Migalhas Marítimas

As funções do Tribunal Marítimo - Parte III - A função sancionatória

As funções do Tribunal Marítimo - Parte III - A função sancionatória.

25/11/2021

Dando continuidade à série de artigos sobre as funções do Tribunal Marítimo™, hoje abordarei a função sancionatória, pela qual o Tribunal aplica sanções, de natureza administrativa, àqueles que violam regras relativas à navegação. 

A função sancionatória do TM tem sua matriz principal na alínea "b" do inciso I do art. 13 da Lei 2.180/54, dentro do contexto de “julgar os acidentes e fatos da navegação”, como destacado a seguir:

Art . 13. Compete ao Tribunal Marítimo:

I - julgar os acidentes e fatos da navegação;

a) definindo-lhes a natureza e determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão;

b) indicando os responsáveis e aplicando-lhes as penas estabelecidas nesta lei;

c) propondo medidas preventivas e de segurança da navegação;

Evidentemente, esse e outros dispositivos da Lei trazem funções ancilares a essa competência punitiva. Sem a definição da natureza e das causas do acidente ou fato (alínea "a"), não seria possível punir os agentes que o causaram.  Igualmente, sem a indicação dos responsáveis (primeira parte da alínea "b"), tampouco seria possível aplicar qualquer pena.

Hoje, encontra-se assentada a ideia de que a imposição de sanções não é função exclusiva do Direito Penal.  Também no âmbito do Direito Administrativo, a apenação é não apenas permitida como necessária para o exercício de várias funções estatais.  Vale ressaltar, neste passo, a lição de Fábio Medina Osório, ao esclarecer a definição material da função sancionatória administrativa, que independe do órgão que a exerce, e deve ser preferida em lugar de uma definição meramente formal1.

No mesmo contexto, esclarece o autor a razão pela qual defende a autonomia do "Direito Administrativo Sancionador":

"A regulação repressiva das funções revestidas de interesse público pode passar pelo Direito Penal, mas nem sempre isso ocorre.

Quando essa regulação fica restrita ao campo extrapenal, cabe ao Direito Administrativo (que cuida das funções públicas em geral) tutelar os valores sociais protegidos pelas normas repressivas"2

Levando tais conceitos às funções do TM, é inequívoco que a Lei lhe confere essa função sancionadora, uma vez que a navegação é "função revestida de interesse público" e a sua segurança se insere entre os "valores sociais protegidos pelas normas repressivas".

A delimitação do âmbito da função sancionatória do TM depende da conjugação de dois fatores, consistentes em saber:

- o que o ordenamento jurídico define como “acidentes e fatos da navegação” (AFN) e

- quais comportamentos, comissivos ou omissivos, no âmbito dos AFN, são puníveis, ou seja, podem ser definidos como “fato típico” no âmbito da função sancionatória do TM.

O primeiro fator encontra definição na própria Lei 2.180/54, em seus arts. 14 e 15:

Art . 14. Consideram-se acidentes da navegação:

a) naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento;

b) avaria ou defeito no navio nas suas instalações, que ponha em risco a embarcação, as vidas e fazendas de bordo.

Art . 15. Consideram-se fatos da navegação:

a) o mau aparelhamento ou a impropriedade da embarcação para o serviço em que é utilizada, e a deficiência da equipagem;

b) a alteração da rota;

c) a má estivação da carga, que sujeite a risco a segurança da expedição;

d) a recusa injustificada de socorro a embarcação em perigo;

e) todos os fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo.

f) o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional.

Os termos listados na alínea "a" do art. 14 são definições técnicas das Ciências Náuticas. Alguns autores de Direito Marítimo trazem essas definições3, que não serão reproduzidas aqui, por desviarem dos objetivos desta coluna.  Não há controvérsias significativas sobre seu conteúdo.

Merece registro, porém, a proposta de Matusalém Pimenta, o qual, após definir, com objetividade e precisão técnica, os acidentes e fatos da navegação, propõe uma nova sistematização, em que acidentes e fatos da navegação sejam previstos num único dispositivo legal.  Além disso, em notável aperfeiçoamento doutrinário, propõe substituir a vetusta classificação das avarias em grossa e simples por avaria-dano e avaria-despesa4.

O segundo fator, ou seja, a "tipificação" dos comportamentos puníveis pelo TM, parece encontrar previsão nos arts. 121 e 122 da lei 2.180, nos seguintes termos:

Art. 121. A inobservância dos preceitos legais que regulam a navegação será reprimida com as seguintes penas: 

Art. 122. Por preceitos legais e reguladores da navegação entendem-se todas as disposições de convenções e tratados, leis, regulamentos e portarias, como também os usos e costumes, instruções, exigências e notificações das autoridades, sobre a utilização de embarcações, tripulação, navegação e atividades correlatas. (não destacado no original) 

É curioso que o dispositivo tem a função de definir penas e não tipos. Seria mais adequado que tal dispositivo estivesse em outro capítulo da lei 2.180/54. Em todo caso, percebe-se que a tipificação das condutas puníveis pelo TM não está sistematizada em sua lei, mas se encontra esparsa em outros diplomas normativos, predominantemente, na Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário (LESTA, Lei 9.537/97) e no Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar (RIPEAM), cuja importância já foi anteriormente abordada, neste mesmo espaço5.

De todo modo, vale repisar que o RIPEAM não é um simples regulamento técnico, mas norma jurídica positiva e vigente no Direito Brasileiro, uma vez que foi incorporado pelo decreto legislativo 77, de 1974. 

Com relação à LESTA, vale ressaltar a delegação feita, pelo seu art. 4º, à Autoridade Marítima, para editar normas regulamentares sobre a segurança da navegação:

Art. 4° São atribuições da autoridade marítima:

I - elaborar normas para:

a) habilitação e cadastro dos aquaviários e amadores;

b) tráfego e permanência das embarcações nas águas sob jurisdição nacional, bem como sua entrada e saída de portos, atracadouros, fundeadouros e marinas;

c) realização de inspeções navais e vistorias;

d) arqueação, determinação da borda livre, lotação, identificação e classificação das embarcações;

e) inscrição das embarcações e fiscalização do Registro de Propriedade;

f) cerimonial e uso dos uniformes a bordo das embarcações nacionais;

g) registro e certificação de helipontos das embarcações e plataformas, com vistas à homologação por parte do órgão competente;

h) execução de obras, dragagens, pesquisa e lavra de minerais sob, sobre e às margens das águas sob jurisdição nacional, no que concerne ao ordenamento do espaço aquaviário e à segurança da navegação, sem prejuízo das obrigações frente aos demais órgãos competentes;

i) cadastramento e funcionamento das marinas, clubes e entidades desportivas náuticas, no que diz respeito à salvaguarda da vida humana e à segurança da navegação no mar aberto e em hidrovias interiores;

j) cadastramento de empresas de navegação, peritos e sociedades classificadoras;

l) estabelecimento e funcionamento de sinais e auxílios à navegação;

m) aplicação de penalidade pelo Comandante;

II - regulamentar o serviço de praticagem, estabelecer as zonas de praticagem em que a utilização do serviço é obrigatória e especificar as embarcações dispensadas do serviço;

III - determinar a tripulação de segurança das embarcações, assegurado às partes interessadas o direito de interpor recurso, quando discordarem da quantidade fixada;

IV - determinar os equipamentos e acessórios que devam ser homologados para uso a bordo de embarcações e plataformas e estabelecer os requisitos para a homologação;

V - estabelecer a dotação mínima de equipamentos e acessórios de segurança para embarcações e plataformas;

VI - estabelecer os limites da navegação interior;

VII - estabelecer os requisitos referentes às condições de segurança e habitabilidade e para a prevenção da poluição por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio;

VIII - definir áreas marítimas e interiores para constituir refúgios provisórios, onde as embarcações possam fundear ou varar, para execução de reparos;

Essas normas ficaram conhecidas como “NORMAN” (Norma da Autoridade Marítima), numeradas sequencialmente e divulgadas pela Diretoria de Portos e Costas da Marinha (DPC).

O estabelecimento de normas por meio de ato secundário, a NORMAM, e não diretamente pela Lei, não significa lesão ao princípio da legalidade, nem afeta a legitimidade da tipificação. Trata-se de delegação amplamente aceita no Direito brasileiro, muito semelhante ao que ocorre no âmbito das agências reguladoras que, autorizadas por um único dispositivo de lei, expedem inúmeras normas, através de atos secundários (resoluções, portarias, regulamentos), que tipificam infrações e estabelecem sanções. Apesar da controvérsia que, até o final do Século passado, ainda havia no assunto, hoje já se tem por pacificada essa possibilidade.

A função sancionatória do TM não se confunde com a atuação da Autoridade Marítima e seus delegados, ao aplicarem multas e outras sanções, diretamente aos infratores. A questão é muito bem esclarecida pelo próprio art. 33 da Lei:

Art. 33. Os acidentes e fatos da navegação, definidos em lei específica, aí incluídos os ocorridos nas plataformas, serão apurados por meio de inquérito administrativo instaurado pela autoridade marítima, para posterior julgamento no Tribunal Marítimo.

Parágrafo único. Nos casos de que trata este artigo, é vedada a aplicação das sanções previstas nesta Lei antes da decisão final do Tribunal Marítimo, sempre que uma infração for constatada no curso de inquérito administrativo para apurar fato ou acidente da navegação, com exceção da hipótese de poluição das águas.

Assim, para ficar claro: a Autoridade Marítima e seus delegados podem, ao constatar uma infração, autuar e aplicar diretamente a sanção ao infrator, obviamente observado o devido processo legal administrativo, como determina o art. 22 da LESTA6. Não há, nesse caso, qualquer atuação do TM.  Se, no entanto, a infração ocorrer no bojo de um acidente ou fato da navegação, a penalidade, se cabível, será aplicada no âmbito do processo do Tribunal Marítimo, no exercício de sua função sancionatória.

Por fim, quanto às penas que podem ser aplicadas pelo TM, no exercício desta função, encontram previsão normativa no já referido art. 121 da lei 2.180, nos seguintes termos:

Art. 121. A inobservância dos preceitos legais que regulam a navegação será reprimida com as seguintes penas:       

I - repreensão, medida educativa concernente à segurança da navegação ou ambas;       

II - suspensão de pessoal marítimo;

III - interdição para o exercício de determinada função;

IV - cancelamento da matrícula profissional e da carteira de amador;

V - proibição ou suspensão do tráfego da embarcação; 

VI - cancelamento do registro de armador;   

VII - multa, cumulativamente ou não, com qualquer das penas anteriores. 

Em conclusão, a função sancionatória do TM não apresenta nenhuma peculiaridade significativa, quando comparada ao poder punitivo de vários outros órgãos administrativos, que protegem valores socialmente relevantes. Alguns deles, inclusive, têm perfil colegiado (como a CVM) ou mesmo a denominação de tribunal (como o Tribunal do CADE), mas, assim como o TM, exercem função sancionatória de natureza administrativa, tanto materialmente, quanto formalmente, enquanto órgãos administrativos que efetivamente são.

Neste sentido, não há dúvida de que as decisões do TM podem efetivamente ser revistas pelo Poder Judiciário, como também o podem as decisões dos órgãos sancionatórios referidos no parágrafo anterior.   Quanto o art. 18 da lei 2.180/54 diz que as decisões do TM são "passíveis de reexame pelo Poder Judiciário"7, não se discute que isso se aplica, integralmente, às decisões proferidas no exercício da função sancionatória.  A questão realmente controversa é a possibilidade de "reexame" quando se trata do exercício da função instrutória do TM, que será objeto de outro artigo mais à frente, neste mesmo espaço.

__________

1 "Não configura, portanto, elemento indissociável da sanção administrativa a figura da autoridade administrativa, visto que podem as autoridades judiciárias, de igual modo, aplicar essas medidas punitivas, desde que outorgada, por lei, a respectiva competência repressiva, na tutela de valores protegidos pelo Direito Administrativo" (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador, 2ª. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p. 92-93.).

2 OSÓRIO, op. cit., p. 93.

3 Assim, J. Haroldo dos ANJOS e Carlos Rubens Caminha GOMES, em explicações completas e detalhadas (op. cit., p. 83-105), em grande parte copiadas ipsis litteris, ou com pequenas alterações, por Carla GILBERTONI (op. cit., p. 199-221). Eliane Octaviano MARTINS, por sua vez, transcreve as definições constantes na Norma da Autoridade Marítima (NORMAN) 09 (op. cit., p. 739), sem prejuízo de detalhada exposição doutrinária (op. cit., p. 749-775). 

4 PIMENTA, Matusalém Gonçalves. Processo Marítimo: formalidades e tramitação, 2ª ed. Barueri: Manole, 2013, p. 30-54.

5 "Existe um Código de Trânsito par ao Mar?" – Migalhas Marítimas, 22/07/2021.

6 Art. 22. As penalidades serão aplicadas mediante procedimento administrativo, que se inicia com o auto de infração, assegurados o contraditório e a ampla defesa.

7 Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.