5 Disponível aqui.

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Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.